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Teletrabalho: Bloco quer patrões a repartir custos e direito à desconexão dos trabalhadores

Com um milhão de trabalhadores em teletrabalho, Catarina apresentou este sábado treze medidas para alterar o regime jurídico-laboral de teletrabalho, garantindo maior proteção dos trabalhadores, direito ao descanso, representação sindical e repartição de despesas com o empregador.
"As famílias gastaram mais 15% na conta da luz, enquanto as empresas e os serviços pouparam na luz", diz Catarina.
"As famílias gastaram mais 15% na conta da luz, enquanto as empresas e os serviços pouparam na luz", diz Catarina. Foto de Rodrigo Antunes, Lusa.

“Faz agora um ano que um número muito significativo de trabalhadores do setor privado e administração pública em Portugal foram enviados para teletrabalho. Neste momento em Portugal há 1 milhão de pessoas a trabalhar em casa. Praticamente um quarto da população empregada no país”, explica Catarina Martins.

Para o Bloco de Esquerda o teletrabalho "não é o modo ideal de organização do trabalho" e revelou já "custos profundos" para a saúde, física e mental, e estabilidade financeira das famílias, diz Catarina. Por isso, os trabalhadores têm de ser defendidos. 

As respostas de emergência à pandemia da Covid-19 tiveram consequências profundas no mundo do trabalho. Na sequência das restrições à mobilidade, “operou-se uma transição abrupta para o teletrabalho, sem mecanismos de preparação e de negociação coletiva”, pode ler-se no ante-projeto de lei apresentado este sábado pela coordenadora do Bloco de Esquerda, projeto que será discutido entre trabalhadores e representantes sindicais face à recusa do governo em avançar com alterações ao código laboral para proteger os trabalhadores em teletrabalho. 

De acordo com dados divulgados pelo INE, no segundo trimestre de 2020, o número de trabalhadores em teletrabalho cresceu 23,1%, para mais de um milhão de pessoas a trabalhar com recurso a tecnologias de informação e comunicação e a partir de casa.

“Pelo modo como aconteceu, tratou-se de uma resposta em grande medida improvisada, quer nas empresas privadas, quer nas organizações da Administração Pública”. Uma realidade confirmada por vários estudos sobre os efeitos do teletrabalho neste período.

O relatório do CoLABOR (Trabalho e Desigualdades no Grande Confinamento), evidenciou as dificuldades na gestão dos tempos, com os horários efetivamente trabalhados a extravasarem o período normal de trabalho, a multiplicação de tarefas realizadas fora de horas, a sobrecarga das mulheres (em teletrabalho) com crianças a cargo. Outros estudos enfatizaram os efeitos ao nível do cansaço, aumento de peso, ansiedade, além do aumento da agitação, da irritação e do stress nas crianças. A ausência de condições físicas, nomeadamente habitacionais, para que os diferentes elementos da família desenvolvam o seu trabalho a partir de casa é um fator a ter em conta nos riscos acrescidos de tensão familiar, potenciando situações de conflito e de violência.

“O teletrabalho traz vários custos para a saúde dos trabalhadores. Tem tido efeitos nas famílias e nas crianças. Tem sido particularmente penalizador para as mulheres, porque o trabalho em casa torna a sua vida mais complicada” devido à distribuição assimétrica de tarefas domésticas, e “tem agravado os problemas dos mais vulneráveis, nomeadamente aqueles que ficaram em casa sem remuneração suficiente para pagar aquecimento”, diz Catarina Martins.

“Teletrabalho traz também custos na privacidade dos trabalhadores. Infelizmente, Portugal teve maus exemplos neste último ano. Temos notícias de vários abusos por parte de empregadores, com a CNPD a chumbar software utilizado para controlar movimento de trabalhadores”, relembra.

“Teletrabalho traz também custos na segurança laboral. Os trabalhadores ficam isolados em casa, perdendo redes de solidariedade e capacidade de fiscalização e assédio no trabalho, porque o trabalhador fica isolado e sujeito a pressão do empregador com imposição de tarefas que excedem as suas funções face ao perigo de perder o trabalho”.

Por outro lado, muitas empresas aproveitaram o recurso ao teletrabalho para pouparem custos inerentes ao trabalho, imputando-os aos trabalhadores. Assim, as despesas com a manutenção dos locais de trabalho, com equipamentos, com eletricidade, água e ligação à internet foram transferidas para os trabalhadores, sem que a isso correspondesse, muitas vezes, qualquer compensação.

“Não será, pois, surpreendente que à transição em larga escala para o teletrabalho tenha correspondido um acréscimo de 14,9% dos custos das famílias, que terão sido entretanto agravados pelo efeito do aumento dos preços da eletricidade até 7% em Janeiro de 2021. Só ao nível do consumo de internet, assistiu-se a um aumento de 60%”, pode ler-se no projeto.

O teletrabalho traz também custos financeiros. “Não temos dados sobre os custos de quem está teletrabalho, mas sabemos que as famílias gastaram mais 15% na conta da luz, enquanto as empresas e os serviços pouparam na luz. Se o aumento médio das famílias foi este, podemos concluir que quem está em teletrabalho teve um aumento ainda maior da fatura”.

Do mesmo modo nas comunicações: “as famílias gastaram quase mais 40% de tráfego de dados, e mais 12% de chamadas de voz. Se esta é a média, quem está em teletrabalho sofreu aumentos ainda maiores, diz. Por outro lado, os consumos domésticos de água e gás têm aumentado. “Não havendo uma relação tão direta com o teletrabalho, mas a necessidade de aquecimento tem enorme impacto nas faturas”.

Se, nas empresas, o setor dos serviços pouparam quase 20% na eletricidade, e a indústria quase 6%. E isto são custos que “passaram para os trabalhadores”, conclui.

Os riscos identificados relativamente ao teletrabalho “são os que decorrem do isolamento dos trabalhadores”, desde a perda de contacto formal ou espontâneo com colegas, à diluição das fronteiras entre a vida profissional e a vida familiar e pessoal; do descontrolo do tempo de trabalho, com a erosão das fronteiras entre tempo de descanso e tempo para a empresa; das violações potenciais dos direitos de privacidade e do espaço de intimidade do trabalhador, com mecanismos de controlo e vigilância acrescidos; da transposição dos custos gerais da empresa para os custos individuais dos trabalhadores; ou da desarticulação de formas de representação coletiva e de socialização dos trabalhadores.

No caso das mulheres, em particular , o controlo sobre o tempo pode ser bastante exíguo, dados os constrangimentos familiares e domésticos que conduzem à “invasão” do tempo noturno pelo trabalho, para aproveitar o sono das crianças, com o desgaste e o agravamento do conflito com a vida pessoal daí resultantes.

O que mudou para quem está em teletrabalho? “Sobretudo a relação com a família. O governo defendia que quem está em teletrabalho poderia manter-se em teletrabalho e cuidar dos filhos. O Bloco de Esquerda sempre alertou que isso era impossível. O teletrabalho não é compatível com cuidar das crianças. E importante perceber que teletrabalho é trabalho a tempo inteiro. A sua desvalorização como algo compatível com tarefas domésticas era um problema extra para as famílias, diz Catarina. Entretanto, “entrou na lei o princípio de que isto não é compatível, com um aumento do salário pago para pais que ficam a tomar conta das crianças.

“O que falta conseguir? Quase tudo”, diz.

Por isso, o Bloco de Esquerda “entende que, neste contexto, é preciso dar um impulso legislativo capaz de proteger os trabalhadores. Não se trata de “incentivar” o teletrabalho, nem de assumir que ele é “o paradigma do futuro”, explicam, mas “é da maior importância, ainda assim, disciplinar o teletrabalho, assumindo que, depois desta experiência, haverá uma parte minoritária dos trabalhadores que permanecerá a trabalhar neste regime e que, perante as evidentes lacunas da lei e os abusos que têm existido, é responsabilidade da lei laboral proteger quem trabalha e minorar os riscos decorrentes desta modalidade de trabalho”, esclarecem.

-Estabelecer os conceitos de «trabalhador em regime de teletrabalho» e «trabalhador em regime de trabalho a distância»;

-Clarificar os conceitos de «tempo de trabalho» e de «tempo de descanso», consagrando o dever de a entidade empregadora respeitar o «tempo de desconexão profissional», através de um enquadramento mais protetor dos trabalhadores;

Esta "clareza das definições é importante para se aferir os custos de atividade, e como se pode definir quem paga o quê", explica Catarina. 

"A lei atual faz uma confusão perigosa entre o que é o tempo de trabalho e o tempo de descanso que, no teletrabalho, fica ainda mais difícil". Quem está em teletrabalho, explica, "não estão necessariamente com isenção de horário, mas sim com o seu horário de trabalho. E não lhes pode ser exigido o trabalho a qualquer hora. Para isso, é preciso proibir as empresas de entrar em contacto com os trabalhadores fora de horário", porque, caso contrário, "dizer ao trabalhador que ele tem o direito de não responder fora do horário de trabalho, na verdade, limita a possibilidade de progressão na carreira ou de prorrogação do seu contrato precário, porque não respondeu fora do horário". Ou seja, "a pressão é colocada no trabalhador e não no empregador". Por isso, "a única forma de proteger o horário de trabalho, é dizer que as empresas não podem contactar o trabalhador fora desse horário". 

-Prever que a violação reiterada desse dever de desconexão por parte das empresas no tempo de descanso do trabalhador possa constituir indício de assédio, com as consequências daí decorrentes;

Para que esta regra tenha consequências, "propomos que a violação reiterada do dever de desconexão seja considerado  assédio no trabalho". Ou seja, "quando um superior hierárquivo contacta um trabalhador fora do seu horário, isso passa a ser considerado um indício de assédio". 

-Eliminar o vínculo, na lei, entre a figura da «isenção de horário» e o «teletrabalho»;

"A lei está mal escrita", alerta Catarina, porque equipara quem está em teletrabalho como tendo isenção de horário. O que não é verdade. "O contrato de trabalho sem isenção de horário tem um horário fixo que deve ser cumprido". 

-Explicitar que, em regime de teletrabalho, se mantém o direito ao subsídio de alimentação e que é responsabilidade do empregador o fornecimento dos meios de informação e comunicação utilizados em teletrabalho;

"Os trabalhadores têm de ter direito ao subsídio de refeição", um princípio que está na lei e que exigiu clarificação do Governo durante a pandemia, e que deve ser clarificado na lei. 

-Prever que, para além das situações já consagradas na lei relativas à violência doméstica e das situações relativas a trabalhadores com filhos menores ou cuidadores de pessoas dependentes previstas na Diretiva Europeia, o teletrabalho exige acordo em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho e não apenas acordo individual;

"Quando cada trabalhador que está em casa fica isolado de outros, não tem a mesma capacidade de organização e reivindicação. Se cada trabalhador assina os termos de trabalho com a entidade empregadora, não tem o mesmo poder perante o empregador", explica Catarina. Por isso, deve ser privilegiada a contratação coletiva. 

-Consagrar a excecionalidade do regime de visita do empregador ao domicílio do trabalhador, prevendo a notificação prévia e o consentimento do trabalhador;

"Se o trabalhador está em casa, a sua casa não passa a ser propriedade do empregador. A sua família não passa a ter um contrato com a empresa. Por isso o empregador não pode realizar visitas ao domicílio, exceto se tiver objeto combinado e aviso com 48 horas de antecedência", explica. 

-Garantir uma periodicidade mínima de contactos presenciais entre o trabalhador e a empresa e os seus colegas de trabalho;

"Tem de haver uma periodicidade mínima de contacto dos trabalhadores com a sua empresa, os seus colegas e a estrutura onde trabalha", diz Catarina. "É algo importante para os trabalhadores e para o bom desempenho da ecoomia". 

-Reforçar o princípio da reversibilidade do acordo do trabalhador relativamente ao teletrabalho, triplicando o período atual durante o qual o trabalhador pode denunciar o contrato para prestação subordinada de teletrabalho;

"A lei neste momento prevê um período pequeno de 30 dias, pensamos que este período deve passar para 90 dias, porque o impacto pode não ser imediato". 

-Garantir que as estruturas de representação coletiva dos trabalhadores têm acesso aos contactos dos trabalhadores em regime de teletrabalho;

"Como já percebemos, cada trabalhador individualmente em casa fica sem capacidade de defender os seus direitos. Para isso a lei tem de ter mecanismos que garantam o contacto dos sindicatos com todos os trabalhadores", diz. E dá o exemplo de outsourcing, onde os vários intermediários de trabalho temporário significa que "ninguém sabe quem trabalha no setor", impedindo o contacto com os sindicatos. 

  1. -Alargar, na regulamentação do regime de reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais, o conceito de “local de trabalho”, para que seja inequívoca a aplicação destas disposições quando este é exercido no domicílio, impedindo a qualificação de acidentes profissionais ocorridos em casa como “acidentes domésticos”.
  2.  

-Clarificar as regras de pagamento, pelo empregador, das despesas originadas em regime de teletrabalho e em regime de trabalho a distância, através da introdução de uma cláusula que inclui, designadamente, as despesas com telecomunicações, energia, água e aquecimento;

"Sabemos que os setores da economia são todos diferentes. Defendemos por isso que esta repartição seja realizada por acordos coletivos, mas nunca por acordos individuais". 

"A entidade patronal não tem de pagar apenas os custos das chamadas, mas também dos equipamentos de telemóvel e computador necessários para o trabalhador estar em teletrabalho", tal como teria de fazer no escritório. 

 

 

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