“Só existe aquilo que o público sabe que existe”

13 de April 2022 - 9:54

Da autoria de Salazar, o mote é auto explicativo. As exposições valem pelo conteúdo, por aquilo que mostram e dão a conhecer. Não fosse assim, desconhecendo o papel da censura, poder-se-ia imaginar que se inventava. Ora, Portugal não era um jardim à beira-mar plantado, q.e.d.

porMaria Luísa Cabral

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Exposição “Proibido por inconveniente”, Materiais das censuras no Arquivo Ephemera -  Edifício do Diário de Notícias em Lisboa, de 7 a 27 de abril de 2022
Exposição “Proibido por inconveniente”, Materiais das censuras no Arquivo Ephemera - Edifício do Diário de Notícias em Lisboa, de 7 a 27 de abril de 2022

A caminho dos 50 anos do 25 de Abril, outra exposição comemorativa. Da responsabilidade da Ephemera e com recurso a materiais do Arquivo Ephemera, o único problema com esta exposição é encerrar a 27 de Abril. Sob o título PROIBIDO POR INCONVENIENTE, estende-se por 10 núcleos, prende a atenção do primeiro ao último com o mesmo entusiasmo. Até pode ter pontos fracos mas sobre um conteúdo substancial, seleccionado e exposto criteriosamente, dissipa-se qualquer veleidade crítica.

Não é uma exposição difícil, a preocupação pedagógica é evidente e ainda bem. Com um itinerário rico em textos, ao fim de uma hora, hora e meia, a perplexidade toma conta do visitante. Afinal o Portugal pré 25 de Abril era corrupto, escondia crimes de pedofilia, violência de género, roubos, costumes perversos. Escusado pôr o regime de direita no altar, com a intervenção dos vários organismos encarregados pela censura de papéis, jornais, músicas, filmes e livros, agora amplamente escancarada, demonstra-se que o regime não era virtuoso e que não serve de exemplo à democracia. Suspirar pelo antigo regime, já percebemos do que se fala.

Sabíamos todos que a censura existia e era um forte sustentáculo do regime. Talvez desconhecêssemos a variedade de organismos que executavam a censura – a Comissão de Censura nas seus múltiplos estádios, a polícia política, ministérios, a Igreja Católica - e que a censura cobria livros, jornais, folhetos, cartazes, telegramas, chamadas telefónicas, filmes, ilustrações, peças de teatro ou outros espectáculos. Autores, editores, impressores, promotores do espectáculo, todos sujeitos ao mesmo escrutínio. Toda a atenção sobre a mensagem.

Os 10 painéis revelam isto mesmo, como a censura se instalou e cobriu todos os cantos do país, como instaurava o silêncio, como defendia o pensamento único e alinhado pelo regime, como a censura tentava ser imperceptível. Como, finalmente, se resistiu. A exposição não mostra apenas os cortes, o lápis azul, mostra os pareceres que levavam à censura e são estes que são verdadeiramente chocantes. As observações medíocres, autoritárias, tementes a uma cartilha oficial que foram impondo a mordaça e tentaram silenciar as vozes críticas e discordantes.

Entre os livros expostos reconheci alguns que tenho em casa e para dizer a verdade, já nem me lembrava das circunstâncias da sua aquisição. Ou seja, naqueles anos 60-70, comprei-os no espaço de tempo desde que o livreiro os adquiriu e a visita da polícia política. Títulos completamente inocentes, os riscos que todos corríamos, o privilégio que era conseguir um daqueles livros que a seguir passavam de mão-em-mão. Milhares de outros portugueses fizeram a mesma coisa, um desafio permanente à máquina infernal que nos moía.

Senti a falta de um painel introdutório, nem percebo porque não foi feito uma vez que o texto do guião, todo ou em parte, servia muito bem. Do painel introdutório podia passar-se a um plano da exposição, faz falta. Os expositores foram uma solução boa e económica, a ideia das gavetas com o “Boletim de Registo e Justificação de Cortes” é brilhante para um instrumento censório também ele, a seu modo, brilhante pela história que nos conta ou permite reconstituir. Os censores e as autoridades imaginaram mesmo que o poder era deles para sempre! Ironicamente com este “Boletim” estavam a organizar o futuro, o trabalho de recolha e interpretação de investigadores próximos. Tanto documento, tanta informação para a história do regime! Tudo ali, claro como água, não imaginava, nunca ouvira referência a este “Boletim”.

Alguns materiais não poderão ser transportados em defesa da sua própria integridade, mas a digitalização pode ser uma solução e, assim, preparados, a PROIBIDO POR INCONVENIENTE devia seguir para escolas e bibliotecas municipais por esse país fora. Nem é muito grande, nem tem materiais de grandes dimensões, uma oportunidade a não perder.

Pelo material reunido em PROIBIDO POR INCONVENIENTE, pelo reavivar das nossas memórias que nem sempre valorizamos, pelo acordar daquilo que nos une, aconselho vivamente uma visita, indispensável.

Maria Luísa Cabral
Sobre o/a autor(a)

Maria Luísa Cabral

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990