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Sistema de dívida e capitalismo: qual a relação?

8h contra a dívida ilegítima, notícia sobre a sessão “A dívida, arma fatal do capitalismo” com Silvia Federici, Éric Toussaint e Noëmie Cravatte. Por Mariella Caponnetto
Foto da sessão “A dívida, arma fatal do capitalismo” com Silvia Federici, Éric Toussaint e Noëmie Cravatte
Foto da sessão “A dívida, arma fatal do capitalismo” com Silvia Federici, Éric Toussaint e Noëmie Cravatte

Resumo da sessão plenária: .

Intervenientes: Silvia Federici (militante feminista, professora emérita de ciências sociais da Universidade Hofstra, Nova Iorque – USA)1, Éric Toussaint (porta-voz do CADTM Internacional, membro do conselho científico da ATTAC França), e Noëmie Cravatte (CADTM Bélgica), moderadora.

Durante o plenário de abertura, os nossos dois oradores/as foram convidado/as a responder a uma pergunta conjunta e a uma pergunta específica, de acordo com a sua área de especialidade, para explicarem como a dívida se tem revelado um instrumento privilegiado do sistema capitalista.

1 – Sistema de dívida e capitalismo: qual a relação?

1.1 - Silvia Federici : Não deixemos que a dívida nos isole

Historicamente, a dívida não teve sempre a mesma função. Até meados do século XX, o crédito era concedido apenas aos trabalhadores que tinham garantido o seu salário. Em seguida, a capacidade de reembolsar a dívida passou a ser secundária e a dívida passou a servir outros fins. Entre os anos 60 e 70, a dívida nacional teve como finalidade promover o pleno emprego. Nos últimos 30 anos, pelo contrário, serviu para gerar desemprego.

A dívida não é só um instrumento económico, é também uma arma política. Principal ferramenta da globalização, a dívida tem baralhado a economia e permitido as exportações e o extrativismo. Tem sido a primeira opção quando se pretende privatizar a economia, pôr fim ao socialismo e gerar pobreza em grande escala.

A dívida não é apenas um instrumento económico, é também uma arma

A dívida tem sido utilizada a nível internacional, porque é um instrumento muito eficaz a explorar pessoas. Desmobiliza e não gera resistência. A dívida oculta precisamente a exploração e isola as pessoas. Um-a trabalhador-a envolvido-da numa luta salarial apercebe-se da exploração injusta que sofre e sente-se parte integrante da coletividade. Um/a devedor/a privado/a é visto como se tivesse beneficiado do dinheiro para seu próprio proveito.

Há, obviamente, uma ligação entre a dívida nacional e a dívida privada, quando as pessoas são forçadas a pedir emprestado para beneficiarem de serviços que deveriam ser prestados pelo Estado. Essas pessoas não percebem que estão a ser exploradas pelos bancos e sentem-se culpadas, pensando, na maioria dos casos, que as suas dívidas se devem a má gestão.

Há, obviamente, uma ligação entre a dívida nacional e a dívida privada, quando as pessoas são forçadas a pedir emprestado para beneficiarem de serviços que deveriam ser prestados pelo Estado

Com o passar do tempo, especialmente na América, foram surgindo importantes movimentos de resistência, sendo o mais importante, provavelmente, o movimento social El Barzón , nos anos 90 no México.2 Num contexto de crise económica e financeira nacional e de subida das taxas de juro, muitos devedores viram-se na impossibilidade de pagar os seus empréstimos bancários. Centenas de milhares de pessoas, em todo o país, pressionaram o governo para que fossem alteradas as condições de pagamento. Essa mobilização foi muito difícil de organizar. Combater o endividamento massivo é um desafio difícil, mas esta mobilização deve encorajar-nos porque a dívida diz respeito a grande parte da população.

1.2 - Éric Toussaint : é preciso rejeitar tanto as dívidas públicas ilegítimas como as dívidas privadas ilegítima

As dívidas públicas são um mecanismo de transferência de receita das pessoas para os capitalistas.

A dívida é uma imposição injusta, que parece abstrata e dificilmente perceptível. Um imposto injusto sobre o rendimento é, de imediato, percebido como tal pela população, assim como é também a super-exploração levada a cabo por um chefe. Em termos de reembolso da dívida, é muito menos fácil compreender; não há, de facto, nenhum imposto específico associado ao pagamento da dívida. No entanto, grande parte dos impostos - diretos ou indiretos - são utilizados para o seu pagamento3.

A exploração é assim dupla: começa a nível do trabalho e continua, de forma mais insidiosa, através de imposições fiscais utilizadas para reembolsar uma divida detida, em grande parte, pelas instituições financeiras, pelos capitalistas que contribuem muito pouco para os impostos, obtendo, no entanto, através deles, largos benefícios fiscais. Beneficiam, por exemplo, da acumulação de capital e investem parte dele na compra de títulos da dívida pública, sendo o rendimento obtido garantido pelos impostos pagos pelo povo.

Grande parte destas dívidas públicas é, por outro lado, contraída para apoiar projetos que beneficiam muito o grande capital e muito pouco a população. Esses projetos são, na sua maioria, inspirados por modelos extrativistas e produtivistas.

É função fundamental de organizações como o CADTM revelar como funcionam estes mecanismo de transferência.

Endividar privados é sujeitá-los ao sistema monetário

A ditadura do dinheiro incidia já sobre os bens comuns no século XIV nas cidades4. Nessa época, as trocas diretas começavam a transformar-se em trocas monetárias: nascia a dívida privada5. De seguida, logo que o sistema capitalista conseguiu generalizar as trocas monetárias, durante o século XIX, as pessoas começaram a ficar acorrentadas pelas dívidas privadas.

O que era já uma realidade para os camponeses-as, quando a monetarização foi introduzida, no século XIV, na Europa Ocidental, acontece agora nos Estados Unidos, por exemplo, quando os estudantes se endividam para financiarem os seus estudos, por períodos de 20 a 30 anos, ficando obrigados a pagar as suas dívidas uma vez que comecem a trabalhar. No entanto, quando saem das universidades, devido à situação atual de crise económica, não encontram empregos, o que faz com que fiquem sujeitos a situações terríveis de super-exploração.

Devido ao endividamento privado, as relações de semi-escravatura estão de volta. As pessoas começam as suas vidas numa situação de total dependência

Hoje, as relações de semi-escravatura estão de volta. As pessoas começam as suas vidas numa situação de total dependência.

Os créditos hipotecários abusivos possuem os mesmos efeitos desastrosos. Vimos em Espanha, onde 300 000 famílias foram expropriadas de suas casas pelos bancos desde 2010. Nos EUA, 12 milhões de famílias tiveram o mesmo destino em 2007.

O microcrédito nos países do sul é com frequência uma ferramenta de destruição de relações não-monetárias. As mulheres são as primeiras vítimas e as altas taxas de juros acabam com as liberdades individuais6.

Silvia Federici, Noëmie Cravatte e Éric Toussaint
Silvia Federici, Noëmie Cravatte e Éric Toussaint

2 - Silvia Federici : A dívida e o patriarcado - como se articulam?

A dívida constitui um ataque às classes trabalhadoras em geral, às populações do sul, aos-às negros-as nos EUA, etc. Mas afeta principalmente as mulheres. Na verdade, as mulheres sofrem mais, direta e intensamente, as consequências da dívida pública e da dívida privada.

A situação delas no mundo em termos de dívida contraria as intenções das Nações Unidas, que pretendem que a mundialização seja um estímulo à emancipação das mulheres, uma vez que muitas delas têm conseguido afirmar-se em termos salariais. Na realidade, a dívida nacional e os “ajustamentos sociais” que ela legitima afetam sobretudo as mulheres. A destruição dos serviços públicos tem provocado grande perda de emprego nos países do Terceiro Mundo e tem feito aumentar muito o desemprego das mulheres.

No que se refere às mulheres, uma das principais consequências da dívida foi um ataque contra os seus esforços no sentido de alcançarem a independência económica. O elevado endividamento fez aumentar a escravidão, particularmente, ao nível das tarefas domésticas.

As dívidas nacionais são um pretexto para destruir os serviços sociais. Consequentemente, os serviços anteriormente existentes ou acessíveis, como creches, assistência médica, ajuda a pessoas em geral, têm sido destruídos. Para as mulheres, isso significa que têm de se sujeitar a empregos com baixos salários, com o único objectivo de sobreviver e sustentar as suas famílias. Ao mesmo tempo, têm de intensificar as tarefas familiares porque os serviços sociais deixaram de funcionar.

A dívida privada é consequência da dívida nacional. Há uma ligação direta entre ambas, porque os serviços sociais foram destruídos em nome da dívida nacional; as pessoas têm de pagar individualmente por bens e serviços, tais como a educação, a saúde e bens de primeira necessidade.

A dívida está também ligada ao aumento da exploração sexual. A partir dos anos 90, quando as dívidas nacional e privada aumentaram, a indústria do sexo generalizou-se a nível global. Muitas mulheres caíram na prostituição. Nos Estados Unidos, estudantes de universidades de prestígio prostituem-se para serem capazes de pagar os seus estudos.

A dívida é um instrumento fundamental para o reforço das relações de classe e das relações patriarcais

De Norte a Sul, a dívida tem sido usada como um meio de controlo populacional. As estudantes que se prostituem para pagarem os seus estudos afirmam que se sentem esterilizadas pela dívida. Elas não põem a hipótese de virem a ser mães, estando acorrentadas pela dívida. Contudo, a comercialização dos corpos das mulheres não se fica apenas pela prostituição. Dá-se também ao nível do processo reprodutivo quando as mulheres vendem os seus úteros. A indústria das barrigas de aluguer explodiu na sequência do endividamento em massa.

Quase todos os aspectos da vida das mulheres foram assim violentamente transformados pela dívida, uma ferramenta fundamental para o reforço das relações de classe e relações patriarcais.

3 - Éric Toussaint: na Europa, como alterar o equilíbrio de poder a favor do povo? Que medidas o CADTM preconizada sobre a dívida?

A auditoria cidadã à dívida é o instrumento por excelência, mais recente do que os restantes, para lutar contra a dívida. Permite a um grande número de cidadão/ãs entender qual a origem da dívida pública e identificar a parte considerada ilegal, ilegítima, odiosa ou insustentável.

Em 2007, o Equador criou uma Comissão de Auditoria Integral à dívida, que levou à suspensão unilateral do pagamento da parte da dívida considerada ilegítima. Os credores foram obrigados a revender os títulos que possuíam a preços mais baixos, e aqueles que recusaram – os banqueiros – acabaram por ficar com títulos de valor nulo7.

Esta experiência inspirou movimentos de cidadãos na Europa. A Islândia, confrontada com o colapso do seu sistema bancário, depois do afundamento do Lehman Brothers, deu o exemplo em 2008. A população mobilizou-se e foram realizados dois referendos sob pressão popular. No primeiro referendo, uma larga maioria (93%) recusou que o governo indemnizasse o Reino Unido e a Holanda pelo resgate do banco islandês Icesave. O segundo referendo confirmou a recusa com 72%8.

Para a auditoria ser bem sucedida, os governos devem estar dispostos a assumir atos unilaterais. O desafio da Europa é encontrar movimentos políticos capazes de se mobilizarem, em nome dos cidadãos, de suspenderem o pagamento e de repudiarem a dívida considerada ilegítima.

O governo do Syriza, formado em janeiro de 2015 na Grécia, fez acreditar que Tsipras enfrentaria os credores. Tsipras não teve coragem e comprometeu-se a pagar a dívida em fevereiro de 2015. A Grécia esgotou os seus fundos públicos para pagar uma dívida que a Comissão para a Verdade sobre a Dívida Pública Grega, constituída a 4 de abril de 2015 pela Presidente do Parlamento, tinha considerado ilegítima, odiosa, insustentável e ilegal.

Se Tsipras tivesse tido a coragem de anunciar, em fevereiro de 2015, que suspendia o pagamento da dívida para realizar a auditoria, sem prejuízo dos resultados do referendo, e tomando medidas para apoiar a população, não teríamos assistido à capitulação de julho de 2015. Obviamente que os credores são os principais responsáveis. O FMI, a Comissão Europeia e os governos europeus são os primeiros a quem devemos apontar o dedo, mas é preciso ter coragem para resistir como foi pedido massivamente pelo povo grego9.

É necessário informar outras forças susceptíveis de serem governo sobre a lição grega – é o caso do Podemos em Espanha, da Izquierda Unida e doutras forças políticas radicais de esquerda – para que elas se comprometam a realizar uma auditoria nacional ou municipal, no caso de chegarem ao executivo10.

Em Espanha, mais de 100 governos municipais eleitos em 2015 pedem transparência nas contas públicas. Em Oviedo, em conjunto com cinquenta municípios, lançámos o esboço duma frente de municípios que questionam o pagamento da dívida comprometendo-se a realizar auditorias com participação cidadã. Foi concluído já um calendário de reuniões e ações11.

Esperamos que esta dinâmica influencie outros países europeus, Itália, por exemplo, onde tem havido mudanças nos executivos municipais. E porque não na Bélgica, em 2018, após as eleições comunais previstas para o mês de outubro deste ano, com mais políticos de esquerda radical eleitos, conseguir um compromisso no sentido de recuperar os bens comuns e de questionar as dívidas ilegítimas?

Artigo publicado em cadtm.org Tradução: Maria da Liberdade - Revisão: Rui Viana Pereira


Notas

2 Para mais informação sobre este movimento, ler (em francês): https://www.cairn.info/revue-le-mou...

3 Os Estados destinam entre 15 % a 45 % das suas receitas fiscais ao pagamento da dívida.

4 Patrick Boucheron, em Conjurer la peur, Sienne 1338, evoca um fresco de Lorenzetti que se encontra no Palácio de Siena. Pintado em 1338, ilustra o poder dos senhores financeiros sobre os bens comuns e os municípios italianos. Ver (em francês): http://www.seuil.com/ouvrage/conjur… Para comentários, ler: http://www.calmeblog.com/article-bo... e https://entreleslignesentrelesmots....

5 Éric Toussaint diz que a dívida privada é muito anterior à Idade Média e que as anulações de dívidas privadas foram numerosas no 3º e 2º milénio a.C. na Mesopotâmia. Ver o seu artigo aqui: http://www.cadtm.org/A-longa-tradicao-de-anulacao-de
Depois disso, as lutas contra as dívidas privadas foram um dos principais motores da evolução do regime político e social grego nos séculos V e VI a.C. As reformas de Sólon visavam resolver a questão da escravatura provocada por dívidas.
O autor salienta que a generalização das trocas monetárias é uma novidade no século XIV, verificando-se durante a Idade Média uma evolução importante que leva à monetarização de uma série de relações sociais e ao desenvolvimento de bancos na Europa Ocidental. É nessa época que o capitalismo moderno começa a criar as suas raízes. Ver o artigo do autor: http://www.cadtm.org/Bancocracia-da-Republica-de-Veneza

7 Para mais informação sobre a auditoria à dívida no Equador, ver nomeadamente a entrevista video de Éric Toussaint; um outro excerto do video retirado do documentário Debtocracy; e o artigo correspondente.

8 Para mais informação sobre a Islândia, ler entre outros artigos (em francês) L’Islande est-elle un exemple d’alternative ?; e l’interview d’Eva Joly.

9 Para mais informação sobre a dívida grega, ler nomeadamente: La dette grecque; e les raisons de la capitulation et les alternatives possibles (artigo) http://www.cadtm.org/Grecia-Porque-a-capitulacao (vídeo em português)

10 Ler: Dez propostas para não repetir a capitulação que conhecemos na Grécia: http://www.cadtm.org/Dez-propostas-para-nao-repetir-a

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