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Sidney Lumet, um príncipe de Nova Iorque, mas fora do status quo

O cineasta americano com convicções de esquerda assume que se rende diante de “personagens rebeldes” pois “não aceitam o status quo”, permitindo-lhe assim “captar a essência do drama humano e da narrativa”. Por Paulo Portugal.
Sidney Lumet.
Sidney Lumet.

O cineasta americano de origem judaica e com convicções de esquerda, olha para a câmara e assume que se rende diante de “personagens rebeldes”, pois, segundo ele, “elas não aceitam o status quo”, permitindo-lhe assim “captar a essência do drama humano e da narrativa”. A câmara que observa Sidney Lumet (1924-2011) é a de Nancy Buirski quando filmou esta derradeira entrevista em 2008, três anos antes da sua morte. O documentário biográfico By Sidney Lumet foi apresentado em 2015, em Cannes, na secção Clássicos, e é seguramente, o complemento ideal para acompanhar o conjunto de 14 filmes da retrospectiva programada por Thierry Frémaux.

Depois da mostra dedicada o ano passado a Sidney Pollack, este ano o foco do Festival Lumière é ao outro Sidney, o Lumet, recuperando um conjunto muito relevante de obras restauradas deste cineasta que conta com mais de 70 títulos no seu currículo de realizador – entre cinema e televisão, ao longo de uma carreira que superou meio século e que lhe rendeu inúmeros êxitos, seis nomeações aos Globos de Ouro, e cinco nomeações aos óscares, sempre como realizador. Embora a história tenha sido tremendamente injusta pois apesar do reconhecimento, Lumet nunca recebeu a consagração de um Globo de Ouro ou um Óscar. Receberia apenas um Óscar honorário em 2005.

Impressionante é a sua carreira que fixa alguns dos filmes que marcaram várias décadas, em particular os anos 60, mas sobretudo a década de 70. Em todo o caso, uma enorme capacidade de trabalho justificada pela simples necessidade de sobrevivência. Isto em tempos da Grande Depressão. Algo que, graças à disciplina de uma típica família judaica de Nova Iorque, permitiu a Sidney afirmar-se desde cedo no mundo do showbizness.

Mas quem são estes rebeldes, com ou sem causa, em face das instituições americanas que põem à prova a sua integridade, mas também a revolta, em quase todos os seus filmes, conferindo assim uma expressão vincada de cinema aos guiões de enorme qualidade que filmou?

Esta ver (ou rever, sempre!) os filme para admirar algumas das figuras mais marcantes do cinema do seu tempo (e de vários tempos). Seja um imperial Al Pacino, a personagem incorruptível de Serpico (1973) ou na verdadeira “ferida aberta”, em Dog Day Afternoon/Um Dia de Cão (1975), ou o condenado Sean Connery que nunca baixa a cabeça, mesmo quando sobe A Colina Maldita/The Hill (1965), prolongando a sua dimensão camaleónica em outros filmes, como Anderson Tapes/O Dossier Anderson (1971), The Offence/O Delito (1973) ou até The Orient Express/O Crime do Expresso do Oriente (1974).

Doze homens em fúria (1957).

Lumet sempre soube combinar a excelência narrativa com a habilidade de convidar o nome mais calhado para interpretar essa trama. Frequentemente actores de grande envergadura que assumiam a sua visão. Veja-se a dimensão de Henry Fonda, insuperável a admitir a dúvida sobre os erros judiciários ou a pena de morte diante de 12 Angry Men/Doze Homens em Fúria (Urso de Ouro, em Berlim, 1957, na verdade o único prémio nos festivais de cinema mais relevantes); o mesmo Fonda, como Presidente americano, a contemplar uma decisão impensável, no drama nuclear Fail Safe/Missão Suicida (1964), hoje, irremediavelmente, visto com uma proximidade inesperada; ou, no seu oposto, um Rod Steiger, cuja personagem, depois de sobreviver a Auschwitz, em The Pawnmaker/O Agiota (1964), deixou de acreditar na Humanidade. Há ainda a rebeldia sem causa de um Marlon Brando e Anna Magnani, sublimes em The Fugitive Kind/O Homem na Pele da Serpente (1960), ou um River Phoenix e um Philip Seymour Hoffman que muito emocionam, em Running on Empty/Fuga Sem Fim (1988) e Before the Devil Knows You’re Dead/Antes que o Diabo Sabe que Morreste (2007), o derradeiro filme do cineasta nascido em 1924 na Pennsylvania e que nos deixaria em 2011, aos 86 anos.

Um Dia de Cão (1975).

Lumet citará mesmo Berthold Brecht e a Ópera dos Três Vinténs ao referir a máxima “primeiro alimenta a cara e depois distingue o bem do mal”. Aliás, o pai, também ele um actor de sucesso, leu-lhe Hamlet em yidish antes de ele o ouvir em inglês. Nessa altura, já Sidney ganhava os seus 36 dólares por semana, em um dos vários teatros judaicos da cidade, mesmo na Broadway (fez 13 teatros com imenso sucesso). Um método de trabalho contínuo, algo que se prolongou com a televisão e depois deu os seus frutos do cinema.

Fuga sem Fim (1988)

Quando pensamos no cinema de Lumet, sobretudo nesta oportunidade de rever nas melhores condições o seu cinema mais marcante – que é quase como o redescobrir de novo – percebemos como o seu foco não está tanto na mensagem, da moralidade da história, mas sobretudo do carinho pela personagem, deixando depois para para o espectador a tarefa de encontrar a sua própria conclusão. Uma coisa é certa, não há um movimento de câmara injustificado, sempre numa mise en scène profundamente reflectida, embora, ao mesmo tempo, discreta. Não será esse até ser o seu maior elogio?

Sobre o/a autor(a)

Jornalista de cultura e cinema, autor do site insider.pt
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