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Sementes: bem comum ou mercadoria?

Apenas quatro empresas transnacionais controlam aproximadamente três quartos do mercado global de sementes e agroquímicos. A magnitude e a velocidade desse processo de concentração corporativa são dramáticas. Por Carol Hernández.
Sementes. Foto de Thiago Locks/Flickr.
Sementes. Foto de Thiago Locks/Flickr.

O conceito de soberania de sementes reivindica-as como um bem público que não deve ser privatizado, nem regido pela lógica da acumulação capitalista.

Atualmente, vivemos um momento sem precedentes na história da agricultura. Apenas quatro empresas transnacionais controlam aproximadamente três quartos do mercado global de sementes e agroquímicos. A magnitude e a velocidade desse processo de concentração corporativa são dramáticas. Em 1985, para dar um exemplo, as então quatro empresas líderes do setor controlavam apenas 8% desses mercados. Essa situação começou a mudar nos anos 1990, com o desenvolvimento de diferentes processos, entre eles:

- O desmantelamento e a privatização das instituições públicas focadas na pesquisa em sementes e fitomelhoramento;

- A liberalização dos setores agropecuários e de sementes em praticamente todos os países do sul;

- A consolidação de um regime internacional de patentes e Direitos de Propriedade Intelectual (DPI) sobre germoplasma, que se consolidou na União para a Proteção de Novas Variedades de Plantas (UPOV);

- A proliferação de Organismos Geneticamente Modificados (OGM) em todo o mundo, seja na forma de sementes, cultivos e alimentos processados (hoje, os OGM representam cerca de um terço do mercado global de sementes, o que é significativo e preocupante se consideramos que são todos regidos por patentes e DPI);

- A acelerada fusão das grandes empresas de sementes e agroquímicos, principalmente na última década.

Atualmente, os sistemas nacionais de sementes, agricultura e alimentação dependem em algum grau dessas quatro grandes corporações agroalimentares: a empresa alemã Bayer, que comprou a Monsanto em 2018, a norte-americana DowDupont, a chinesa ChemChina, que adquiriu a suíça Syngenta e a também alemã BASF. Como podemos observar, as quatro líderes pertencem a nações hegemónicas, composição que reflete o equilíbrio dos poderes político, económico, financeiro, científico e militar que regem o mundo contemporâneo.

Essa rápida concentração do poder corporativo sobre a agricultura desencadeou o surgimento de respostas da sociedade civil, tanto a nível local, como nacional e internacionalmente, que recentemente se reuniu em torno do conceito de “soberania de sementes”. Karine Peschard e Shalini Randeria definem ativismo pelas sementes como qualquer ação que se oponha à sua privatização e defenda os direitos individuais e coletivos em relação a elas.

Por sua vez, Vandana Shiva, uma das ativistas mais importantes e reconhecidas em todo o mundo, enfatiza que o termo “soberania de sementes” estabelece as sementes e a biodiversidade como um bem público e comum, em oposição a um bem privado e uma mercadoria.

Jack Kloppenburg amplia esta definição e distingue claramente entre as dimensões constitutivas, as plataformas de oposição e as orientações afirmativas do movimento de soberania de sementes:

- Dimensões constitutivas: o direito de guardar e replantar a semente, o direito de compartilhar sementes, o direito de usar sementes para a criação de novas variedades, e o direito de participar da definição de políticas públicas relacionadas aos sistemas nacionais de sementes;

- Plataformas-chave de oposição: oposição aos direitos de propriedade intelectual e aos OGMs;

- Orientações afirmativas: proteção e troca de sementes a nível comunitário, fitomelhoramento participativo e agroecológico, soberania legal sobre as sementes e a abertura das sementes aos aliados.

Os antecedentes desse movimento social localizam-se no final dos anos 1970, com o surgimento do ativismo social pela regulamentação da Biotecnologia, e no início dos anos 1980, com a difusão do conceito de direitos dos agricultores. Desde então, ativistas e intelectuais de todo o mundo têm chamado a atenção para as implicações ecológicas, sociais e éticas da Engenharia Genética, as políticas da "Revolução Verde" e a crescente concentração do poder corporativo sobre os recursos genéticos. Posteriormente, nos anos 1990, com o surgimento do movimento transnacional “Via Campesina”, começaram a fundir-se as agendas da soberania alimentar, dos direitos dos agricultores e do controle da Biotecnologia, conforme mencionado mais acima.

Em conjunto, esses processos refletem uma crescente contradição entre o que Kloppenburg define como soberania corporativa sobre as sementes, um sistema governado por patentes e Direitos de Propriedade Intelectual, e a soberania dos povos sobre as sementes, quando estes as consideram bens comuns que não devem ser regidos pela lógica da acumulação capitalista.

Numa perspetiva teórica, levando em conta o conceito de duplo movimento de Karl Polanyi, podemos pensar esses processos contraditórios como uma relação dialética entre a tendência inata do capital de mercantilizar as condições, atividades e meios da existência humana, com o objetivo de aumentar a acumulação e os lucros, e o surgimento, em resposta, de contramovimentos sociais, como o de soberania de sementes, que procuram resistir a esta expansão capitalista e impor à economia e ao mercado limites sociais, políticos e morais. Uma questão relevante seria: como podemos proteger efetivamente as sementes como um bem comum contra o avanço do capital sobre a agricultura?


Carol Hernández é doutorada em Sociologia pela Portland State University, do Oregon. É professora da Universidade Nacional Autónoma do México.

Artigo publicado originalmente no site Animal Político. Traduzido pelo Cepat e publicado pela Unisinos. Adaptado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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