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Sauditas e iranianos: o que traz este acordo?

O acordo entre a Arábia Saudita e o Irão não trará paz ao Médio Oriente, mas vem reforçar o papel da China enquanto mediador do poder na região. Por Simon Mabon.
Ministro saudita Musaad bin Mohammed Al-Aiban, responsável da comissão de Negócios Estrangeiros do PC chinês Wang Yi e o secretário do Conselho Supremo de Segurança Nacional do Irão Ali Shamkhani. Foto de Luo Xiaoguang/agência Xinhua.

Após mais de quatro décadas como inimigos aparentemente implacáveis de ambos os lados de uma profunda divisão político-religiosa no Médio Oriente, a Arábia Saudita e o Irão concordaram em restabelecer as relações diplomáticas e reabrir as embaixadas. O acordo, que foi assinado em Pequim, surge sete anos após as relações diplomáticas terem sido cortadas na sequência da execução na Arábia Saudita do clérigo xiita Nimr Al Nimr e foi anunciado como um "momento de viragem" para o Médio Oriente.

Embora seja inegavelmente um passo positivo, o acordo não porá fim ao conflito na região - com graves questões internas a continuarem a conduzir a conflitos e violência no Iémen, Iraque, Líbano e Síria. No entanto, sérios desafios económicos levaram os sauditas e iranianos a encetar conversações diplomáticas nos últimos anos para criar uma ordem regional mais estável, permitindo que os seus países se envolvessem em programas de reforma interna como resultado.

A rivalidade entre Riade e Teerão tem raízes turbulentas, moldadas pela conjugação de preocupações de segurança, pretensões de liderança sobre o mundo muçulmano, rivalidades etno-sectárias, e diferentes relações com Washington. Análises preguiçosas têm frequentemente reduzido a rivalidade a um conflito sectário, uma consequência de "ódios antigos". Mas tal leitura dos acontecimentos é xenófoba e orientalista e ignora o contexto e as contingências que determinam as relações entre os dois Estados.

Apesar das origens fraturantes, as relações entre os dois estados têm oscilado entre a hostilidade explícita e a crescente distensão desde o nascimento da República Islâmica do Irão em 1979, desenrolando-se de formas diferentes em todo o Médio Oriente.

Região conturbada

A presença de identidades religiosas, étnicas e ideológicas partilhadas em toda a região também levou alguns a ver o conflito em toda a região através da lente das "guerras por procuração". Vários grupos no Iémen, Síria, Líbano, Iraque, Bahrein e noutros lugares têm sido vistos como fazendo meramente a vontade dos donos em Riade ou Teerão. Isto ignora os fatores internos de conflito e divisão, reduzindo a análise ao simplismo binário que coloca sunitas contra xiitas.

 O Médio Oriente está cheio de conflitos, tanto políticos como sectários. É pouco provável que a reconciliação entre Riade e Teerão mude fundamentalmente isso. Imagem da Biblioteca do Congresso dos EUA.

Em toda a região, os estados onde os interesses sauditas e iranianos se confrontaram foram também assolados por uma série dos seus próprios desafios socioeconómicos e políticos complexos.

Desde que Saddam Hussein foi deposto, o Iraque tem sido caracterizado por uma luta entre várias fações para dominar o Estado. Os partidos xiitas, representando a maioria do país, têm normalmente ganho eleições, muitas vezes com o apoio do Irão e para grande desgosto da Arábia Saudita. No entanto, pensar na política iraquiana apenas como representando uma guerra por procuração entre os seus dois vizinhos seria errado. Ignora as preocupações internas de muitos e as tentativas de criar uma paisagem política que funcione para os iraquianos e não seja apenas uma arena para Riade e Teerão aumentarem o seu poder.

No Iémen, embora a Arábia Saudita e o Irão tenham ambos desempenhado um papel proeminente na guerra civil, os principais motores do conflito são internos, no meio de uma luta mais vasta sobre território, política, visões de ordem, tribalismo, recursos e diferença sectária. O envolvimento de Riade e Teerão - de formas diferentes - agrava estas tensões. Os receios sobre os ganhos dos rebeldes Houthi apoiados pelo Irão por todo o Iémen levaram a Arábia Saudita a iniciar uma devastadora campanha de bombardeamentos para refrear as ações do grupo.

O apoio de Teerão aos Houthis - e os ataques do grupo ao território saudita - exacerbaram os receios do reino. No entanto, a guerra no Iémen é também uma consequência da fragmentação do Estado e da emergência de vários grupos diferentes que lutam por influência numa paisagem assolada por sérios desafios ambientais e escassez de alimentos.

No Líbano, uma crise sócio-económica devastadora desenrola-se na estrutura do Estado, com grupos sectários a darem apoio e proteção aos seus eleitorados em substituição de um governo funcional. Grupos-chave têm recebido apoio da Arábia Saudita e do Irão - mais notoriamente o Hezbollah, que possui fortes ligações ideológicas com a República Islâmica, e o Movimento do Futuro, o partido do governo durante a maior parte da última década, que tem uma relação complexa com a Arábia Saudita.

Os sauditas e iranianos têm claramente um grande interesse na política libanesa. Mas na realidade, aqui qualquer conflito resulta da competição entre grupos locais que procuram impor as suas visões de ordem a uma paisagem política, social e económica precária.

Embora haja poucas dúvidas de que a Arábia Saudita e o Irão têm os meios para exercer influência na política em toda a região, os grupos locais têm as suas próprias agendas, aspirações e pressões. Resta ver como a reconciliação entre Riade e Teerão irá ter eco em espaços marcados pela divisão.

Há sem dúvida aspetos positivos para a segurança regional. A reconciliação melhora a possibilidade de ressuscitar o acordo nuclear com Teerão - embora ainda esteja por ver o que a Arábia Saudita ofereceu ao Irão para facilitar o acordo, e vice-versa. Além disso, há dúvidas sobre quais os mecanismos de controlo e aplicação que a China colocou no acordo.

O papel da China

Talvez o aspeto mais intrigante de tudo isto diga respeito ao papel da China neste processo. Embora os esforços diplomáticos destinados a melhorar as relações entre os dois rivais tenham tido lugar durante vários anos, a capacidade da China para forjar um acordo a partir destas conversações aponta para a crescente influência de Pequim na região.

Há muito que a China mantém laços económicos estreitos com o Irão, mas nos últimos anos Pequim tem procurado aumentar o seu envolvimento com os Estados árabes, nomeadamente o Iraque e a Arábia Saudita. A deterioração das relações entre as duas maiores potências do Golfo teria tido um impacto negativo no envolvimento e investimento chineses em todo o Médio Oriente, tanto em termos dos seus projetos de infra-estruturas como da Iniciativa da Nova Rota da Seda.

Embora os EUA tenham saudado publicamente a iniciativa, em privado existem várias preocupações sobre as implicações mais vastas para o Médio Oriente e para a política global. Isto ocorre numa altura em que as relações entre Riade e Washington estão tensas.

 Encontro de Joe Biden com Mohamed bin Salman em Jeddah. Foto da agência de notícias saudita SPA.

Isto ficou porventura mais patente na visita do presidente dos EUA, Joe Biden, à Arábia Saudita após as suas críticas categóricas ao historial de direitos humanos do reino e a publicação de um relatório afirmando que o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman aprovou a operação para matar o jornalista Jamal Khashoggi, um cidadão dos EUA. Durante a visita, Biden e bin Salman tiveram uma reunião tensa que, em grande parte, não conseguiu melhorar as relações e salientou a natureza precária das relações.

Neste ambiente, a crescente influência chinesa no reino e em todo o Médio Oriente não surpreende. A entrada da China na mediação dá um pouco de esperança de que também se possa chegar a um acordo para acabar com a guerra na Ucrânia, mas a que custo? O modelo chinês de investimento e a prestação de "ajuda sem compromissos" - a prestação de apoio financeiro sem condições - há muito que ignora as preocupações com a democracia e os direitos humanos. Assim, o acordo entre sauditas e iranianos tem sido lido por alguns como uma vitória do autoritarismo, marginalizando ainda mais os movimentos pró-reforma em ambos os países.

Tal como os EUA, Israel também está preocupado com o acordo. Para os sucessivos governos israelitas, o Irão ocupou durante muito tempo o papel de "bête noire" regional, que acabou por alimentar a assinatura dos Acordos de Abraão no Verão de 2020, que normalizaram as relações entre Israel, os Emirados Árabes Unidos, o Bahrain e Marrocos no quadro de uma aliança estratégica contra Teerão. O governo de Netanyahu há muito que procura normalizar as relações com a Arábia Saudita e espera utilizar a ameaça iraniana como um meio para alcançar este objetivo.

Além disso, o acordo levanta questões sobre o futuro da segurança regional. Os EUA são há muito um mediador em disputas regionais e têm sido vistos como um garante de segurança por parte de Israel, Arábia Saudita e outros estados do Golfo. As ações da China neste domínio indicam que este país está a procurar afirmar-se mais intensamente na política da região. Há notícias de que Pequim irá acolher uma reunião de líderes árabes e iranianos no final do ano. A confirmarem-se, a China posiciona-se firmemente como um - se não o - protagonista em todo o Médio Oriente.

Uma reconciliação entre sauditas e iranianos é seguramente benéfica para a ordem regional. Mas não irá resolver as causas do conflito no Iémen ou em qualquer outra parte da região. Também levanta várias questões importantes em torno da segurança regional e da ordem global, da importância da democracia e dos direitos humanos, e do futuro do envolvimento dos EUA com o Médio Oriente.

Embora a iniciativa seja um passo positivo, não é uma solução para os conflitos da região. Este acordo mediado por Pequim pode, de facto, conduzir a mais desafios importantes para a população da região.


Simon Mabon é professor de Relações Internacionais na Universidade de Lancaster. Artigo publicado no portal The Conversation. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.

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