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PSOE entre o imobilismo e a aliança com o Podemos

Nas primárias de maio e no congresso de junho dos socialistas espanhóis, o que está em causa é a resolução da crise de governabilidade que afeta o regime. Artigo de Jaime Pastor.
Foto FSA-PSOE/Flickr

A crise do PSOE – de identidade, de projecto e de liderança- continua aberta. Como já analisámos em outros artigos [1], tem traços comuns com a que afeta a social-democracia europeia, devido principalmente aos limites estruturais das políticas social-liberais no marco da crise sistémica e da União Europeia austeritária e à crescente perda de apoios na sua base social tradicional. A estes somam-se os que o têm debilitado enquanto pilar principal de um regime em crise, tanto no plano social como no nacional-territorial, convertendo-o num partido com uma base social envelhecida e concentrada principalmente no sul, sob o controlo de uma nomenclatura que continua agarrada aos interesses do regime e do bloco de poder dominante. Um conjunto de fatores aos quais se acrescenta outro que não se dá com tanta força noutros países: a ascensão de uma coligação de forças encabeçada pelo Podemos que continua a ameaçá-lo, apesar das suas atuais dificuldades, de o superar em votos e que já governa com o seu apoio em autarquias emblemáticas de grandes cidades.

Agora, a convocação pelo Comité Federal do PSOE de eleições primárias para eleger o/a Secretário/a Geral a 21 de maio e do próximo Congresso nos dias 16 a 18 de junho torna oficial o maior confronto a que assistiremos neste partido desde o famoso Congresso de Suresnes de 1974. Na verdade, essa batalha interna está aberta desde as eleições de junho de 2016 e, sobretudo, desde 1 de outubro passado. Foi esse o funesto dia em que se produziu a defenestração programada como “operação de Estado” (na acertada definição de Pérez Tapias) contra Pedro Sánchez como Secretário Geral deste partido, com o fim de poder garantir a investidura de Mariano Rajoy como presidente do governo mediante a abstenção do grupo parlamentar socialista. Desde então, a hostilidade entre a nova Gestora [a comissão de Gestão que sucedeu à demissão de Sánchez] e um amplo setor da militância socialista não tem parado de crescer.
Três candidaturas, as de Susana Díaz, Patxi López e Pedro Sánchez, vão lutar agora pelo lugar número 1 do PSOE e a sua primeira prova de força será à volta de quem consegue maior número de avais, com a líder andaluza desde já disposta a impor-se por goleada. Díaz conta para isso com o apoio da Gestora actual e da maioria dos que têm integrado a elite deste partido desde pelo menos 1982, enquanto Sánchez ameaça com o apoio da maioria da militância e López com a sua esperança em aparecer como o único capaz de recompor a unidade interna e evitar o “choque de comboios”.

Haverá debate político?

Até agora, no entanto, temos assistido a pouco debate de projetos. O primeiro que tentou abri-lo foi Pedro Sánchez com um documento que, elaborado por uma equipa na qual têm participado desde ex-“guerristas” [afetos ao histórico ex-dirigente Alfonso Guerra] até membros de Esquerda Socialista, foi apresentado em fevereiro com o lema “Por uma nova social-democracia”. Nesse documento e nos discursos que tem feito em comícios que têm contado com assistência massiva, aparece uma vontade de se ligar timidamente aos novos ventos que sopram em alguns partidos próximos, como o britânico ou o francês, com o aparecimento de Jeremy Corbyn e Benoit Hamon. Encontramos, por exemplo, uma crítica radical do rumo que está a tomar o capitalismo neoliberal e, com ele, o conservadorismo do PP, junto com uma aposta em renovar um projeto social-democrata que inclua princípios como a igualdade de género, sustentabilidade ecológica e democracia social. Também é significativo, por exemplo, que se assumam explicitamente críticas como a do PIB como critério de riqueza (dirigindo-se, supõe-se, contra economistas como José Carlos Díez, coautor da conferência marco) e um maior esforço por reformular o conceito de trabalho, incluindo o de cuidados.

Nas suas propostas programáticas destacam-se algumas novidades como a partilha do trabalho assalariado, um salário mínimo de 1.000 euros, o debate sobre o Rendimento Básico Universal, ou a reforma da Constituição para blindar direitos e liberdades, embora se limitem a pedir a modificação do artigo 135 “para garantir a estabilidade orçamental e a estabilidade social”. No entanto, há poucas novidades quanto à questão catalã: reivindicação da Declaração de Granada de 2013 para avançar para o “aperfeiçoamento federal” do Estado autonómico, ainda que numa entrevista Sánchez se tenha atrevido a dizer que reconheceria a Catalunha como uma “nação”. No plano interno, destaca-se uma defesa dos processos “de baixo para cima” face aos procedimentos da Gestora (e do próprio Sánchez no passado, quando destituiu Tomás Gómez de Secretário Geral do partido na Comunidade de Madrid) e inclusive uma menção explícita à necessidade de acabar com os imunidades e as “portas giratórias”.

O que é que separa este documento e a esta candidatura das outras? Na realidade, é a vontade de não considerar o Podemos como o principal adversário quando expressa, por exemplo, a sua recusa em entrar “em choques frontais e sistémicos com outras formações da esquerda nem confundir-se com elas”. A simples referência implícita a uma possível futura aliança com Podemos e as confluências para chegar ao governo do Estado lança faíscas dentro do aparelho do partido e converte Sánchez no inimigo a abater para os que fazem parte, como se diz na introdução deste documento, de uma “elite profissionalizada do partido”.

Posteriormente, tivemos conhecimento do documento apresentado por Patxi López (“Com Patxi ganhamos tod@s”), prolixo em alguns pontos mas com uma tese muito clara, tal como a ele próprio resumiu: “Entre Hollande e Corbyn ficamos com Martin Schulz”, querendo associar-se a quem aparece como possível “cavalo ganhador”, embora num contexto muito diferente do espanhol. López aspira assim a atrair “a centralidade política à esquerda” e recuperar a desejada autonomia face ao PP e ao Podemos. Uma “terceira via” que responde melhor ao desejo de se manter na ambiguidade no que toca à política de alianças futura para poder assim agrupar um amplo espectro do partido que, no entanto, parece cada vez mais polarizado. Apesar disso, no plano programático tem optado por colaborar na conferência marco recentemente aprovada pelo Comité Federal a 1 de abril, com o que dificilmente irá ganhar credibilidade como alternativa a Díaz e a Sánchez, para além de sua vocação de fazer de “capacete azul”.

A conferência marco oficial, pendente ainda das emendas que se possam apresentar no Congresso, dificilmente pode ocultar o seu alinhamento com as teses defendidas pela coligação de interesses agrupada em torno de Susana Díaz. Basta simplesmente observar que começa com uma firme reivindicação do papel assumido a partir de 1 de outubro no “desbloqueio institucional da nossa democracia”, ou seja, em permitir ao PP de Rajoy governar. A partir daí e da definição da ultradireita e “o populismo” como seus principais adversários, nota-se uma firme vontade de recusar “a deslegitimação populista da Transição” [2] e uma reafirmação da “democracia representativa como uma forma ótima de democracia”, com esta a ser identificada com o regime atual, livre, isso sim, do que definem como “riscos de corrupção”...

Será a partir da firme defesa desse regime, com “ambição reformista” (sic), que o PSOE procurará recuperar os votantes socialistas que votaram noutros partidos, sempre mediante a busca do consenso e evitando a polarização da sociedade. Ou seja, apostando pelo desejado e impossível “centro” político. No que respeita à União Europeia e à globalização, embora se reconheça que “o descontentamento social com a gestão da crise alimenta o populismo europeu”, dirige-se uma crítica moderada a uma política económica considerada “errónea” e incluem-se propostas repetidas muitas vezes mas nunca levadas à prática quando têm governado, como a Taxa Tobin ou a eliminação dos paraísos fiscais. Por outro lado, a sua apologia do livre comércio internacional leva-os a justificar o seu apoio ao CETA.

Porém, o que mais parece preocupar a elite dirigente é a ameaça que levanta a “democracia assambleária” face à “representativa” (ou seja, a dos “barões” que vêem o seu oligopólio ameaçado pelas bases): daí que pretendam circunscrever as consultas à militância no futuro, face à exigência de obrigatoriedade de consultar a militância quanto aos acordos de governo, como propõe o documento de Sánchez.

”Grande Coligação” ou confrontação com o PP e a austeridade neoliberal?

No entanto, para além das diferenças, em todos estes documentos é fácil encontrar traços comuns: uma reivindicação acrítica do legado da Transição e dos governos socialistas (que leva inclusive a esquecer não só o papel pioneiro de Felipe González nos inícios da onda longa neoliberal como, mais recentemente, a deriva austeritária de Rodríguez Zapatero em maio de 2010), junto com a da tradição da social-democracia europeia (a de Bad Godesberg para a frente, claro); um questionamento de algumas das políticas da União Europeia, mas querendo atirar toda a responsabilidade pelas mesmas à direita conservadora e evitando qualquer menção à crise grega; uma tentativa de atualização programática, fazendo as consequentes referências ao ecologismo e ao feminismo, sem por isso renunciar ao fetichismo do “crescimento económico”; e uma defesa comum, por fim, da Declaração de Granada [3] como resposta ao soberanismo catalão, bem como uma rejeição de qualquer tentação de abrir um processo constituinte.
Em suma, é em torno da escolha entre uma ou outra forma de “Grande Coligação” com o PP e o Ciudadanos, por um lado, e a aliança com o Podemos e as “confluências” para fazer frente comum contra o PP e a austeridade neoliberal, por outro, que vai girar o debate interno nos próximos meses. A nostalgia pela hegemonia na esquerda convencional preside ao discurso de uma Susana Díaz empenhada em manter a ilusão de extrapolar a sua liderança andaluza - já debilitada e condicionada pelo apoio do Ciudadanos - a todo o Estado, enquanto Pedro Sánchez e sua equipa dão por fechada essa etapa e apostam em olhar à sua esquerda, conscientes de que a direção de Podemos também tem chegado à conclusão da difícil “pasokização” do PSOE.

Estando conscientes dos limites em que se move este confronto –na realidade, os da busca da melhor táctica para voltar a ser “alternância” ao PP no governo, associados à luta pelo poder e pela sua própria sobrevivência como parte do regime -, nem por isso podemos ser indiferentes ao seu desenlace. Porque, como bem demonstram o PP e a grande maioria dos meios de comunicação, o seu apoio inegável a Susana Díaz deixa bem claro que o que está em jogo é a resolução num sentido ou outro da crise de governabilidade que afeta o regime e o seu possível agravamento nos próximos tempos [4].

Por isso mesmo deveríamos aproveitar este debate para, respeitando a autonomia deste partido, abrir a oportunidade de, como se dizia no documento político do Podemos “Em Movimento”, apresentado na Assembleia de Vistalegre II, “dialogar com toda essa gente que se diz do ‘socialismo’ por razões históricas ou de identidade. É fundamental que esse diálogo não se baseie em tratar de imitar a social-democracia, mas em superar num horizonte de ruptura pós-capitalista, dando um verdadeiro sentido de reconhecimento àqueles que se sentem socialistas de coração, às suas esperanças num mundo mais igualitário, permitindo fazer balanços críticos de maneira conjunta”. Tarefa, sem dúvida, inseparável do trabalho em comum nos movimentos sociais e nos espaços públicos de luta em qie nos que podemos encontrar nos próximos meses.

4/04/2017
Jaime Pastor é professor de Ciência Política da UNED e editor da revista Viento Sur. TRaduzido por Luís Branco para o esquerda.net.
 


Notas:

[1] Por exemplo: “En la permanente crisis de la socialdemocracia”, Brais Fernández e Jaime Pastor, *ctxt, 12/10/2016.

[2] Chama a atenção, não obstante, que apesar dessa reivindicação da Transição, se mencione nesta Conferência que ao longo da história deste regime tenha havido “três momentos dominados pela desafeição” (p. 39), reconhecendo que o primeiro foi o que se produziu no final dos anos 70 do passado século, o “desencanto”, justamente face aos frutos amargos dessa Transição “modelar”. Em que ficamos?

[3] Para uma crítica do conteúdo dessa Declaração remeto-me a meu artigo “Ni federalismo plurinacional ni derecho a decidir. A propósito del documento del PSOE”, Viento Sur”, 09/07/2013. Disponível em www.vientosur.info/spip.php?article8144  .

[4] O calendário estabelecido permite, para além disso, a hipótese de que os resultados das primárias possam entrar em contradição com o documento político que venha a ser aprovado no Congresso, com o qual o conflito de legitimidades seria evidente.

 

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