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Produzir em Portugal: o quê e para quê

As visões para o futuro do padrão de especialização da economia portuguesa são diversas e apontam em diferentes direções. Importa por isso discutir o que se pretende alcançar com a qualificação produtiva e qual a direção que queremos que esta assuma. Por Alexandre Abreu.
Foto de Paulete Matos

As transformações da estrutura produtiva da economia portuguesa têm nos últimos anos ocupado um lugar cada vez mais importante no debate público. Questões como a desindustrialização e a reindustrialização, a importância crescente do turismo, o declínio ou a requalificação dos setores tradicionais, bem como a promoção de indústrias intensivas em conhecimento são objeto de problematização e debate em período de campanha eleitoral e de elaboração de relatórios e planos. É aceite de forma generalizada que o padrão de especialização e o perfil setorial do emprego e do produto são determinantes fundamentais dos níveis de prosperidade e qualidade de vida no nosso país, na medida em que afetam decisivamente a produtividade, o nível dos salários e a qualidade do emprego. No entanto, há muito menos unanimidade em torno das formas mais adequadas de promover a transformação produtiva ou de qual deve ser a direção a tomar por essa transformação. 

Esta discussão, claro está, não é exclusivamente nacional: em todo o debate internacional acerca da política industrial – isto é, acerca do que é que os governos podem e devem fazer para orientar a transformação da estrutura produtiva –, opõem-se tradicionalmente duas grandes perspetivas, respetivamente liberal e desenvolvimentista, que olham para estas questões de formas muito distintas. A primeira desconfia da capacidade dos governos de identificarem corretamente os setores em que apostar, considera que o padrão de especialização de cada economia tenderá a refletir «naturalmente» a sua dotação de fatores produtivos e qualificações, e advoga que o melhor que os governos podem fazer é criar um «ambiente de negócios favorável» através da redução de impostos, de desregulação laboral e da simplificação administrativa, a par do investimento em educação e infra-estruturas. Por outras palavras, para esta perspetiva a melhor política industrial é a ausência de política industrial ou, quando muito, uma política industrial horizontal e não seletiva. Em contrapartida, para a perspetiva mais desenvolvimentista e intervencionista, o Estado pode e deve guiar o sentido das transformações da estrutura produtiva, promovendo a sua qualificação e utilizando para o efeito instrumentos como os subsídios, o crédito bonificado, as compras públicas, a concessão de benefícios fiscais ou instrumentos alfandegários de proteção face à concorrência exterior. Segundo esta perspetiva, os processos de desenvolvimento económico e de qualificação produtiva envolvem saltos não incrementais naquilo que se produz e requerem a coordenação de esforços entre atores públicos e privados, não dispensando a ação do Estado.

Este confronto de perspetivas favoráveis e desfavoráveis à política industrial tem dominado a discussão académica e política sobre estas matérias há várias décadas, com avanços e recuos de parte a parte, ao sabor da evolução da hegemonia das ideias e do contexto político e económico global. Por exemplo, depois de ter sido objeto de proscrição por heterodoxia durante as décadas de ascensão triunfante do neoliberalismo – não obstante ter continuado sempre a ser praticada de facto, mesmo por governos professamente liberais –, a política industrial voltou a adquirir uma certa respeitabilidade e aceitação na última década, facto a que não serão estranhos a ascensão da China como potência económica concorrente e o aumento das tensões geopolíticas globais. Porém, esta visão dualista e relativamente simplista das alternativas em presença passa ao lado da questão do que é que se pretende alcançar com a qualificação produtiva, como se esta fosse uma questão meramente técnica e como se houvesse um único caminho susceptível de ser trilhado. Mesmo para quem aceita que o Estado tem um papel central a desempenhar na qualificação produtiva, tudo se passa quase sempre como se houvesse um único critério para essa qualificação: aumentar a produtividade e o valor acrescentado, olhando para as economias que, à luz destes critérios, são um pouco mais prósperas do que nós e procurando imitar aquilo que produzem.

Ora, a questão é bastante mais rica e complexa do que isso: diferentes padrões de especialização e diferentes direções de qualificação produtiva podem ser mais ou menos extrativistas e destrutivos do ambiente; podem ser mais conducentes à concentração do rendimento e da riqueza ou mais favoráveis à redução das desigualdades; podem propiciar mudanças tecnológicas mais favoráveis aos trabalhadores ou ao capital; podem valorizar mais ou menos a dimensão da provisão não mercantil de bens e serviços, e preocupar-se mais ou menos com o problema dos equilíbrios territoriais; podem promover mais ou menos a autonomia estratégica e a soberania produtiva, energética e alimentar. A questão não é apenas se o Estado deve ou não ter uma política industrial, nem apenas se esta deve ser seletiva ou horizontal; a questão é também que tipo de país queremos construir e como é que o padrão de especialização da economia e a política industrial podem contribuir para trilharmos esse caminho.

Três visões

No contexto português, encontramos três visões que de alguma forma ilustram os diferentes matizes deste problema. A primeira é a proposta de adoção de um «modelo Flórida» para Portugal: a especialização de Portugal no turismo e no acolhimento de expatriados ricos e reformados de outros países, tirando partido da dotação natural do país em termos de clima, condições naturais e património histórico e cultural, mas reconhecendo ao mesmo tempo (e dando por adquirida) a relativamente baixa estrutura de qualificações e intensidade de capital. Este modelo caracteriza-se por um entendimento estático das vantagens da economia portuguesa, pela ausência de problematização das disfuncionalidades do padrão de especialização proposto (desde as fracas perspetivas de evolução da produtividade e dos salários até à precariedade laboral e ao aumento explosivo do custo da habitação) e pela ênfase em medidas regressivas de promoção da competitividade, como a desregulação laboral, a redução dos impostos sobre as empresas e a compressão salarial. Na melhor das hipóteses, admite a possibilidade de desenvolvimento e qualificação derivados em setores como a prestação de cuidados de saúde aos reformados que nos procurem para viver. Esta é uma visão que pode ser associada ao economista Olivier Blanchard, que formulou e nomeou explicitamente o modelo num artigo de 2007[1], mas a sua influência é muito alargada – sendo predominante na maior parte da direita mas fazendo-se também sentir cada vez que alguém considera que «o conceito de turismo a mais não existe, não tem sentido», como afirmava em 2016 o atual ministro das Finanças e, à época, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina[2].

Um segundo tipo de visão é o que consta do plano elaborado por António Costa Silva em 2020 e adotado pelo governo de António Costa[3] como documento orientador da implementação do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Em contraste com a anterior, entramos aqui claramente no domínio do planeamento, com a formulação de uma visão estratégica para o futuro que articula a definição de objetivos e a identificação de medidas e instrumentos de política pública para prosseguir esses objetivos. Pretende-se encetar um processo de desenvolvimento económico assente na qualificação da estrutura produtiva e nas transições digital e energética, mobilizando para isso o investimento público e privado, instrumentos regulatórios e incentivos diversos. Em termos de padrão de especialização, privilegia-se a reinvenção dos setores tradicionais através da inovação e incorporação de maior conteúdo tecnológico e a promoção de domínios como a exploração dos recursos marinhos, as energias renováveis, plataformas logísticas, ciências da saúde, eletrónica e software, e outros. É enorme a diferença que separa esta visão qualificadora, reindustrializadora e com preocupações sociais, culturais e ambientais da visão estática e regressiva do modelo Flórida. Mas há também duas críticas principais que podem ser-lhe feitas. Por um lado, não resiste à tentação da deriva extrativista nas suas propostas relativas à economia do mar e à exploração dos recursos naturais. Por outro lado, é uma visão em grande medida apolítica, no sentido em que olha para a sociedade portuguesa como um todo homogéneo e não conflitual, e no sentido em que o desenvolvimento é problematizado de forma competente e inteligente, mas essencialmente como problema técnico. As preocupações sociais concretizam-se sob a forma de propostas de correções redistributivas – acrescentos importantes mas que não consideram a possibilidade de a própria orientação da estrutura produtiva contribuir, desde logo, para dar corpo e forma a uma sociedade mais coesa, mais justa e menos vulnerável.

Para um exemplo de uma abordagem que aponte pistas neste último sentido, um bom local para começar é a pequena obra de José Reis, também publicada no Verão de 2020, intitulada Cuidar de Portugal[4]. O título resume a proposta que aí é delineada: privilegiar uma economia do cuidado, da produção orientada para a proximidade, da deliberação democrática e que coloque os valores de uso acima dos valores de troca. Isso implica reforçar a auto-suficiência e os sistemas locais de produção, reorganizar a agricultura, a indústria e os serviços públicos e privados, de modo a desfinanceirizá-los e valorizar o trabalho neles incorporado, bem como defender os serviços públicos e a provisão não-mercantil. Em suma, «recolocar a economia em relação com a comunidade que deve servir». Esta abordagem enfatiza menos a identificação de setores-chave do que de processos-chave e critérios-chave que devemos ter em conta, mas não é difícil retirar daqui implicações em termos dos primeiros. Seguramente, não queremos uma hiperespecialização produtiva em serviços de baixo valor acrescentado, com baixos salários e que desorganizam as nossas cidades como espaços de vida. Também não queremos competir por ocupar segmentos fragmentários de cadeias de valor globais sobre as quais não temos qualquer controlo e que pouco acrescentam localmente. Nem queremos um crescimento económico assente numa extração irresponsável de recursos naturais que destrua ecossistemas marinhos e terrestres. Há que qualificar, reindustrializar e modernizar o nosso país, mas há que fazê-lo privilegiando o trabalho, o ambiente, as comunidades locais e aquilo que é comum.

Onde estamos e para onde queremos ir

Pode dizer-se com propriedade que nos encontramos num momento de charneira no que diz respeito ao padrão de especialização da economia portuguesa. Na sequência da adesão à União Económica e dos choques competitivos que lhe estiveram associados, incluindo em termos de sobrevalorização cambial real, a economia portuguesa passou por um período relativamente longo de desqualificação da estrutura produtiva, caracterizado pela desindustrialização e pelo aumento do peso de setores não-transaccionáveis como a construção, o imobiliário ou a distribuição. Durante o período de «ajustamento económico-financeiro», a continuação da tendência de desindustrialização, a desvalorização interna e o forte aumento do peso, no emprego e no produto, dos serviços de baixa produtividade e baixos salários asseguraram a consolidação do modelo Flórida no nosso país, com consequências conhecidas ao nível da evolução dos salários, da precariedade laboral e das dinâmicas imobiliárias e urbanas[5]. Nos anos mais recentes, porém, pudemos assistir a alguns desenvolvimentos mais positivos. Entre 2015 e 2021, a economia portuguesa viu aumentar o peso do emprego em setores de alta tecnologia de 2,7% para 4,2% do total. O emprego na indústria, depois de cair de 867 para 703 milhares entre 2008 e 2013, recuperou parcialmente, para 835 mil em 2019 (e 808 mil em 2021, já em pandemia)[6]. Nos últimos meses, têm sido várias as notícias que dão conta do reforço da capacidade de atração de novos projetos de Investimento Direto Estrangeiro (IDE) pela economia portuguesa, a que não serão estranhas a depreciação cambial real consistentemente registada ao longo da última década nem as tendências globais para a relocalização parcial das cadeias de produção[7].

Estes sinais ténues recentes sugerem que o modelo Flórida não é uma inevitabilidade, sobretudo quando o contexto externo é relativamente favorável. Apesar de o quadro jurídico e regulatório europeu constranger a prossecução de diversos instrumentos de política industrial, constatamos que não os inviabilizam totalmente e, também, que não são realidades inexoráveis. A economia portuguesa poderá com certeza qualificar-se, modernizar-se e reindustrializar-se, assim haja vontade política. Se esta última for suficiente, até talvez possa fazê-lo de um modo progressista e equilibrado do ponto de vista social, territorial e ambiental.


Artigo publicado na edição de julho de 2022 da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique. Veja aqui como pode assinar ou oferecer uma assinatura do Le Monde Diplomatique.

Notas:

[1] Olivier Blanchard, «Adjustment within the euro. The difficult case of Portugal», Portuguese Economic Journal, vol. 6, pp. 1-21, 2007, https://doi.org/10.1007/s10258-006-0015-4.

[2] «Fernando Medina: “Não sei o que é ter turistas a mais”», Jornal de Negócios, 27 de Setembro de 2016.

[3] António Costa Silva, «Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030», Lisboa, 21 de Julho de 2020, documento disponível em www.portugal.gov.pt.

[4] José Reis, Cuidar de Portugal: hipóteses de economia política em tempos convulsos, Almedina, Coimbra, 2020. 

[5] José Castro Caldas, «A desindustrialização prematura e as possibilidades de reindustrialização em Portugal», em José Reis (coord.), Como reorganizar um país vulnerável, Almedina, Coimbra, 2020.

[6] Fonte: Eurostat, «Employment in technology and knowledge-intensive sectors at the national level» [htec_emp_nat2].

[7] «Investimento direto estrangeiro duplica valor do melhor ano de sempre», ECO, 31 de Dezembro de 2021.

Sobre o/a autor(a)

Economista, professor universitário e ativista do Bloco de Esquerda
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