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"Precisamos imediatamente de reduzir a despesa com juros da dívida"

O deputado bloquista José Soeiro entrevista a economista Eugénia Pires.
Eugénia Pires
Eugénia Pires

Esta entrevista está incluída no sétimo programa Mais Esquerda, que pode ser visto aqui (ou na íntegra aqui) e pode ser lida e vista na totalidade em baixo.

Eugénia, começo pela questão mais básica, que é saber se a dívida é pagável e se a própria dívida é sustentável, porque esse é um debate que está em curso, nomeadamente no próprio Orçamento.

Sim, quando se olha para o Orçamento pode-se pensar, uma pessoa pode ficar com a sensação que sim, que é sustentável. Uma questão mais interessante é em que condições, a que custo, isto é uma sustentabilidade matemática, contabilística, e as condições que estão por trás são as do Orçamento para 2017 que tem um saldo primário de 2.8%, uma taxa de juro de 3.5% e uma taxa de crescimento de 3%. Até quando é que é possível, especialmente o problema do saldo primário, continuar no futuro. Para já, no próximo ano ele já é bastante ambicioso porque pressupõe 5 mil milhões de excedentes.

Para poder fazer face às…

Ao problema da dívida, mas ainda assim é insuficiente para pagar os juros da dívida que são de 8 mil milhões, são de 4.3% do PIB. Há aqui já uma dinâmica muito perversa que, para se assegurar, há um custo muito elevado. A questão da sustentabilidade, a aparente sustentabilidade contabilística quando vamos olhar para a base material daquilo, é muito elevada.

Ou seja, tem custos na economia, na sociedade que são…

Imensos. Nós precisávamos destes 5 mil milhões de excedentes que não fossem para os juros, mas que fossem injetados na economia com investimento, com emprego, emprego público, tudo o que ajudasse para recuperar uma economia que está profundamente debilitada. Sabemos as implicações da intervenção da troika, o produto que foi destruído, o stock de capital que se reduziu, o investimento que é feito que não é suficiente para repor esse stock de capital, o aumento das desigualdades, a fuga de cérebros e a emigração.

No fundo, para que pudesse haver investimento, um maior crescimento, políticas de emprego, Estado Social, seria necessário reestruturar a dívida, ou seria necessário fazer face a esse problema e aos recursos que a dívida tira. Mas como é que é possível fazer isso? Faz sentido continuar a insistir na ideia da restruturação da dívida e em que condições?

Eu acho que sim, eu acho que faz, embora politicamente seja uma ideia difícil. A questão mais imediata é que precisamos de reduzir a despesa com juros. Esta é a questão mais imediata.

Ou seja, concretamente, por exemplo, no ano de 2017 isso permitiria, depende de quanto se reduzisse, mas…

Depende de quanto se reduzisse, mas se pensarmos na dinâmica da dívida que, de novo, é uma questão contabilística, temos uma taxa de crescimento de 3%, mas o peso dos juros no PIB são de 4.3%, portanto olhando para isto, há aqui 1.3% de excesso, isto sem ser com uma contabilidade muito, muito detalhada. Precisamos de comprimir a despesa com juros. Por exemplo, em 2007, pagávamos 4.5 mil milhões e agora 8.3 mil milhões. Na altura tínhamos 2.7% do PIB, e agora temos 4.3%. É excessivo, é demais.

O Partido Socialista tem resistido, ou tem recusado uma ideia de reestruturação da dívida a menos que a Europa aceitasse essa ideia, ou que houvesse um processo europeu. Quais achas que são os passos que se podem e devem dar no atual contexto para se caminhar no sentido da reestruturação e o que se pode fazer?

Acho que é sensato partirmos de uma solução coletiva, de uma solução em base multilateral ao novel da zona do euro, dos países da periferia. Acho também que a Cimeira Líderes do Sul, convocada por Tsipras, é um pontapé de saída. Tenho pena que o problema da dívida não esteja lá. Ao contrário do que aconteceu no passado quando se dizia “não, Portugal não é a Grécia”, agora há pequenas vontades para juntar os países e debater os seus problemas estruturais.

Não indo diretamente para a revolução, que é a reestruturação da dívida, eu advogo aquilo a que chamo as micro reestruturações e uma delas tem a ver com os juros pagos no SMP. O SMP é o primeiro programa do BCE que adquiriu dívida pública em mercado secundário, custa quase mil milhões de euros por ano a Portugal. Pelo menos entre 2011 e 2016 Portugal pagou 5 mil milhões ao BCE que, por sua vez, vai distribuir estes lucros em função da chave de capital do próprio BCE, em função dos acionistas. O que é que isto dá? Dá que a Alemanha, o Bundesbank, o banco central alemão, recebe 1.2 mil milhões. A França vem a seguir, mil milhões.

São 5 mil milhões no total do valor que estava…

Os cálculos que eu fiz é para o período de 2011 a 2016 e tem só a ver com os juros.

São os juros que Portugal pagou ao Banco Central Europeu por causa da emissão.

Sim, eles tinham a dívida e pagamos um cupão anual e, portanto isto dá…

E o que tu dizes é que esse dinheiro deveria poder ser repatriado, ou seja, devolvido a Portugal.

Sim, era uma maneira de reconhecer a corresponsabilidade das instituições do euro, o problema da arquitetura institucional do euro, era uma maneira de reconhecer isso. Mas, além disso, isto já foi reconhecido. Em novembro de 2012, o Euro Grupo, quando reviu as condições do novo pacote da Grécia, introduziu esta medida, o repatriamento dos juros e das mais valias do SMP.

Quer dizer então que isso já foi feito, ou foi aceite este princípio?

Sim e não. Foi aceite, ao contrário de outras reestruturações, micro restruturações que ocorreram, como a extensão das maturidades das linhas de crédito  com a Comissão Europeia e com o BCE, o mecanismo e o fundo de estabilidade. Eles acordaram estender as maturidades, suprimir a taxa de intermediação. Esta medida não foi alargada a todos os países intervencionados. Mesmo no caso da Grécia, ainda não foi implementada, está só no papel. Mas eu acho que isto era só uma boa base de trabalho para a cimeira de líderes…

Exigir que isso fosse reconhecido de forma mais ampla, que fosse aplicado a Portugal e que esse dinheiro fosse devolvido e aí seria possível recuperar, em última análise, esses 5 mil milhões. 

Recuperar liquidez, exatamente, recuperar liquidez que depois seria aplicada na economia, em investimento, num programa de investimento público, no que quer que seja, mas o que eu acho é que nós temos muita necessidade de fundos. O país está muito enfraquecido, a sua capacidade de servir a dívida é muito reduzida por causa da austeridade da intervenção da troika e isto era uma boa medida. 

E há outras formas dessas micro reestruturações, como tu chamaste, de restruturações parcelares de alguns aspetos da dívida que tu achas que possam ser também colocados em cima da mesa?

Sim, há outra que tem a ver com o FMI. O FMI é a linha de crédito, destes três credores oficiais, é o mais caro. Só para dar um exemplo, enquanto que o mecanismo tem uma taxa de juro da ordem dos 2%, 2.3%, o FMI está acima dos 4%. E porquê? Porque, embora o custo de financiamento do FMI seja muito baixo, eles andam na ordem do 5 pontos de base, que é tipo 0.05%, tem uma margem de intermediação de 1% e depois, acima desta margem de intermediação, tem a penalização de 3%.

Penalização?

É uma penalização em que o objetivo é evitar risco moral e antecipar o pagamento, é, de alguma maneira o devedor, como Portugal, a ter como prioridade pagar ao FMI porque é a linha de crédito mais cara e é isso que nós temos estado a ver o IGCP a fazer.

Paga primeiro ao FMI.

Paga primeiro ao FMI, amortiza quieta dívida, só que isto é uma transferência de renda e é profundamente injusto porque se trata de um país que precisa imenso de recursos. Eu também fiz uma estimativa e para o período todo, para os 7 anos, que é a linha de crédito do FMI…

Que termina?

Que termina em 2026, o que acontece é que cada um dos desembolsos tem cerca de 7.5 anos de maturidade, mas aquilo é um amortising, significa que não é paga a totalidade no final, há entregas de pagamento ao longo do tempo. 

E o que é que seria possível fazer relativamente a isso?

De novo, era suprimir esta taxa de penalização.

Ou seja, Portugal não pagar essa taxa, ou negociar?

O FMI suprimi-la. Esta taxa é determinada em níveis absolutos, independentemente do nível das taxas de juro de mercado, as taxas de juro podem estar a 10% ou podem estar a 0.5% e a penalização é 3%, isto não faz sentido. Independentemente de ser Portugal ou o Brasil, ou qualquer outro país, são 3%, não tem a ver com o próprio contexto do país, com a capacidade de gerar recursos.

Mas isso teria sempre de partir da inciativa de Portugal, de uma escolha e de uma ação soberana do Estado, não é plausível ou previsível que o FMI esteja, por sua própria iniciativa…

Depende, de novo. O que eu acho é que, se isto fossem vários Estados dentro da zona euro a proporem esta medida… Sobretudo porque o FMI é controlado pela Europa, como sabes que o relatório da auditoria oficial que saiu há pouco tempo mostrou a agenda que o FMI tinha em não reconhecer a não sustentabilidade da dívida para, apesar da Grécia e de Portugal precisarem de reestruturação, mas isso teve a ver com a agenda do BCE e dos países europeus. Os países europeus controlam o Concelho de Administração do FMI.

O que tu dizes é que o governo português deveria iniciar essa, enfim, dar o pontapé de saída para essa proposta.

Sim, ou levá-la para a Cimeira de Líderes do Sul, ou para a ONU…

E há outros aspetos que pudessem ir no sentido de uma reestruturação, ainda que, como estás a dizer, de alguns aspetos da dívida que pudessem ser feito também.

Há várias coisas. Como sabes, as Nações Unidas introduziram a questão da reestruturação da dívida soberana e da ausência de um mecanismo de reestruturação em 2014, na altura criarem um grupo ad hoc, para criar este instrumento legal e multilateral, que tivesse em conta os interesses dos devedores e dos credores e que não fosse numa lógica de mercado. Que fosse transparente, que tivesse em atenção a questão da sustentabilidade social, não só a sustentabilidade economico-financeira, mas também os aspetos sociais, os aspetos ambientais, as questões dos direitos humanos que, de alguma maneira, limitariam esta imposição da austeridade que o FMI, ou que a troika faz, sobre os países que necessitam de uma injeção de liquidez.

Esse processo está meio perdido. Traduziu-se, em 2015, na criação de princípios que devem reger uma reestruturação, mas neste momento o processo foi abandonado. Foi abandonado porque era a Argentina que estava a liderar, houve eleições em dezembro e o novo governo não tem interesse…

Claro, é um governo de direita.

… em falar sobre a reestruturação da dívida. Mas, de alguma maneira, é uma urgência, é uma insuficiência do mecanismo internacional. Não existe uma coisa que, no fundo, assegure que salvaguarde o interesse…

Dos contribuintes.

Nem é dos contribuintes, é do povo, da população.

E tu achas então que a ONU, e eventualmente até o novo Secretário Geral, poderiam ser aliados a reestruturação da dívida.

Acho, acho que é um tema atual, é um tema muito importante, e é um tema que diz respeito diretamente a Portugal, portanto deveria ser reintroduzido na agenda.

Uma última questão: a Iniciativa para a Auditoria Cidadã tem tido menos visibilidade, mas seria importante que em Portugal houvesse um movimento capaz de por a questão da urgência da reestruturação da dívida como uma condição sem a qual não é possível haver uma outra política económica?

Essa questão é muito boa, e é muito difícil. Um dos maiores desafios da Iniciativa para a Auditoria Cidadão à Dívida Pública (IAC) tem a ver, de facto, com a mobilização. As questões ligadas à dívida são muito opacas, são muito técnicas, são muitos distantes da realidade das pessoas. Trazê-las para a ordem do dia e permitir que as pessoas percebem como é que a dívida pública lhes afeta a vida foi um grande desafio e nós na IAC fizemos uma escolha em levar o discurso não para as questões da legitimidade da dívida, sobre se a divida seria legítima ou ilegítima, mas de a levar para as questões da sustentabilidade.

Primeiro, porque Portugal é um democracia e, sendo uma democracia, eu, mesmo que não concorde com as decisões sobre a dívida de outros governos, tenho que aceitar esta dívida como minha. Por outro lado, a experiência de Portugal, um país desenvolvido do Norte, é diferente da experiência dos países em desenvolvimento, em que a dívida está muito ligada a projetos específicos e pode-se, depois, analizar se a dívida foi bem ou mal utilizada. Em Portugal, eu financio o défice.

Sim, não se sabe em que é que foi gasto e não se pode dizer “há dívida porque foi construído isto, ou porque foi pago isto”…

Há decisões ilegítimas, há decisões que penalizam a população, a questão das Parceiras Pública Privadas (PPPs), as taxas de juros que estão subjacentes às PPPs, que são muito mais elevadas que a dívida pública. Mas aqui havia um interesse político em desorçamentar, em tirar esta dívida, este financiamento, do Orçamento. Esse foi sempre o desafio da IAC, no fundo, ter quase que uma linguagem, aproximar a dívida das massas…

Um tema inteligível para a maior parte das pessoas.

E o impacto imediato, como é que isto está ligado com a nossa gestão do dia a dia. Não sei se cumprimos esse objetivo, de alguma maneira fizemos algumas coisas, e acho que fizemos coisas interessantes, estou a pensar na petição, conseguimos recolher assinaturas suficientes.

Sim, foi apresentada no Parlamento, suscitou esse debate, e a conferência.

E suscitou o debate e eu acho que a conferência foi boa, teve visões de versions ângulos, não foi uma coisa muito pro mercado e pro investidores e, de alguma maneira, o que achei interessante dessa conferência, é que todos eles reconheceram o problema da dívida e que a dívida não era pagável, e da sua insustentabilidade.

 

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