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Portugal falha no direito à habitação e combate a discriminações, aponta Amnistia

O relatório da Amnistia Internacional realça que ainda há muito a fazer para garantir o acesso à habitação condigna e para proteger os inquilinos do despejo forçado. A organização sinaliza ainda a “falta transparência nas investigações à ação da polícia”.
Bairro da Torre, Camarate. Foto de Paulete Matos.

No relatório “Direitos Humanos na Europa”, da Amnistia Internacional (AI), são analisados pontos positivos e negativos de 36 países. Segundo explicou Pedro A. Neto, diretor-executivo da AI – Portugal ao Expresso, no documento são assinalados atrasos consideráveis em Portugal no que concerne a matérias como a garantia do direito a uma habitação condigna, o combate às discriminações raciais, de género, por condição física, bem como por questões económicas e sociais. Está ainda em causa a falta de transparência nas investigações à ação da polícia”, sendo enfatizada a necessidade de criar um órgão efetivamente independente que esteja encarregue de investigar a atuação das forças de autoridade.

No que respeita aos aspetos positivos, é referido que Portugal, a nível dos direitos de liberdade de expressão e de reunião, está melhor e vive um ambiente mais respeitador do que países como a Polónia ou a Hungria.

Garantir o direito à habitação

“Apesar de o Governo ter tomado medidas para tornar as rendas mais acessíveis, os mais vulneráveis continuam a ter dificuldades em aceder a habitação adequada e os moradores de bairros informais continuam em risco de terem as suas casas demolidas e de serem despejados à força sem acesso a procedimentos adequados”, alerta a Amnistia Internacional.

Em declarações à Lusa, Pedro Neto afirmou que a especulação imobiliária e o desenvolvimento de um mercado de luxo, alimentados, nomeadamente, pela pressão externa, com os vistos gold, contribuem para a agudização das desigualdades no acesso à habitação.

O responsável da AI-Portugal defendeu que ainda não estão criadas as condições que nos permitam “ter acesso a esse direito universal e fundamental, que é o direito a habitação garantido em Portugal”.

Para a AI, a habitação informal é outro dos problemas a ter em conta. Pedro Neto referiu que “o problema dos bairros informais é que a complexidade da situação é grande, ou seja, muitas pessoas que vivem nestes bairros informais são pessoas que se instalaram algumas há mais de 30 anos e que ficaram fora do PER”, referindo-se ao antigo Programa Especial de Realojamento.

“São pessoas que trabalharam toda a sua vida, mas que mesmo assim os seus rendimentos não eram suficientes para adquirirem ou arrendarem uma habitação mais condigna”, avançou, apontando ainda que, muitas vezes, as alternativas oferecidas aos desalojamentos “não eram condignas ou não eram fáceis de adotar”. Outra solução que foi apresentada algumas vezes a algumas pessoas era um bilhete de regresso ao país de origem, quando são pessoas que estão cá há mais de 35 ou 40 anos, pessoas que são portuguesas. Portanto, não há país de origem para regressar”, acrescentou. Pedro Neto afirmou ainda que este é um “um problema complexo”, na medida em que cruza vários fatores, entre os quais a discriminação racial.

Ao Expresso, o responsável deu o exemplo do Bairro da Torre, em Camarate: “Há crianças que crescem ali e vivem ali sem eletricidade, sem condições básicas de higiene. São habitações sem quaisquer condições e, sobretudo agora neste momento de isolamento social, esse problema agrava-se ainda mais e é urgente dar uma solução a estas famílias”, frisou, recordando que ali “moram 37 famílias, muitas são de migrantes africanos e de etnia cigana que estão há muitos anos em Portugal.”

Também o Bairro 6 de Maio, na Amadora, mereceu destaque: “Conheci um senhor que trabalhou toda a vida na construção civil e nunca teve um salário suficiente que lhe permitisse sair daquela habitação fraca com a família e comprar ou arrendar uma casa com mais condições”, sinalizou Pedro Neto. “É uma pessoa que hoje está reformada, recebe pouco e, se for despejada dali, não vai ter condições. Precisa de alternativas. Estamos a falar de alguém que trabalhou arduamente toda a vida e, mesmo assim, não conseguiu sair das condições de pobreza em que vivia”, continuou.

Investigação independente a atuação de forças da autoridade

Tal como tem vindo a ser recorrentemente recomendado a Portugal, o relatório da AI adverte para a necessidade de criar um órgão efetivamente independente que esteja encarregue de investigar a atuação das forças da autoridade.

Há pouca transparência na forma como se faz Justiça nestes casos

“São recorrentes os episódios e as polémicas que surgem na imprensa e nas redes sociais de suspeitas de uso excessivo da força por parte do Estado, aqui representado pela polícia”, lembrou Pedro Neto ao Expresso, fazendo referência ao caso da Cova da Moura em que oito agentes foram condenados pela detenção ilegal de seis afrodescendentes, e o caso de Cláudia Simões.

Hoje em dia, a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI), tutelada pelo Ministério da Administração Interna (MAI), está responsável por investigar os casos suspeitos de abuso da autoridade. “Há pouca transparência na forma como se faz Justiça nestes casos. As polícias têm os seus departamentos internos de inspeção, há também o IGAI, mas que estando dentro do MAI não é organicamente independente”, vincou o representante da AI – Portugal.

A recomendação da AI é no sentido de que, “que em substituição ou em complemento do IGAI”, seja criada uma organização “de facto externa e de facto independente” que conduza as investigações. “E isto é importante também para proteger os bons agentes, que merecem ver esclarecidos estes episódios dúbios e, ao mesmo tempo, para assegurar que a confiança dos cidadãos na Justiça e na perceção que têm dos agentes e instituições”, notou Pedro Neto.

Apoios a pessoas com deficiência

“Também em relação às pessoas portadoras de deficiência e com mobilidade reduzida, continuamos a ter desafios importantes no que diz respeito aos direitos humanos em Portugal”, destacou ainda o diretor executivo da AI – Portugal nas suas declarações à Lusa.  

Nas suas declarações ao Expresso, Pedro Neto adiantou ainda que os cuidados e apoios às crianças com deficiência também constam dos pontos negativos apontados a Portugal. Sublinhando a importância da criação do estatuto de cuidador informal, a Amnistia considera que este “não é suficiente”: “Há pais que, caso deixassem de trabalhar para se tornarem cuidadores informais, teriam este problema: o subsídio que lhes seria atribuído não seria tão alto como o salário que têm e mesmo assim o ordenado não é suficiente para pagar as despesas.”

Questões de género e interseccionalidade das discriminações

Já no que respeita às questões de género, A AI assinala que falta ainda “deixar de pôr o ónus da culpa” na vítima de crimes sexuais. Bem como definir melhor conceitos como violação, tendo em conta a Convenção de Istambul. “Ainda não é suficientemente claro o que é o consentimento”, notou.

A interseccionalidade também foi abordada por Pedro Neto na entrevista à Lusa: “Uma mulher que é negra e pobre é alvo de várias condicionantes que recaem sobre ela. O facto de ser mulher, o facto de ser negra, o facto de ser pobre, pesam ainda mais naquilo que é a sua vida do dia-a-dia e no acesso aos seus direitos”, exemplificou.

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