No nos cansamos de repetirlo: sin tomarse la cultura en serio, no hay cambio político.
O programa de política cultural (Documento Programático de Cultura y Comunicación) que o Podemos apresenta aos eleitores espanhóis é um claro avanço no entendimento do cultural como território de participação e realização cívica. O seu aspeto mais revolucionário talvez seja o de contrariar eficazmente a obsessão neoliberal no fator produtivo e mercantil da cultura, para abrir novamente o campo cultural à participação direta dos cidadãos. E esta abertura é concretizada desde logo através da criação de uma Assembleia de Profissionais da Cultura e do Observatório Cidadão da Cultura.
A diferença notória face a outras propostas eleitorais divulgadas, é a de que o Podemos, para além da vontade política transformadora, elaborou uma adequada visão estratégica e uma definição muito concreta dos mecanismos institucionais, bem como dos instrumentos de ação que lhe permite um aumento da democracia cultural, a participação dos cidadãos na administração e gestão públicas, a renovação das instituições públicas de cultura, mas também neutralizar ao máximo as ingerências políticas e evitar um uso partidário da gestão dos assuntos culturais.
Uma política fundamentada como direito universal, como bem comum e como sector produtivo, que antes de mais parte do reconhecimento da sua dimensão política, isto é, da convicção de que a transformação cultural está intimamente ligada à transformação do político: a arte e a cultura partilham com a política a capacidade de ampliar os horizonte de possibilidade, permitem-nos construir enquanto comunidade um presente concreto para imaginar um futuro que não nos pode ser roubado. Neste sentido, a cultura – enquanto matéria de política pública – é entendida como capacidade ativa de cidadania, ou seja, como conjunto de ferramentas simbólicas e conceptuais que os membros de uma comunidade necessitam para lidar com a realidade difusa do mundo contemporâneo e para elaborar novas estratégias de vida coletiva.
De facto, o programa eleitoral do Podemos pretende recuperar o poder emancipatório do simbólico na vida concreta das pessoas, contrariando os efeitos nefastos dos modelos neoliberais de governação em disseminação desde a década de 1980. Defendendo a cultura como manifestação que nasce da participação, da riqueza da imaginação e dos encontros materializados nos quotidianos concretos. Porque a cultura não é algo de etéreo mais além das nossas vidas, mas está incrustada nas nossas estruturas vitais, sentimentais e simbólicas.
Mas não basta combater a mercantilização absoluta do cultural, urge igualmente anular as políticas culturais burocráticas e consensualistas tuteladas hierarquicamente, para pensar em formas político-culturais mais avançadas e mais democráticas. É neste contexto que o Podemos se assume como radical e identifica a política cultural como ferramenta de transformação do modelo social, assente em três objetivos: o acesso participativo, a sustentabilidade e a diversidade cultural, e o fundamento de gestão assente nos princípios de democracia efetiva, transparência e gestão responsável.
Em grande parte - quer na visão política, quer nas medidas - o programa do Podemos propõe muito daquilo que vimos defendendo nestes últimos anos no âmbito de uma política da cultura em Portugal, a começar pela criação de um Ministério da Cultura e da Comunicação, tal como proposto no Caderno Reivindicativo (p. 13). Em termos estratégicos, o enfoque na junção ministerial entre as duas áreas afins é a resposta necessária à complexa relação entre as esferas da comunicação e da cultura contemporânea, designadamente se atendermos aos processos recombinatórios dos meios e dos conteúdos na era digital.
No capítulo do financiamento privado (particulares e empresas), o partido espanhol propõe um mecanismo semelhante ao que já propusemos em Portugal no âmbito do mecenato, ou seja, um fundo coletivo que permita a realização de projetos apresentados pelos agentes culturais [vide proposta para Plano Estratégico da Artemrede (p. 63)]. Em Espanha, este fundo mecenático será denominado como Fundo Social de la Cultura.
Pelo que se dá a entender no documento, a planificação concreta das iniciativas e a implementação temporal das medidas tem como ponto de partida a elaboração prévia de um Pacto para a Cultura e Leis Específicas para o Setor Cultural, o qual terá como objetivo zelar pela independência do sector cultural e garantir que as boas práticas e a gestão responsável, democrática e transparente se sustenham, independentemente das contingências ou das alternâncias políticas.
Artigo de Rui Matoso, para esquerda.net