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Peru: 100 dias da presidência de Castillo, entre crises e vontade de mudança

Em três meses caíram vários ministros, houve dois chefes de governo e o partido que apoiou a sua candidatura retirou-lhe apoio. O presidente peruano faz outro balanço: há finalmente um “governo do povo” depois de décadas de costas voltadas para o Peru profundo, de desinvestimento na educação e saúde, de corrupção.
Pedro Castillo no comício em que assinalou cem dias de presidência. Foto: Presidência do Peru.
Pedro Castillo no comício em que assinalou cem dias de presidência. Foto: Presidência do Peru.

Professor num meio rural pobre, sindicalista, homem de esquerda, Pedro Castillo surpreendeu ao chegar à presidência do Peru apoiado por um pequeno partido, o Peru Livre. Cem dias depois de tomar posse, um primeiro balanço possível é o da hostilidade da imprensa dominante no país, da guerrilha política constante da direita no Congresso com a ameaça permanente de destituição, da nomeação de dois governos em poucos meses e da perda do apoio do partido que o levou ao poder.

O presidente peruano não esquece estas peripécias mas prefere sublinhar que “este é o Governo do povo”. Esta quarta-feira, foi a Ayacucho discursar durante uma hora e fazer o retrato duro de um “Estado que sempre esteve de costas voltadas para o Peru profundo e para a agricultura”, em que “a saúde e a educação nunca foram um direito mas um serviço”. Com um sistema de saúde “totalmente colapsado” e incapaz de responder à Covid-19, três milhões de desempregados, “aldeias esquecidas que não têm água nem luz, escolas e hospitais destroçados, postos de saúde completamente abandonados, milhares de peruanos em situações de analfabetismo e desnutrição, uma grave crise devida à corrupção, graves problemas de insegurança, delinquência comum”.

Já do seu período na presidência sublinhou que “conseguimos coisas muito importantes” e que se estão a fazer “mudanças estruturais no Estado para que este chegue aos que menos têm” como investimentos na saúde e educação. Exemplificou a ação do seu Governo com medidas como a renegociação dos contratos de gás com as empresas argentinas que tem como objetivos massificar o consumo de gás e aumentar as receitas de gás, rejeitando nacionalizações; com a campanha de vacinação em curso; com o crescimento do PIB em 11,9%. E sublinhou a política de apoio aos pequenos agricultores que dá acesso “a mais de dois milhões de famílias camponesas” a créditos, ajuda técnica e sistemas de comercialização.

100 dias de instabilidade

A presidência de Castillo começou desde logo sob o signo da instabilidade. Guido Bellido, o primeiro presidente do Conselho de Ministros, um cargo semelhante ao de primeiro-ministro, durou apenas dois meses no cargo. Acusado à direita de ter tido ligações ao Sendero Luminoso, criticado à esquerda por ter feito declarações machistas e homofóbicas no passado, Bellido define-se como marxista-leninista e é um quadro muito próximo do fundador do Peru Livre, Vladimir Cerrón. Desde o início não apreciou a moderação “social-democrata” do plano económico de Pedro Francke, ministro da Economia e Finanças com o qual foi forçado a conviver.

Acabou por ser substituído por Mirtha Vásquez, advogada defensora dos direitos humanos, que se apresentou como mais “moderada” e querendo “diálogo” e “consensos” com outros setores. Só que esta mudança custou o confronto direto com o Peru Livre. Durante o voto de confiança ao novo governo, dos 37 deputados deste partido, 16 votaram contra, um dos quais Bellido, 19 estiveram a favor e dois não participaram na votação, um dos quais tinha falecido dias antes. O PL oficialmente desvinculou-se do apoio a Castillo, cujo novo Governo acusa de estar a “virar para o centro-direitismo”. O executivo teria, aliás, chumbado num Congresso em que já era minoritário antes desta cisão se o centro, a direita e a extrema-direita não se tivessem também dividido.

Na mesma altura, o Governo enfrentava um escândalo que levou a demissão do ministro do Interior, Luis Barranzuela, por ter dado uma festa em sua casa apesar da proibição de ajuntamentos por causa da pandemia. O ex-chefe de polícia e advogado era dos ministros mais criticados do executivo. Tanto pela sua carreira na polícia, na qual acumulou 158 sanções por abandono de cargo, desobediência e outras infrações, quanto por ter sido advogado de traficantes de armas que trabalhavam com Vladimiro Montesinos, assessor de Segurança do regime de Fujimori e responsável pelos serviços secretos nesta altura e pela repressão contra adversários políticos.

A última crise que o presidente está a enfrentar é o recente anúncio da demissão do ministro da Defesa, Walter Ayala, depois deste ter mudado os comandantes gerais do Exército e Forças Aéreas e destes o terem acusado de os pressionar para promover irregularmente três coronéis e um general.

Depois destes três meses atribulados, a manutenção de Pedro Castillo na presidência continua em causa. Os setores mais reacionários, nomeadamente os apoiantes de Keiko Fujimori, tencionam desde que ganhou as eleições avançar para a destituição, apoiando-se para isso num pretexto vago previsto na Constituição, a “incapacidade moral” que depende apenas de uma maioria de dois terços que ainda não foi alcançada.

Mas se esta manobra ainda não avançou, há outra que já está em prática. Desde o início do mês o congresso aprovou uma lei que limita a ação do Governo. Este fica impedido de recorrer a um voto de confiança em assuntos considerados da esfera parlamentar ou constitucionais. No sistema político peruano, o parlamento pode obrigar ministros em particular ou todo o Governo à demissão. Como contrapartida, também o executivo pode pedir um voto de confiança caso considere que o seu trabalho está a ser bloqueado, mas a rejeição deste por duas vezes implica a dissolução do Congresso e novas eleições legislativas. É este poder que fica menorizado.

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