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Os "Daniel Blakes" de Portugal

Entrevista a Tiago Gillot, dos Precários Inflexíveis, sobre o reflexo em Portugal da situação retratada no filme "Eu, Daniel Blake", de Ken Loach.
Tiago Gillot entrevistado por Mariana Gomes no programa Mais Esquerda.
Tiago Gillot entrevistado por Mariana Gomes no programa Mais Esquerda.

Esta entrevista é parte do décimo programa Mais Esquerda, que pode ser visto na aqui. A entrevista pode ser lida e vista na íntegra em baixo.

Tiago Gillot, da Associação de Combate à Precariedade - Precários Inflexíveis, comentou no estúdio do programa Mais Esquerda a situação retratada no filme "Eu, Daniel Blake", de Ken Loach. Em particular, quem são os "Daniel Blakes" de Portugal, isto é, as pessoas que são excluídas das prestações sociais a que teriam direito. A entrevista foi conduzida por Mariana Gomes.

O que te marcou neste filme e por que é que o recomendas?

Além da inteligência e da beleza e da qualidade do cinema de Ken Loach, creio que é uma história muito forte, justamente por relatar aquilo que está todos os dias no nosso quotidiano, debaixo dos nossos narizes e que é, no fundo, a contaminação das ideias neoliberais nas políticas públicas, em particular nas áreas sociais e a força que isso tem, o impacto que isso tem na vida das pessoas.

Potencialmente, todos poderemos ser vítimas desta contaminação das ideias neoliberais nas políticas sociais

Mas se isso é tão especial no filme e chega mesmo a ser emocionante quando o vemos, é porque o filme nos leva para uma dimensão que está ausente do debate público. Nós conseguimos ter uma perspetiva centrada naquilo que as pessoas vivem, com aquilo com que se têm que debater quando enfrentam as dificuldades daquilo que deveriam ser as políticas que deveriam proteger as pessoas.

O debate público está muitas vezes dominado por uma espécie de abstração, em que as situações concretas não contam e em que são atirados valores com os quais podemos, em abstrato, concordar sempre como o do rigor ou da fiscalização. No filme vemos como isso se traduz, na prática, na perseguição e desprezo por quem precisa de ser protegido. Isso é o que de mais inteligente e mais forte tem o filme, a forma como nos consegue agarrar e levar para um universo que é real, mas que muitas vezes, mesmo quando o sentimos na pele, quando o vivemos por nós próprios ou por quem nos rodeia, um olhar completamente dedicado desmonta o discurso público que nos faz, muitas vezes, sentir culpados pela nossa situação de dificuldade.

Numa conferência de imprensa, Ken Loach afirmou que “o sistema de proteção social está feito de forma cruelmente consciente”. Que dificuldades achas que existe no acesso, a que pessoas é que ele não consegue chegar, ou seja, quem são os "Daniel Blakes"?

Potencialmente, todos poderemos ser vítimas desta contaminação das ideias neoliberais nas políticas sociais e é evidente que o filme retrata a realidade inglesa, mas ela não está muito distante daquilo que vivemos em Portugal. Até porque sabemos que em Portugal há uma dificuldade crónica do Estado responder às dificuldades, que são imensas e toda a gente as conhece, sobretudo, naquilo que diz respeito ao apoio no desemprego, na velhice e na pobreza.

A excessiva aplicação de recursos na ideia de que é preciso controlar quem precisa de apoio é uma das dimensões mais fortes da deriva neoliberal das políticas sociais e deve ser combatida. Alguns passos têm sido dados em Portugal, mas é preciso fazer muitíssimo mais.

A burocracia é uma forma de dificultar o acesso e é uma das principais armas usadas e que só se pode impor porque ganhou, infelizmente, muito apoio social, num certo sentido. Houve uma estigmatizarão social das pessoas que passam dificuldades que se fez a partir da ideia de que é necessário o rigor na aplicação de medidas públicas.

Naturalmente que deve haver rigor dados os recursos escassos que temos. Mas em Portugal temos uma expressão muito concreta disso que felizmente está, hoje, a ser ultrapassada, que é o facto de se obrigar os desempregados a todo o tipo de provas e de humilhações que tinham a sua principal expressão nas apresentações quinzenais. Aliás, a prova da procura de emprego está bastante bem retratada no filme, que mostra como aquele lado que nunca vemos no debate público tem uma dimensão concreta e humana.

O filme mostra ainda como esta medida exclui tanta gente que está, sinceramente, a tentar que a sua vida prossiga normalmente. Estas não são pessoas que pretendem viver à custa de migalhas do Estado Social, mas pode ser enredadas para uma situação de grande dificuldade pelas próprias regras criadas. É evidente que a excessiva aplicação de recursos na ideia de que é preciso controlar quem precisa de apoio é uma das dimensões mais fortes da deriva neoliberal das políticas sociais e deve ser combatida. Alguns passos têm sido dados em Portugal, mas é preciso fazer muitíssimo mais.

Houve uma estigmatizarão social das pessoas que passam dificuldades. Em Portugal temos uma expressão muito concreta disso que felizmente está, hoje, a ser ultrapassada, que é o facto de se obrigar os desempregados a todo o tipo de provas e de humilhações que tinham a sua principal expressão nas apresentações quinzenais.

O que é preciso fazer para mudar?

Para já, são de certeza necessárias medidas concretas. O filme dá-nos uma grande pista para duas dimensões essenciais para os protagonistas do filme: a sua dignidade, e a capacidade de serem solidários, de poderem cooperar numa situação de dificuldade, que é, afinal de contas, aquilo que deveria ser proporcionado pelas próprias políticas públicas.

Mas o filme também nos aponta outro caminho, de não aceitar sem pensar que as coisas possam ser assim. Há alguma margem que no filme é obviamente individual, para contestar e tornar pública essa oposição a este tipo de regras, mas a chave está sempre na ação coletiva e aquilo que é a força coletiva. Creio que o filme ajuda nisso, em contrariar este senso comum completamente nefasto para ultrapassar a situação que se vive atualmente. É para isso que, obviamente, temos que nos motivar, é isso que tentamos fazer todos os dias.

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