“No país dos brandos costumes pode haver racismo, mas ninguém é racista porque racistas são os outros (…) . O que há sim, neste país dos brandos costumes, é um pacto de silêncio sobre as condições de desigualdade de uns e as vantagens com que outros nascem devido à sua ‘cor’ e fenótipo”
Joana Gorjão Henriques, Racismo no País dos Brandos Costumes”, edição Tinta da China, Lisboa, 2018
Como bem salientam os trabalhos de Joana Gorjão Henriques, ele manifesta-se na administração da justiça, nas relações de violência e discriminação com as forças de segurança, na segregação do acesso à habitação e na sua guetização, no emprego, a todos os níveis, na escola e no sistema de ensino em geral, a começar pela narrativa dos livros escolares, nas representações oficiais e oficiosas da história colonial dominadas pelo jargão acrítico e glorificador da “epopeia marítima” e do lusotropicalismo.
Este racismo disfarçado de tolerância é particularmente resiliente. Ostenta aquilo a que Bandeira Jerónimo chama uma “imunidade dogmática” aos factos passados e presentes e ao pensamento acrítico. A sua disseminação social, cujos princípios sendo facilmente refutáveis parecem dificilmente extinguíveis – creio que se liga a duas realidades históricas precisas: em primeiro lugar, como escreve Gorjão Henriques, “o racismo é o colonialismo a falar”. E o colonialismo como realidade institucional e ideologia é o produto de cinco séculos de dominação colonial (do século XV ao século XX) que inculcaram, institucionalizaram e normalizaram na sociedade portuguesa as lógicas discriminatórias de inclusão vs exclusão, da exploração vs privilégio, da pureza racial vs degradação do outro racializado. E isto em todos os domínios: na linguagem, na simbologia, na iconografia, nos corpos, na paisagem, reproduzindo hierarquias e desigualdades profundas. Como assinala Bandeira Jerónimo, “são essas reverberações que ainda hoje perduram”.
Tal situação tem como fator agravante a circunstância de durante meio século do século XX o sistema colonial (largamente pré-existente) ter sido imposto por um regime ditatorial de natureza totalizante, o Estado Novo, que criou um vasto aparelho de inculcação ideológica unívoco e autoritário, garantidor da reprodução e naturalização dos valores do colonialismo a todos os níveis da sociabilidade: na família, na escola, no trabalho, nos lazeres. Dessa forma racionalizando hierarquias de privilégio e do lucro: impondo regimes de trabalho potenciadores dos sobrelucros da acumulação de capital; criando ideologias de legitimação e naturalização do domínio colonial e depois da própria guerra colonial, que se pretendia ir assegurar a sua continuidade.
Mas que fatores de natureza estrutural ajudam então a compreender a resiliência dogmática do racismo como ideologia e prática social e institucional, ainda que geralmente não explicitamente assumida?
Desde logo, a pesada herança de um passado escravocrata de quatro séculos (até finais do século XIX) em que Portugal foi o principal traficante de mais de metade dos 12 milhões de africanos arrancados à força de África para irem servir como escravos nas duas Américas. Proibida a escravatura (que os negreiros portugueses e brasileiros prolongaram ilegalmente até ao início do século XX), o trabalho escravo deu lugar ao trabalho forçado, às culturas obrigatórias e aos Estatutos do Indigenato, que legalizaram a discriminação racial e a violência do trabalho obrigatório para os “indígenas” (ou seja, para a grande maioria da população africana racializada). Tudo isso, como esclarece Bandeira Jerónimo, em nome da “missão civilizadora” que, bem antes do sistema concentracionário nazi, considerava que o trabalho compelido era um factor de civilização e evangelização dos “indígenas”.
Depois, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, com o “ciclo africano do império”, a exploração colonial foi-se constituindo como um poderoso pilar do sistema oligárquico. Era o triângulo da exploração colonial: a banca, o import/export colonial e as companhias de navegação que serviam e complementavam os outros dois vértices. Todas as grandes famílias dos círculos oligárquicos (Sommer, Burnay, Espírito Santo, Ulrich, Melos, Sotto Mayor, Centeno, Cupertino de Miranda…), e mais tarde os principais grupos do capital financeiro, tinham uma sólida presença nos vértices do triângulo dos negócios coloniais. Um sistema assente no trabalho forçado e nas culturas obrigatórias para a exploração do algodão, do café, do açúcar, das oleaginosas, do cacau, da borracha, produtos gerados a custos muito baixos de mão de obra protegidos por pautas umbrosas na metrópole que impediam a concorrência estrangeira e transportados em companhias de navegação com privilégio de bandeira (ou seja, com o monopólio de transporte das mercadorias e passageiros de e para as colónias) praticando fretes com preços altamente inflacionados.
Em sentido contrário, os comerciantes metropolitanos que exportavam para os mercados coloniais a altos preços e fraca qualidade (“vinho para o preto”, “pano para o preto”), tinham o negócio protegido por pautas generosas nos mercados de destino.
Com a viragem política e económica para África operada pelo colonialismo português no segundo pós-guerra, novos interesses ligados à emergência dos grandes grupos económicos (CUF, Champalimaud, B.P.A., BES, BNU…) alargam, diversificam e transformam a estratégia de exploração colonial: inicia-se, ainda que condicionadamente, a industrialização de certos sectores, lança-se a exploração do subsolo para além da Diamang, traça-se um plano de obras públicas indispensáveis para tudo o resto (rede viária, portos, aeroporto, barragens…), alarga-se a rede de transportes e comunicação – ou seja, investe-se numa tardia modernização da exploração colonial. Esse fenómeno alarga e reconstitui este pilar do regime, ou seja, alarga a base social do colonialismo português para além dos tradicionais interesses oligárquicos dominantes: são os quadros e os técnicos do Estado e das empresas envolvidos nos novos empreendimentos e, com a eclosão da guerra colonial, são as elites militares também elas associadas ao mundo do poder e do privilégio colonial.
Mas a exploração colonial, mesmo antes do início da guerra em 1961, sendo um pilar fundamental do processo de acumulação das classes oligárquicas, estava longe de se restringir ao seu exclusivo proveito e do alto funcionalismo e dos quadros agregados a tais círculos. Ela gerava outros beneficiários subalternos: uma vasta rede de pequenas e médias empresas (que cresce com o próprio fomento colonial) subsidiárias das grandes companhias ou simplesmente viabilizadas pelo protecionismo pautal nos mercados coloniais (lâmpadas elécrticas, cimento, alfaias, têxtil, vinhos…) que subsistem e prosperam à sombra dos negócios de export-import com as colónias. Só por si, isso representava milhares de empregos. A que se somavam os novos funcionários públicos fruto do alargamento da burocracia colonial, os colonos deslocados pelos projectos de colonização branca e, sobretudo com a guerra, a fixação espontânea nas colónias de milhares de ex-combatentes atraídos pelo surto económico originado pela presença permanente de um contingente de cerca de 100 mil militares por ano nos três teatros de guerra. Ou seja, a dependência do sistema colonial alarga-se a significativos sectores da pequena burguesia e dos grupos sociais subalternos.
Talvez se possa afirmar que desde a pauta de 1982, mas particularmente após a II Guerra Mundial, se consolida um magma social interclassista beneficiário direta ou indiretamente do processo de acumulação proporcionado pelo sistema colonial. Essa seria a base material, o suporte social de um colonialismo popular consensual, de uma ideologia dominante que legitima o império e as suas representações passadas e presentes e que naturaliza o sistema de mitos dogmaticamente resilientes do colonialismo.
Essa mitologia imperial sobreviveu à derrota da guerra e à queda do império. Ela concentra o discurso ideológico do colonialismo português, esse aparente senso comum que se articula em torno de alguns mitos principais, transclassistas e dogmáticos. Como refere Levi Strauss, por lidarem com realidades sociais profundas dos países a que respeitam, os mitos resistem aos argumentos racionais ou aos factos e documentos que os negam.
Tentarei rapidamente enumerá-los no tocante ao colonialismo português.
a) O mito do colonialismo como destino ontológico e missão providencial atribuídos ao homem branco português. Fosse essa missão civilizadora/filantrópica (I República) ou evangelizadora/guerreira (a “cruz e a espada” do Padrão) no Estado Novo (é a síntese da Mensagem pessoana: Deus quer, o homem sonha, a obra nasce)
b) O mito da “epopeia dos descobrimentos”, a saga heroica e sem mácula de nautas, santos e cavaleiros que deram “novos mundos ao mundo”, as “descobertas” (como se povos e territórios não existissem antes de serem ocupados pelo colonizador…) silenciando, como se nunca tivessem existido, a escravatura, o trabalho forçado, a pilhagem de recursos naturais, a opressão, discriminação e humilhação.
c) O mito do “el dorado” colonial: o império como símbolo da prosperidade infinita, à espera que o fossem colonizar. Reserva mística de futuro bem-estar de um país pobre e atrasado que finalmente o arrancaria da miséria. Uma espécie de compensação pela escassa redistribuição dos sobrelucros coloniais por parte das elites. Mas um mito gerador de expectativas e de consenso em torno do império.
d) O mito da superioridade eugénica da “raça branca”, fulcro do racismo, declinado diferentemente pelas diversas épocas e situações do domínio colonial (do darwinismo social explicitamente racista ao lusotropicalismo). Mas sempre traduzindo a indiscutível superioridade eugénica do homem branco, expressa na sua missão natural de mandar, ocupar, castigar, colocar o negro, apontado como racialmente inferior, ao seu serviço sob a alegação de que obrigá-lo a trabalhar e obedecer, inclusivamente pela violência e a coerção, o trazia à luz da fé e da civilização.
e) O mito da específica característica bondosa e cristã do colonialismo lusitano, desenvolvido sobretudo pela versão defensiva do lusotropicalismo no início dos anos 50 (a especial propensão lusitana para se misturar e miscenizar nos trópicos), forma de ocultar a natureza de um sistema que dizimou e escravizou os povos coloniais.
f) Finalmente, o mito da inviabilidade da independência nacional sem as colónias (por anexação pela Espanha ou por colapso económico). É preciso dizer que a farsa social e ideológica desta mitologia imperial e racista condicionou e se reflectiu num anticolonialismo muito hesitante e tardio por parte do antifascismo português. Foi preciso esperar pelo início da década de 70 do século passado para esse silêncio se quebrar, quando a esquerda radical e a oposição católica finalmente colocaram a luta contra o colonialismo e a guerra colonial no centro da luta política.

No Chega o regresso ao passado conjugou-se com a adesão ao presente da barbárie neoliberal
Concluindo, é certo que a Revolução Portuguesa de 1974/75 e a luta dos movimentos de libertação das colónias portuguesas puderam pôr termo à guerra e ao sistema colonial. Mas não liquidaram aquilo a que alguns estudiosos têm chamado a colonialidade. Ou seja, essa cultura enraizada de manutenção informal das hierarquias de privilégio e subordinação, de subsistência dos padrões coloniais de poder e das representações da mitologia ideológica do colonialismo. O processo revolucionário português pouco abalou esse fundo estrutural, não só pelas razões a que já aludi, mas até pela circunstância de os militares que levaram a cabo o nascimento do 25 de Abril serem oficiais intermédios com várias anos de guerra colonial. O que significa que esse passado se reconstituiu e adaptou sob outras formas de racismo, como escreveu Joana Gorjão Henriques, “disfarçadas, escondidas ou silenciadas, mas existentes e aceites socialmente”. Diz o antropólogo Miguel Vale de Almeida que “metemos o racismo, a violência e o colonialismo debaixo da cama” e continuamos a viver na “ilusão da excepcionalidade portuguesa”. A consciência do colonialismo parece limitada a certos sectores culturais, académicos ou ao ativismo antirracista. E, no entanto, está por fazer um processo de descolonização cultural na sociedade portuguesa. O que não é tarefa fácil, nem rápida.
Tenhamos isso em conta quando, por esse mundo fora, e também em Portugal, com a emergência de da nova extrema-direita, o racismo reemerge já não silencioso, mas vocal, provocatório e agressivo. A meu ver, não enfrentar esta realidade não é só uma imprudência. Poderá ser uma forma de demissão cívica, como outras no passado que acabaram em tragédia.
(Conferência no Politécnico de Bragança, 15 de outubro de 2021)
(Conferência na Fundação José Saramago, 16 de março de 2022)