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O “trio da calamidade”: Trump, Johnson e Bolsonaro

Habituados à política enquanto guerra, estes líderes viram-se incapazes de enfrentar a covid-19, um adversário que não respondia à política da divisão e ressentimento. Por Alfredo Saad-Filho.
Trump, Johnson e Bolsonaro. Montagem publicada em https://sociologiaenlaunjfsc.wordpress.com/.
Trump, Johnson e Bolsonaro. Montagem publicada em https://sociologiaenlaunjfsc.wordpress.com/.

Os fracassos espetaculares do Brasil, do Reino Unido e dos Estados Unidos durante a pandemia da covid-19 oferecem lições valiosas sobre o que nunca mais deve acontecer: esperar que o vírus vá embora, subestimar o potencial impacto de uma pandemia na saúde pública e na economia, atrasar os inevitáveis confinamentos, a lista é longa. Estas falhas também lançam uma luz poderosa sobre as causas profundas da devastação.

Em resumo, é pouco provável que a catástrofe humana, nos países que selecionámos, seja compensada por um abrandamento económico menos severo – pelo contrário, é provável que se saia menos bem do que a média – o que desmente o argumento de que a proteção da economia deveria ser uma prioridade e "se alguns reformados morrerem [como resultado], que assim seja".[1]

A primeira etapa é reconhecer o tamanho da catástrofe (ver quadro).

O trio da calamidade

Os casos que selecionámos (o "trio da calamidade") têm caraterísticas óbvias centradas na liderança: são governados por fanfarrões arrogantes, egoístas, adeptos da auto-promoção, pomposos, grosseiros e condescendentes com sintomas de distúrbio de personalidade histriónica, até mesmo de psicopatia, e ambições abertamente autoritárias de quebrar e remodelar a Constituição e o aparelho de Estado.

Surpreendentemente, eles não estão interessados em criar movimentos de apoio de massa, preferindo em vez disso cultivar fãs adoradores, mas desorganizados: Donald Trump sequestrou o Partido Republicano, mas não tem qualquer utilidade para ele para além da sua máquina eleitoral e da angariação de fundos; Boris Johnson não tem tempo a perder com o Partido Conservador, que ele refez à sua imagem de "brexiter", e Jair Bolsonaro nem sequer pertence a um partido (a sua tentativa de criar a Aliança pelo Brasil falhou miseravelmente).

Infelizmente, isto é apenas o começo: mentem sem vergonha e compulsivamente, reivindicam méritos imerecidos, negam verdades óbvias, proclamando o não-existente e multiplicando ataques violentos contra os céticos, verificadores de factos, dissidentes, cientistas e mulheres. Falta-lhes humildade, são insensíveis ao remorso e são rápidos a afirmar que tudo o que fazem é "o melhor do mundo", mesmo que tenha falhado ou se tenha virado contra eles.

Apesar dos seus instintos autoritários, estes líderes continuam escravos do processo eleitoral: tudo depende das próximas eleições, ansiosamente aguardadas. E mais, travam batalhas calculadas com os meios de comunicação social, o que lhes garante visibilidade mesmo à luz pouco lisonjeira da crítica metódica (que, paradoxalmente, tende a consolidar a lealdade dos seus apoiantes). O comentário político tem dificuldade em dar conta da sua popularidade, apesar dos ataques diários da política "civilizada".

Esta combinação de caraterísticas provou ser letal sob o stress da pandemia. Os riscos foram subestimados porque as precauções iriam parecer mal, sugerir fraqueza ou teriam comprometido as suas perspetivas eleitorais. A fanfarronice, a negação e a mentira teriam sido suficientes no passado, mas o coronavírus foi inflexível. As respostas de saúde pública foram atrasadas porque o aparelho de Estado bloqueou quando confrontado com um desafio não relacionado com a promoção do "líder".

Jogar à defesa não era natural para os nossos exemplares e eles atrapalharam-se. Apesar da sua destreza telegénica, foram incapazes de fingir simpatia pelo Outro ou expressar pena, vergonha ou remorso e surgiram como insensíveis. Não conseguiam explicar as complexidades da pandemia [2] e pareciam ignorantes. Não conseguiram desenvolver uma resposta institucional deliberada e pareciam desorientados.

Trump e Bolsonaro minaram abertamente os seus próprios peritos de saúde ao apregoarem curas de charlatães, enquanto os peritos de Johnson "desapareceram" assim que ficaram sem mensagem. Pior ainda, habituados à política enquanto guerra (Remain contra Leave; Tories contra Corbyn; proprietários de armas e supremacistas brancos contra o controlo de armas e os manifestantes do Black Lives Matter; Obamagate contra Russiagate; Lula contra Lava Jato; meios de comunicação tradicionais contra evangélicos, etc.), estão agora "desaparecidos" e enredados em batalhas contra o "Estado profundo", estes líderes viram-se incapazes de enfrentar a covid-19, um adversário que não respondia à política da divisão e ressentimento.

Um mal-estar mais profundo

Estas disfunções não foram meramente resultado de incompetência ou obtusidade individual; são indicativas de um mal-estar político mais profundo que tem afetado particularmente os três países. A transição para o neoliberalismo reestruturou a reprodução económica e social no Reino Unido, desde meados da década de 1970, nos Estados Unidos, desde o final dessa década, e no Brasil, desde finais da década de 1980.

Ela criou uma vasta gama de "perdedores" económicos e sociais: milhões de empregos qualificados foram perdidos, profissões inteiras desapareceram ou foram exportadas e as oportunidades de emprego no setor público deterioraram-se como resultado da privatização e dos cortes orçamentais. A estabilidade do emprego diminuiu no setor formal, as condições salariais e a proteção social têm tendido a deteriorar-se para todos.

A institucionalização de uma democracia neoliberal acentuou a alienação dos «perdedores». As suas preocupações foram ignoradas, os seus ressentimentos, medos e esperanças foram capturados pelos principais meios de comunicação social e transformados em conflitos éticos entre pessoas "boas" e "más", enquadrados por noções de senso comum de "desonestidade" a nível individual e coletivo, por visões de "privilégios indevidos" concedidos pelo Estado aos pobres, mulheres, minorias, estrangeiros e países estrangeiros não merecedores.

Este processo corroeu dois pilares do capitalismo. Primeiro, o compromisso iluminista com a ciência: não só as universidades foram deslegitimadas ("cursos de rato Mickey sem valor", "gestores universitários pagos em excesso" e elevada dívida estudantil – tudo devido à política governamental - mas também à repressão da "doutrinação de esquerda" e à implementação da "cultura do cancelamento", deveria ser reprimido).

Da mesma forma, o culto neoliberal do indivíduo tem alimentado a individualização da própria verdade: “tenho o direito de acreditar que a Terra é plana e que nenhum cabeçudo tem mais autoridade sobre qualquer assunto do que eu; ninguém pode impor-me máscaras, vacinas ou confinamento; o coronavírus é um embuste porque eu o digo”. E assim por diante, numa fogueira de certezas que, se não fosse verificada, culminaria no fim dos satélites geoestacionários, do transporte de longa distância, da Internet, da medicina estatística, das estações de tratamento de água e muito mais.

O segundo pilar foi a perda tanto de legitimidade quanto de eficácia da política democrática porque as questões económicas foram excluídas do debate: sob o neoliberalismo, a superioridade do mercado e o imperativo do controlo da inflação não podiam ser contestados ou sequer debatidos e as instituições do Estado foram redesenhadas para isolar as políticas neoliberais dos caprichos da responsabilidade eleitoral.

A lei consagrou tetos de défice, metas de inflação e privatizações, enquanto uma barragem de propaganda promovia a financeirização e o sobreconsumo como a essência da "boa vida". A alienação seguiu-se-lhe inevitavelmente. E dada a anterior destruição da esquerda, surgiu um vácuo político em que a oposição se dissolveu em anomia, fascinada por líderes "espetaculares" autoritários e arrasada pela extrema-direita.

Estas tendências destrutivas foram intensificadas pela grande crise financeira que começou em 2007 e culminou numa década de "austeridade fiscal" justificada pela necessidade de pagar as políticas do Estado para salvar as finanças; mas que, na realidade, desencadeou novas destruições da sociabilidade e novas ondas de reengenharia social.

A ascensão de líderes "espetaculares" não é, portanto, nem uma aberração temporária, nem uma excrescência política reversível, mas sim um subproduto dos efeitos da financeirização, da decadência da democracia neoliberal e da deslegitimação das ideologias dominantes e das formas de representação da realidade.

Esta dinâmica política instável foi ultrapassada pela covid-19. Os povos do Brasil, do Reino Unido e dos Estados Unidos assistiram com horror desnorteado a como o coronavírus – impermeável à arrogância, à fanfarronice e aos gritos de negação – reclamava dezenas de milhares de vidas. Entretanto, foi-lhes negado conhecimento de que toda uma série de países e regiões tinham conseguido conter a pandemia; escandalosamente, os sucessos (relativos) da Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte foram ignorados em Inglaterra como se fossem insignificantes ou sem importância, mas a Inglaterra sempre minimizou as nações mais pequenas, a começar pelas mais próximas.

Muitas experiências positivas contra o coronavírus estão disponíveis. Mostram que diferentes combinações de capacidade estatal, resposta rápida, universalidade e flexibilidade dos sistemas de saúde, recursos, tecnologia e controlo social poderiam conter o coronavírus. O desastre não era inevitável; deve-se pedir contas por cada morte. Em vez disso, o "trio da calamidade" demonstrou uma deliberada falta de preparação, forneceu recursos insuficientes aos seus sistemas de saúde e promoveu políticas desorganizadas e contraditórias; escolheu estratégias de implementação medíocres e deu prioridade à corrupção desconcertante para preservar a vida. A pandemia mostra não só que o preço da arrogância é a morte, mas também que a morte foi a consequência evitável de uma modalidade de neoliberalismo em declínio em três países que há muito sofrem com ela.


Alfredo Saad-Filho é professor de Economia Política e de Desenvolvimento Internacional no King’s College de Londres.

Texto publicado originalmente no Socialist Project e depois no A L'Encontre.Traduzido por António José André a partir da versão francesa para Esquerda.net.


Notas:

[1] Esta citação foi atribuída a Dominic Cummings, conselheiro superior do Primeiro-ministro britânico (um título especialmente criado para ele). Posteriormente, não só foi negado que Cummings tivesse tais pontos de vista, mas também que liderasse efetivamente o dossier do confinamento na Grã-Bretanha.

[2] O contra-exemplo é a explicação precisa de Angela Merkel sobre a pandemia.

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