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O TGV e as mortes no Canal da Mancha

Os 27 mortos em Calais provocaram o regresso da indignação durante algumas horas. Depois de conhecidas as últimas propostas, não há nenhum motivo para acreditar que alguma coisa vá mudar. Há quantos anos estamos a assistir a isto? Por José Manuel Rosendo em meu Mundo minha Aldeia
Vigília em Calais, 25 de novembro, em memória dos que morreram no Canal da Mancha. Foto: José Manuel Rosendo
Vigília em Calais, 25 de novembro, em memória dos que morreram no Canal da Mancha. Foto: José Manuel Rosendo

São 8 e meia da noite e viajo confortavelmente no TGV entre Calais e Paris. O ambiente aquecido do comboio e a poltrona reclinável recuperam-me o corpo do frio acumulado em duas horas de espera numa estação modernaça mas absolutamente inóspita, onde o vento frio varre o espaço sempre que se abre uma porta. Calais-Frethun, a estação onde pára o TGV, fica no meio do nada, construída para receber o Eurostar (comboio que atravessa o Túnel da Mancha) mas que deixa os passageiros sentados em bancos de madeira desconfortáveis e entregues a duas máquinas – uma de café e outra de refrigerantes, chocolates e batatas fritas. Vá lá que há um ser humano a vender bilhetes e outro a zelar pela segurança.

Mas a referência inicial ao conforto do comboio em comparação com o grande desconforto do tempo de espera, foi apenas para vos falar das pessoas refugiadas com quem estive durante o dia e que apenas têm direito ao desconforto, sem qualquer momento para recuperar numa cómoda poltrona ou num ambiente quentinho.

Ter estado durante apenas algumas horas com refugiados, pessoas que fugiram de países em guerra ou onde, por outros motivos, não há futuro, tendo visto o que estão a passar, e estando eu, pouco depois, confortavelmente sentado num comboio aquecido e silencioso, após ter comido o que me apeteceu, tudo isso, faz-me pensar naqueles que no mesmo momento continuavam ao frio e à chuva, porventura com fome, descansando o corpo (dormindo?) numa tenda ou abrigo improvisado. Sei o que me custou o frio nas horas que passei com estas pessoas; imagino – apenas imagino – o que estão a passar, dia após dia, durante anos.

Afinal, o que justifica esta diferença entre seres humanos? Porque terão uns de fugir dos locais a que pertencem, enquanto outros podem ter uma vida mais ou menos confortável, sem medo e com uma perspectiva de futuro? Porque terão uns de arriscar tudo, na tentativa de uma vida decente e digna, e outros, tendo essa vida mais ou menos confortável, engendram argumentos para contrariar os objetivos – e direitos – dos que nada têm? Porque julgarão alguns que tudo podem ter, considerando ao mesmo tempo que outros devem sujeitar-se à fome, à guerra, e muito provavelmente à morte? Porque se julgarão uns com mais direitos do que outros?

Todas estas diferenças trouxeram-me à memória “Compreender a Globalização, o Lexus e a Oliveira”, livro de Thomas L. Friedman (TLF). Nesse livro, o autor também refere ter feito uma viagem de comboio de alta velocidade, se não estou em erro – não tenho o livro à mão – no Japão, depois de ter visitado uma fábrica onde os Lexus – modelo de luxo da Toyota – era produzido com recurso a robôs. É envolvido nesse mundo de alta tecnologia que TLF abre o New York Times e repara num artigo sobre o conflito israelo-palestiniano em que a notícia tratava as oliveiras e as terras que os colonos israelitas sempre roubaram aos palestinianos. E TLF sublinha a contradição que ele vislumbra entre o mundo desenvolvido que o envolvia naquele momento e a luta por coisas tão simples – outro mundo – tais como a terra e as oliveiras. A diferença entre um local onde a tecnologia é a ferramenta-chave para o desenvolvimento e outro local onde a posse da terra e das oliveiras é determinante.

Na Europa, o relativo bem-estar e o desenvolvimento, a paz, já proporcionam uma vida tranquila a uma grande parte da população, mas seria bom admitirmos que noutros locais do mundo há pessoas que têm o mesmo direito a ter uma vida semelhante à nossa. E nem sequer vale a pena entrar no debate de saber quanto do nosso bem-estar foi construído à custa do que muitos governos europeus fizeram nos países de onde os refugiados continuam a fugir. Bastará reconhecermos que essas pessoas que fazem caminhos de morte, em busca de uma vida melhor, têm exactamente os mesmos direitos do que nós.

Alguém consegue dizer a alguém para desistir do sonho de uma vida melhor? Alguém consegue dizer a alguém que não tem direito a fugir da guerra, da fome, da ausência de futuro?

Na semana passada morreram pelo menos 27 pessoas numa tentativa para atravessar o Canal da Mancha. Colocar o foco apenas nos traficantes que se aproveitam do desespero dos refugiados é uma falácia que apenas perpetua o problema. Os 27 mortos em Calais provocaram o regresso da indignação durante algumas horas. Depois de conhecidas as últimas propostas, não há nenhum motivo para acreditar que alguma coisa vá mudar. Apagam-se os holofotes das televisões, fica tudo na mesma. Há quantos anos estamos a assistir a isto?

Artigo de José Manuel Rosendo, publicado em meu Mundo minha Aldeia

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