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O que significará para a Europa o corte na ‘Quantitative Easing’?

O Banco Central Europeu (BCE) anunciou que reduzirá para metade o seu programa de injeção de dinheiro, conhecido como quantitative easing [flexibilização quantitativa]. O economista Heiner Flassbeck analisa as consequências que isto terá para a economia europeia em crise. Publicado em A Viagem dos Argonautas
Banco Central Europeu – Foto de ecb.europa.eu
Banco Central Europeu – Foto de ecb.europa.eu

Entrevista a Heiner Flassbeck conduzida por Sharmini Peries do The Real News Network em 1 de Novembro de 2017

Sharmini Peries: Sou Sharmini Peries do Real News Network, falando-vos desde Baltimore. O Banco Central Europeu (BCE) anunciou na semana passada que reduzirá para metade as medidas injeção de dinheiro [quantitative easing/flexibilização quantitativa]. Embora a economia europeia não esteja a apresentar o nível de inflação que o BCE tentava que fosse atingido, as baixas taxas de juro poderão estar a alimentar uma no mercado bolsista. Por conseguinte, o presidente do BCE, Mario Draghi, afirmou que o BCE deixará de comprar títulos a uma média de 60 milhares de milhões de euros mensalmente. Mario Draghi: A partir de janeiro de 2018, tencionamos continuar as nossas aquisições líquidas de ativos a um ritmo mensal de 30 mil milhões de euros até final de setembro de 2018 ou para lá disso.

Sharmini Peries: Ao mesmo tempo, a CNBC está a noticiar que a Comissão Europeia está a considerar alargar a autoridade do Mecanismo Europeu de Estabilidade, um fundo que presta assistência aos países da eurozona com crises de dívida. Isto parece ser um movimento que empurrará o Fundo Monetário Internacional (FMI) para fora da Europa tomando a cargo as suas responsabilidades. Para nos falar sobre tudo isto tenho comigo o Dr. Heiner Flassbeck. Ele é o diretor de Flassbeck Economics, uma consultora para questões macroeconómicas de âmbito mundial. É co-autor de Act Now: The Global Manifesto for Economic Policy, publicado em 2013 na Alemanha, e do livro Against the Troika, de que é co-autor com Lapavitsas. Heiner Flassbeck, agradeço-lhe por estar hoje connosco.

Heiner Flassbeck: Agradeço o vosso convite.

Sharmini Peries: Heiner, comecemos por explicar o programa de compra de títulos do BCE, que é uma forma de flexibilização quantitativa (quantitative easing). Qual é o impacto de recomprar títulos a um impressionante ritmo de 60 mil milhões de euros cada mês?

Heiner Flassbeck: Uma coisa é a economia europeia estar a recuperar muito lentamente, o que é uma coisa boa, mas como digo a um ritmo muito lento. No momento atual, o desemprego já não estará a aumentar, pelo que parece sinalizar que o pior terá passado. Na verdade, de momento, o pior passou, mas não devemos esquecer que a maior parte do estímulo que a Europa tem tido nos últimos meses vem do enfraquecimento do euro que ocorreu no ano passado. Estas coisas sucedem sempre com um certo atraso, desfasamento.

A minha opinião e a minha leitura é que a retoma na Europa desde o início deste ano se deve muito mais a um euro fraco. Agora que o euro deu a volta, é mais forte contra o dólar, e é por isso que penso que Mario Draghi não parou totalmente com o programa, mas se posicionou a meio caminho, por assim dizer. Dizem, “Não continuaremos como antes, mas continuaremos ainda,” e as taxas de juro serão muito baixas.

Sharmini Peries: Heiner, a taxa de inflação mensal, tanto quanto compreendo, na eurozona é de 1,5%. Porque motivo não está Mario Draghi contente com isso e quer ainda mais inflação? A inflação não provoca a erosão dos salários?

Heiner Flassbeck: A inflação que temos, a inflação atual, a inflação global não é o retrato verdadeiro. O verdadeiro retrato é inferior a 1,5%. À volta de 1%, 0,9% é a inflação subjacente. Tem sido persistentemente assim há bastante tempo, há alguns anos ou assim. Eles conhecem os motivos disso. A razão disso é que os salários têm crescido a um ritmo muito, mas muito lento. Repare, nos Estados Unidos falam de um ritmo lento de aumentos salariais com uma taxa algo como 2,5%. Na Europa, temos um aumento salarial nominal neste momento de 1,5%. É muito mais baixo que nos Estados Unidos e, como afirmei, o BCE compreendeu entretanto, levou algum tempo mas não obstante compreenderam, que os custos de trabalho na Europa, ou seja, a relação do aumento do salário nominal com a produtividade é o principal determinante da taxa de inflação a longo prazo.

Sharmini Peries: Heiner, sei que os mercados bolsistas europeus estão a passar por uma longa recuperação. O mercado alemão, em particular, está neste momento a um nível elevado. Existe uma bolha bolsista devido às baixas taxas de juro, levando as pessoas a fazerem investimentos de maior risco?

Heiner Flassbeck: Claro, até certo ponto temos isso. Na minha opinião temos um mercado bolsista claramente sobreavaliado, não apenas na Europa mas também nos Estados Unidos, também na Alemanha. São, por assim dizer, os danos colaterais da política do BCE. É inevitável. Não têm forma de concluir daí que deveriam parar para evitar a bolha no mercado bolsista. Pelo menos a bolha bolsista. Alguns tipos de teoria têm também efeitos expansionistas na economia. Duvido disso, mas não obstante eles poderiam dizer, “Também aí, temos um estímulo positivo.” Como disse atrás, o conjunto da economia na Europa está ainda muito frágil. Tivemos uma longa recessão que não se pode comparar com a que ocorreu nos Estados Unidos, e até agora, justifica-se absolutamente que assumam o risco de uma certa viragem no mercado bolsista, o que não será muito mau. Não será uma crise financeira como a de 2008-2009. Por si só o mercado bolsista não é importante ao ponto de desencadear uma crise financeira similar.

Sharmini Peries: Heiner, dado o papel que o FMI desempenhou na imposição da austeridade à Grécia, que pensa da ideia da Comissão Europeia de fortalecer o Mecanismo Europeu de Estabilidade para substituir a função do FMI? Sei que o FMI desempenhou um papel mais positivo nas últimas negociações com a Grécia do que o tinha feito previamente na crise, mas terá isto um efeito adverso sobre o resto do mundo se a UE retira o financiamento ao FMI e o deixa nas mãos dos EUA?

Heiner Flassbeck: A resposta depende muito daquilo que se pensar que está por detrás da política quer da Comissão quer do FMI. Comecemos pelo início da história. Não penso que o FMI deva participar na Europa. A Europa pode facilmente resolver os seus problemas sozinha. Não necessita do FMI para nada. Até agora, trazer o FMI a bordo no início da crise em 2010 provinha principalmente dos políticos conservadores alemães que diziam, “Necessitamos uma política, muito mais dura política, e isso não será aplicado pela Comissão Europeia,” o que se mostrou errado nessa altura.

Entretanto, as coisas mudaram um pouco. A troika foi a instituição que produziu as recomendações políticas que foram executadas pelo Eurogrupo. A troika era o BCE, o FMI e a Comissão Europeia. Nos últimos anos, quando se tornou claro que a política da troika era um completo fracasso na Grécia e noutros lugares, então, penso que existem indicações claras disso, o FMI foi a instituição que se mostrou, por assim dizer, mais flexível em reconhecer que estavam errados. Até agora, o FMI não desempenhou um papel negativo nos últimos anos. No início sim, mas não nos últimos anos.

Em geral, se a Comissão Europeia compreendeu, mas isso não é claro para mim, mas pelo menos sabem um pouco melhor o que está em causa do que há anos atrás. Se a Comissão Europeia compreender plenamente o que está a acontecer, e se estiver a afastar-se de uma abordagem puramente neoliberal que tem desde há muito, então não precisamos do FMI e a Europa pode tratar do assunto sozinha. Não temos necessidade do dinheiro do FMI, nem da orientação do FMI. Como disse, não é necessário na Europa de modo nenhum.

Sharmini Peries: Em que consiste o Mecanismo Europeu de Estabilidade? Para que foi criado, e que papel desempenhou até agora? O que está a ser sugerido quanto ao seu papel renovado?

Heiner Flassbeck: Até agora, o papel que desempenhou não foi bom. O Mecanismo de Estabilidade como tal não fez a avaliação dos programas dos países, dos programas de ajustamento dos países. Isso foi feito pela troika. Possivelmente algumas pessoas do Mecanismo Europeu de Estabilidade, não sei, desempenharam um papel nos bastidores, mas em geral até agora, não teve esse papel. Se se pretende que seja um fundo monetário europeu, muito bem, mas a questão é, que tipo de orientação se dará a este fundo em termos de direção teórica, em termos de direção dogmática? Se for tão neoliberal e neoclássico como tem sido o Eurogrupo no passado, então é inútil ter uma tal instituição.

Esta é uma questão totalmente em aberto neste momento. Como disse, pelo menos a Comissão Europeia e o BCE, muita gente compreendeu que a antiga abordagem estava totalmente errada. No meu país, a Alemanha, não é o caso. O novo governo na Alemanha tem sido mais ortodoxo do que o anterior governo.

Sharmini Peries: Muito bem, Heiner. Agradeço-lhe por esta atualização e por ter estado connosco hoje. Espero tê-lo de volta brevemente.

Texto original em therealnews.com

Seleção de Júlio Marques Mota, tradução de Francisco Tavares

Publicado em A Viagem dos Argonautas

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