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O que significa o default da Rússia?

Crescem as especulações sobre um possível incumprimento da Rússia no pagamento da dívida externa e o que isso implica. O país parece ter uma almofada financeira confortável mas dificuldade em fazer pagamentos em dólares. E parece haver interesse em empurrá-lo para uma situação de "default técnico".
Rublo versus dólar. Foto de Peter Jozwiak/Flickr.
Rublo versus dólar. Foto de Peter Jozwiak/Flickr.

Com as primeiras rondas de sanções aplicadas à Rússia, registou-se uma desvalorização acentuada do rublo. Começaram a surgir aí os primeiros alarmes sobre um potencial incumprimento da dívida externa russa. Os últimos dias têm sido marcados por agências de rating a piorar a classificação da dívida russa e anunciar a quase inevitabilidade do default. No entanto, é preciso esclarecer o que está em causa e quais as possíveis consequências.

Primeiro, é necessário fazer uma caracterização dessa dívida. A dívida externa é composta por todas as responsabilidades de pagamento de residentes nacionais para com o exterior. Inclui, por isso, tanto dívida pública como dívida privada, e pode assumir a forma de vários instrumentos financeiros – títulos de dívida, empréstimos, dívidas comerciais ou depósitos. Em dezembro, a maior parte da dívida externa russa pertencia a empresas e ao setor bancário, sendo a dívida pública 63 mil milhões de dólares de um total de 478 mil milhões de dólares, isto é, cerca de 13%.

Dessa dívida externa pública, 42 mil milhões era detida em rublos e 20 mil milhões em moeda estrangeira. Isto significa que a Rússia conseguirá suportar uma parte substancial desta, cerca de ⅔, recorrendo a reservas na sua moeda nacional, ou, por hipótese, através de emissão de moeda.

A dificuldade seria então o pagamento dos 20 mil milhões de dólares detidos em moeda estrangeira por não ter acesso às suas reservas de divisas internacionais (mais de metade foram congeladas de imediato no início da guerra como sanção do Ocidente) e, com a hiper-desvalorização do rublo, por ter encarecido comparativamente. No entanto, a Rússia parece ter conseguido proteger-se nestas duas frentes. Primeiro, depois da grande desvalorização do rublo nas primeiras semanas da guerra, o Banco Central da Rússia (BCR) tomou várias medidas para contrariar esta tendência: controlo de capitais, aumento da taxa de juros de referência, obrigação de convertibilidade parcial dos lucros de empresas nacionais no estrangeiro em rublos, etc. No final de março, o rublo já tinha valorizado de novo para os valores que tinha antes da guerra. Mesmo que recentemente a cotação do rublo tenha descido novamente por consequência da flexibilização de circulação de capitais e redução dos juros, tudo indica que o BCR está disponível para proteger o rublo.

Segundo, apesar de mais de metade das suas reservas não estarem operacionais, isto é cerca de 300 mil milhões de dólares dos 630 mil milhões que detinha em janeiro, a Rússia parece manter uma posição financeira confortável. Mais, as exportações energéticas têm garantido à Rússia uma acumulação de excedente comercial. O think-thank Buegel avança que este quadrimestre a Rússia poderá ter conseguido encaixar até 18 mil milhões de dólares na exportação de gás para a União Europeia. Este valor por si só quase que cobre a dívida externa pública detida em moeda estrangeira.

Ora, a discussão que se está a ter não passa por um default em substância, mas sim um incumprimento das cláusulas contratuais que previam o pagamento aos investidores em dólares. Dessa dívida pública externa denominada em moeda estrangeira, os cerca de 20 mil milhões de dólares, uma parte substancial dos juros e amortizações associadas, tem o seu prazo de pagamento a vencer este ano.

Desde o início do conflito, o primeiro pagamento deste género estava agendado para 16 de março e dizia respeito aos juros de duas linhas de obrigações. Estes tinham um valor de 117 milhões de dólares, o que se afigura um valor bastante comportável dada a capacidade financeira russa – por exemplo, a Bruegel estima que as exportações de gás para a UE só a 7 de março, dia em que atingiu o seu pico, lhe valeram 838 milhões. Mesmo assim, na véspera, especulava-se se a Rússia conseguiria fazer face a esta responsabilidade por não se saber em que moldes faria o pagamento. Três cenários eram possíveis: ou pagava em dólares, e não havia default nenhum; ou pagava em rublos, o que se poderia considerar um default seletivo; ou não pagava de todo e entrava em incumprimento incompleto.

Apesar das dúvidas, o processamento do pagamento parece ter sido devidamente efetivado e a pressão de um possível default evitou-se por um momento. Nas palavras escolhidas pela Reutersa Rússia chutou o drama do default para o futuro”. Ficaram ainda por pagar 5,6 mil milhões de dólares em amortizações e juros, com um pico de 1,1 mil milhões em abril.

Estava agendada para 4 de abril uma amortização de uma obrigação de dois mil milhões de dólares detida pelo Tesouro americano, o que equivalia a um pagamento de 649 milhões de dólares. Até à data, e apesar do congelamento das reservas de divisas em dólares e euros, o FED permitia à Rússia aceder a estas reservas para liquidar dívida externa. No entanto, para este pagamento bloqueou o acesso, forçando a Rússia a escolher entre entrar em incumprimento ou usar os dólares a que tem acesso (incluindo da exportação de gás e petróleo) e que usa para financiar a guerra. O ministro das Finanças, Anton Siluanov, decidiu avançar com o pagamento em rublos, o que fez com que a agência de notação financeira Standard & Poor's colocasse a Rússia no nível de “Incumprimento Seletivo”.

Esta terça-feira Siluanov acusou o Ocidente de forçar o incumprimento e afirma “Claro que vamos processar, porque tomámos todas as medidas necessárias para garantir que os investidores recebiam os seus pagamentos”. Não elaborou sobre as opções legais a que pode recorrer, mas Mitu Gulati, professor de Direito na Universidade de Virginia, esclarece que as obrigações em questão foram emitidas sob o direito inglês, o qual permite que o devedor se defenda ao argumentar que uma entidade exterior tornou impossível honrar as suas obrigações.

O prazo de carência legal é de 30 dias, até lá não saberemos como será julgado o incumprimento russo. Mas mesmo sem esse veredito, afigura-se provável que o Ocidente consiga provocar eventualmente o default técnico da Rússia. O intuito é manchar a sua reputação junto dos investidores estrangeiros, afastar cada vez mais o país dos mercados de capitais dominados pelos EUA e a União Europeia e dificultar o seu financiamento externo. A questão que sobra é onde nos levaria esse cenário e como contribuiria para a escalada da tensão.

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