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O movimento social suspenso no ar

O movimento social e popular de resistência a Macron está em suspenso. A urgência das próximas semanas é, portanto, à esquerda, ocupar o espaço social e político para que os militantes que agiram em conjunto nos últimos meses se possam juntar e agir. Por Léon Crémieux.
Sindicatos franceses juntos no 1º de Maio. Foto de CHRISTOPHE PETIT TESSON/EPA/Lusa.

Desde meados de abril, a mobilização social mudou de ritmo e está a exercer uma pressão menor sobre Macron e o seu governo. Mas a hostilidade contra a reforma das pensões, a hostilidade contra Macron e o seu governo quase não diminuiu e todas as sondagens mostram uma queda crescente da confiança da opinião pública e um clima de fim de reinado, apesar de Macron estar apenas no início do segundo ano do seu mandato não consegue encontrar uma maioria que apoie o seu governo, nem entre a população nem entre os deputados.

Macron conseguiu promulgar a sua lei a 14 de abril, depois de ter recebido um cheque em branco do Conselho Constitucional e conseguiu até ser poupado da pressão que teria representado um Referendo de Iniciativa Partilhada (RIP)1. A mobilização de rua continuou durante todo o mês de abril e desde então, através de protestos locais, nomeadamente durante as visitas às cidades do interior de Macron e dos seus ministros. As interdições, as provocações e as múltiplas violências policiais não impediram os concertos de panelas e a presença de centenas de manifestantes durante esses deslocamentos. Tanto assim que Darmanin no dia 6 de maio preferiu negar a sua ida para inaugurar um centro urbano na região Norte e, por fim, ir às escondidas, tudo isto para não se defrontar com um panelaço.

A Intersindical tinha decidido fazer do Primeiro de Maio uma iniciativa unitária sem precedentes. De facto, foi-o, com 2,3 milhões de manifestantes, segundo a CGT, e 300 manifestações em todo o pais, o mais maciço dos desfiles de Primeiro de Maio dos últimos 30 anos, com exceção do Primeiro de Maio de 2002. Este tinha ocorrido na véspera da segunda volta das eleições presidenciais entre Chirac et Le Pen [o pai] e tornou-se numa manifestação antifascista com mais de dois milhões de pessoas nas ruas. O último 1° de maio sindical unitário, em 2009, no meio da crise financeira reuniu “apenas” 465.000 pessoas segundo a polícia, contra 782.000 este ano de acordo com a mesma fonte. O 1° de maio de 2023 apresentou, portanto, um aumento significativo do nível de mobilização, comparável às grandes manifestações de 23 e 28 de março, apesar da promulgação da lei, apesar da rejeição do RIP e na ausência de um movimento de greves renováveis. Esta dinâmica é também identificada por todas as sondagens de opinião, que apontam que mais de 60% da população deseja que a mobilização contra a reforma continue.

O 1º de Maio de 2023 não foi então, de forma alguma, apenas um último cortejo honorífico, com uma combatividade estimulante nos desfiles e a vontade de não virar a página. Vai no mesmo sentido dos “100 dias de zbeul”2, uma competição nacional entre todas as iniciativas de panelaços e ações contra o governo, lançada pela União sindical Solidaires3 e difundida nas redes sociais. Foi uma resposta à pretensão de Macron de dar a si próprio “100 dias para atuar e sair da crise, 100 dias de apaziguamento”, um compromisso assumido durante o seu discurso de 17 de Abril.

O governo, ainda que Macron fale de apaziguamento, esteve especialmente representado no dia 1 de maio através da implacabilidade das violências policiais contra os desfiles, como se a tentasse mascarar a dimensão das manifestações atrás da fumaça do gás lacrimogéneo. No dia 1 de maio, os “street medics” contaram, entre manifestantes e transeuntes, 590 pessoas feridas, 118 das quais com gravidade e que tiveram de ser evacuadas para os serviços de urgência. Mas todos os canais de comunicação social se juntaram para encenar e denunciar a “violência dos desordeiros” e os feridos entre os polícias, procurando abafar tanto a violência policial como a importância social das manifestações.

Macron e o seu governo estão de facto a sair muito mal desta situação. Enquanto Bruno Le Maire, o ministro da Economia, se esforça por apresentar uma política económica sólida e um governo estável ao BCE e às agências de notação, a agência Fitch, uma das três principais com a Moody’s e a Standard & Poor’s, acaba de baixar a notação da França de AA para AA-, dois níveis abaixo da Alemanha. Enquanto instrumento do capitalismo liberal, estas agências avaliam a confiança que os investidores, os compradores de títulos de dívida pública, podem ter. A Fitch sanciona “um elevado nível de défice orçamental e de dívida pública e um clima social prejudicial a uma política de consolidação”. No entanto, a reforma das pensões foi precisamente apresentada como garantia de uma gestão orçamental rigorosa! Esta ingratidão conduzirá, sem dúvida, a um aumento das taxas de juro da dívida pública francesa.

O MEDEF, associação patronal francesa, escaldado com a incapacidade de Macron em dirigir o barco, vangloria-se de ser capaz de dialogar com os sindicatos sobre a partilha de valor, o teletrabalho e a formação profissional, e até de obter o acordo da CFDT e da CFTC sobre a “partilha de valor”, ou seja, todos os mecanismos que descartam os aumentos salariais a favor da participação nos lucros e dos incentivos.

O governo de Elisabeth Borne gostaria, portanto, de aceitar o desafio e dar a imagem de uma abertura às direcções sindicais, depois de as ter desprezado durante três meses. No início de maio, anunciou que ia lançar convites às organizações sindicais para discutir todos os projetos a realizar, uma encenação que esconde mal a recusa de qualquer medida social. Em todos os domínios, saúde, educação, imigração, tudo o que é anunciado pelo governo vai no sentido de um reforço das medidas securitárias e de uma restrição dos orçamentos sociais.

O truque habitual de Borne é dividir a coordenação intersindical, excluindo os sindicatos “não representativos” (Solidaires, FSU e UNSA) e propondo uma rodada de reuniões a 16 e 17 de maio às outras cinco confederações, recebendo-as separadamente “sem agenda definida“. Nesta espécie de “pescaria de festa junina”, o objetivo do governo é, obviamente, quebrar a frente sindical e ver se há abertura para negociações destinadas a restaurar a imagem social do governo. Assim, a CGT, a CFDT, a FO, a CFTC e a CGC vão-se apresentar separadamente a Matignon. Sinal da fragilidade, apesar de tudo, da Intersindical, não o fazem com uma plataforma comum de reivindicações, exceto na reafirmação da exigência da retirada da reforma aos 64 anos.

Além disso, a coordenação intersindical convocou uma nova jornada de mobilização para o dia 6 de junho. O objetivo explícito desta jornada é apoiar uma nova iniciativa parlamentar prevista para 8 de junho pelo grupo LIOT, um grupo parlamentar independente de centro que já tinha iniciado a moção de censura em 20 de março. A iniciativa consiste num projeto de lei que revoga o adiamento da idade legal da reforma para os 64 anos.

Tendo em conta a relação de forças, não é impossível que este projeto possa ser votado por maioria simples, o que constituiria, obviamente, uma nova bofetada na cara do Governo e a garantia de um imbróglio nos dias e semanas seguintes. Mas o governo poderia contar com os seus semi-aliados dos Republicanos no Senado para voltar atrás nesta votação e com o bloqueio de uma comissão parlamentar conjunta antes da proposta voltar à Assembleia. É claro que a hipótese de uma tal votação existe, mas o problema é a Intersindical deixar esta hipotética votação como única perspetiva nas próximas semanas e mesmo meses, tal como, há algumas semanas, a esperança tinha sido depositada na realização de um referendo RIP.

De facto, a Intersindical não dá qualquer perspetiva ao movimento social. No entanto, a força deste movimento, a sua profundidade e persistência deveriam permitir o estabelecimento de uma plataforma unitária de reivindicações sociais levadas pela Intersindical, aquelas que, para além da questão das reformas, têm sido a base das mobilizações, sobre as questões do custo de vida e dos salários, sobre a saúde, a educação, os serviços públicos, entre outras. Infelizmente, o reverso da medalha de uma coordenação intersindical unitária, que deu ritmo ao movimento desde janeiro, tem sido a fraqueza de uma dinâmica autónoma das coordenações intersindicais locais ou setoriais em marcar o seu próprio ritmo e o seu próprio conteúdo. Mas foi que conseguiram fazer em parte os sindicatos da CGT dos sectores da Energia, da Química, dos Portos e Docas e da Limpeza urbana, e o que fez a coordenação do SNCF em março. Hoje, a energia das equipas locais aparece nos concertos de panelas e nos comités de “boas-vindas calorosas” dos ministros, mas isso não basta para dar uma nova dinâmica, uma perspetiva geral de luta a um movimento social que não está esgotado.

A outra questão, corolário da anterior, é a incapacidade da NUPES e das suas componentes de se apoiarem neste poderoso movimento social para liderarem o debate sobre reivindicações de luta contra o capitalismo neoliberal no prolongamento da rejeição da reforma aos 64 anos. A NUPES não busca apoiar-se na situação atual para propor que, a nível sindical e político, os militantes do movimento se reúnam localmente em estruturas unitárias para debater em conjunto, agir e construir uma força que se apresente como uma alternativa a Macron e à extrema-direita. Infelizmente, o baixo nível de auto-organização nas empresas e a nível local também tem sido a característica do movimento desde janeiro. Devemos lamentar o reduzido número de iniciativas de debates unitários entre forças políticas e sindicais nos últimos meses.

Atualmente as componentes da NUPES, em vez de debaterem iniciativas unitárias locais na extensão do movimento, têm seus olhares virados para as próximas eleições europeias de 2024, onde as componentes que não a França Insubmissa (Partido Socialista, Ecologistas/Verdes e Partido Comunista) anseiam recuperar para reequilibrar a relação de forças à esquerda. No entanto, a urgência deveria ser de abrir a perspetiva de uma construção unitária para lutar contra as políticas capitalistas de Macron, enquanto a raiva social está bem presente entre as classes trabalhadoras.

A NUPES conseguiu, há um ano, ocupar o terreno da esquerda durante as eleições legislativas. Mas, desde então, apesar dos deputados da NUPES terem sido o braço parlamentar do movimento social, não foi criada nenhuma dinâmica de agrupamento unitário da militância a nível local ou nacional. Este é um dos elementos que explica por que, paradoxalmente, a NUPES, enquanto força política, não tira qualquer proveito político deste movimento social, enquanto a extrema-direita, a União Nacional, se constrói sobre a crise da direita e uma polarização dos sectores abstencionistas de direita.

Podemos, então, dizer que, tanto a nível sindical como a nível político, existe hoje um momento de suspensão, um momento em que o movimento social e popular de resistência a Macron está suspenso no ar. A urgência das próximas semanas é, portanto, à esquerda, ocupar o espaço social e político para que os militantes que agiram em conjunto nos últimos meses se possam se juntar e agir.


Artigo a ser publicado no numero de Abril/Maio da revista Inprecor. Publicado na revista Movimento. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

 

Notas

1 RIP é um dispositivo constitucional que a priori permite apresentar um projeto de lei submetido a referendo desde que apresentado por 1/5 dos parlamentares. Mas o processo é tão tortuoso e demorado que até agora nenhum foi concluído, sendo em geral barrado na primeira etapa, a validação pelo Conselho Constitucional.

2 “Zbeul” e uma palavra árabe integrada na gíria das periferias e significa “bagunça”, “confusão”, “desordem”.

3 Fundada no final do século XX por militantes descontentes com o rumo seguido pelas direções dos sindicatos tradicionais, em particular a CFDT, a União Sindical Solidaires tem hoje uma implementação significativa entre os funcionários públicos, trabalhadores dos correios e ferroviários. Os seus sindicatos são frequentemente apelidados de SUD (Solidários, Unitários e Democráticos.

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