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O imbróglio das identidades e da política socialista

A perda de energia transformadora da esquerda “tradicional” não pode justificar qualquer recuo que abandone a luta pela convergência de identidades abrangentes na luta popular. Artigo de Francisco Louçã publicado na revista Esquerda.
Imagem da autoria de Tiago Tavares
Imagem da autoria de Tiago Tavares

Foi Steve Bannon, o ideólogo da campanha de Trump, onde tudo começou, que se vangloriou de levar os seus opositores a uma armadilha: “Quero que (eles) falem de anti-racismo todos os dias. Se a esquerda está focada em raça e identidade e nós avançamos com o nacionalismo económico, esmagamos os Democratas”.1 Os resultados parecem dar-lhe razão e houve muito quem repetisse, com entusiasmo ou contristação, esta teoria sobre o foco de atenção, o objetivo programático e o modo de comunicação de cada uma das grandes forças em presença. Se isto fosse certo, a vitória da direita radical teria sido facilitada pela defesa dos direitos humanos e do feminismo ou pela contestação do racismo. A implicação seria gigantesca: deveria então a esquerda abandonar os direitos das mulheres ou dos grupos oprimidos? Deveria calar-se perante a violência doméstica ou a discriminação étnica?

Pondo a questão de outro modo, pode-se perguntar se as esquerdas se distraíram com a defesa do anti-racismo ou do feminismo, ou dos direitos LGBT, ou de outras identidades, ou ainda se essa atuação implica esquecer o povo, como Bannon sugere e festeja. Ora, a teoria de Bannon é historicamente errada, não corresponde à realidade dos factos e é uma mistificação ideológica. Mas não dourarei a pílula do passado recente nem ignoro a dificuldade das esquerdas em constituírem uma alternativa política consistente, muito menos esqueço a forma como vários sectores de esquerda ignoraram movimentos como o feminismo e o anti-racismo, que se batem contra opressões que marcam a vida de muitas pessoas, e ainda menos ignoro que alguns movimentos identitários se refugiaram na mera exigência do reconhecimento e que, nesse exílio, aceitaram uma cómoda compartimentação da luta social, o que favoreceu o contra-ataque das direitas. Na minha opinião, as esquerdas e alguns movimentos são intensamente responsáveis pelo menos por não terem criado um polo social que unificasse diversas causas emancipatórias sob a forma de uma expressão política maioritária, por se terem frequentemente acantonado em territórios de confirmação e não de afirmação e, ainda, por terem falhado amiúde nas suas promessas de dar voz e corpo aos deserdados da globalização. Por isso, ao apreciar a hipótese de Bannon, também se deve discutir como proceder para representar, apresentar e mobilizar uma maioria popular à esquerda.

O facto é que as diferentes expressões de identidade têm histórias marcadas, na exploração do trabalho, na opressão patriarcal, na discriminação “racial” e étnica, mas também se cruzam sempre em identidades complexas, e é nesse cruzamento que se descobre a vida real de pessoas reais. Nesse sentido, Nancy Fraser sugeriu que a análise de todos esses movimentos deve considerar a sua resposta a uma necessidade específica de reconhecimento mas também a sua contribuição para a redistribuição de recursos e de poder. Veremos como esta dupla abordagem permite compreender o significado e convocação social destes movimentos e, em particular, que responde à estratégia de Bannon e de Trump, ou dos que os seguem pelo mundo fora.

 

A identidade é uma política?

“A irrupção de políticas identitárias nas democracias liberais é uma das principais ameaças que elas defrontam”, explica Francis Fukuyama num livro recente sobre o debate que aqui nos interessa.2 O autor, um politólogo liberal norte-americano, explica que, depois do século XX ter sido definido pela luta económica, na segunda década do novo século a esquerda desviou-se para a luta por diversas identidades sociais, ao mesmo tempo que a direita se reorganiza: “A esquerda tem-se focado menos na igualdade económica em termos gerais e mais em promover os interesses de uma ampla variedade de grupos que são percebidos como marginalizados – negros, imigrantes, mulheres, hispânicos, a comunidade LGBT, refugiados e outros parecidos. A direita, entretanto, está a redefinir-se como patriota, que procura proteger a identidade nacional tradicional, identidade que muitas vezes é explicitamente associada a raça, etnicidade ou religião.”3 Já lemos atrás esta tese na versão mais simplista de Steve Bannon.

Para Fukuyama, a esquerda está a errar ao desviar-se da igualdade económica para tratar das identidades de grupos marginalizados, ao passo que a direita está a capitalizar ao adotar o nacionalismo. Mas há que notar que esta opção da direita também lhe parece perigosa: o nacionalismo e a religião são “as duas faces da política identitária” que substitui os partidos de base classista do século XX e são essas “redefinições como patriota”, porventura conjugadas com racismo ou fanatismo, que representam as “principais ameaças” à democracia (ele é um opositor a Trump).4 Essa preocupação é compreensível, pois o politólogo tinha ganho a sua fama ao anunciar que teríamos chegado no fim do século passado à fase superior do liberalismo e que a sociedade moderna poderia atingir a estabilidade perpétua graças ao capitalismo, pelo que a eleição de Trump constitui também para ele e para a sua teoria um revés e um epitáfio.

Ora, ao repetir os livros anteriores, pelo menos para citar um dos seus heróis, o filósofo alemão Hegel, Fukuyama lembra desta vez a tese de que a história se moveu sempre pela luta pelo reconhecimento, que devia ser universal, consagrado em direitos efetivos para as pessoas. As democracias seriam isso mesmo, instituições que prometem igualdade e que portanto aceitam as diferenças. Mas então em que ficamos? Se há sempre ao longo da história uma luta pelo reconhecimento das identidades, que requer o respeito pelas diferenças, e se esse reconhecimento é a própria definição de uma democracia, como é que se pode conceber que ele seja ao mesmo tempo uma ameaça? O livro de Fukuyama responde a esta inquietação distinguindo os movimentos sociais de base identitária, que secundariza, dos movimentos nacionalistas e religiosos, que destaca, porventura porque os primeiros são portadores de uma luta pelos direitos de uma comunidade e os segundos são afirmações de um sistema de poder. Já voltaremos a esta questão do papel dos movimentos dos direitos cívicos, feministas e outros, e para já olhemos para esta fragmentação de identidades em conflito, que são expressão de tensões políticas.

A análise de Fukuyama retoma alguns temas discutidos há décadas por outros analistas, como por exemplo Manuel Castells, um sociólogo catalão que vive e ensina na universidade da Califórnia. Castells participou no Maio de 68 em Paris, estava então exilado e era um jovem professor em Nanterre, e dedicou-se nas últimas décadas a estudar os movimentos sociais. O seu contributo para a discussão que aqui nos interessa começou há vinte anos, com uma trilogia sobre a “idade da informação”, em que argumenta que a globalização não trouxe o fim, mas antes a reafirmação das identidades, religiosa, étnica e nacional. “No último quarto de século, (há um) ascenso generalizado de expressões poderosas de identidade coletiva que desafia a globalização e o cosmopolitismo em nome da singularidade cultural e dos controlo popular sobre as suas vidas e ambiente”, diz ele, num mundo definido pelo conflito entre globalização e identidade. Mas, ao descrever essas identidades, Castells nota sobretudo que se baseiam nas “categorias fundamentais de existência milenar” ou “códigos inquebráveis e eternos”, como deus, nação, etnicidade, família e território.5

Se assim fosse, esta “existência milenar” cobraria um preço elevado às sociedades modernas e, pior, seria uma presença inevitável. Os códigos são antigos e pesados, reconheço (e já veremos como marcam a história recente), mas reafirmo que todas estas categorias são espacial e temporalmente contingentes e são fabricadas pela vida social em condições históricas precisas. A consequência é que evoluem. Pode ser devagar ou, por vezes, mais depressa, mas evoluem. A construção de sentido e de identidade é um processo permanente, que tem vencedores e vencidos, mas ninguém tem a última palavra.

Contra a tese de Bannon, as identidades não podem ser concebidas de modo auto-justificativo como um dado da natureza, o que daria prevalência ao que as pessoas eram e não ao que fazem ou como se relacionam. Há uma conexão entre este conceito essencialista de permanência identitária e a visão da sociedade como uma soma de individualidades, a quimera preferida da direita, que descreve um mundo em que os sujeitos ideais definem a sua autenticidade pelas projeções e traumas que lhes são peculiares. Nesse mundo, a pessoa é somente uma subjetividade e uma composição de instintos básicos.

Ora, se a identidade manifesta um reconhecimento por um conjunto de características da pessoa ou do grupo, ela evolui e transforma-se sempre ao longo da vida. O pensamento racionalista sempre sublinhou essa permanência que define a identidade, pelo menos desde Aristóteles, mas a sua estabilidade é uma ilusão, o rio que corre no seu leito está sempre em mudança. A identidade só pode ser enunciada num mundo de diferença e não de repetição.

 

Três formas de identidade social

Continuemos com Castells. Escreve ele na sua obra de referência que tenho vindo a citar, O Poder da Identidade, que há três formas de afirmação da identidade social: a primeira seria legitimizadora (é o processo pelo qual se formaria a sociedade civil, o conjunto de instituições e movimentos que expressam a cidadania fora do âmbito do Estado), a segunda seria a formação de uma identidade de resistência (que daria origem a comunidades) e, finalmente, a terceira seria a identidade de projeto (que formaria sujeitos). Numa sociedade capitalista desenvolvida, ou sociedade em rede, como ele lhe chama, a identificação legitimizadora estaria esgotada, escreve Castells, e as duas outras formas seriam predominantes.6

Nancy Fraser, uma filósofa socialista e feminista norte-americana que ensina na New School de Nova Iorque, desenvolveu, ao mesmo tempo que Castells preparava o seu livro, uma teoria sobre as identidades dos movimentos sociais, que vai ser essencial para este artigo que tem à sua frente. Fraser critica o discurso que, já há mais de 20 anos, argumentava que a identidade de grupo estaria a suplantar a de classe como instrumento político de mobilização, na presunção de que a dominação cultural suplantaria a exploração como injustiça matricial, assim conduzindo a esquerda e esses movimentos a uma falta de coerência programática, dado o descentramento ou menosprezo pela luta de classes.7 Em termos contemporâneos, é do putativo sucesso dessa narrativa e da sua prática em “políticas de identidade” que Steve Bannon se vangloria, como vimos, dado que deste modo o caminho da campanha de Trump estaria facilitado.

Analisando a economia moderna como multiplicador do patriarcado ou do racismo, mesmo que não seja a sua criadora, porque já existiam antes deste modo de produção, Fraser argumenta que hoje essas formas de discriminação não existem sem o sistema de produção e reprodução capitalista. O capitalismo é patriarcal e racista. Assim sendo, as formas de injustiça que são culturais ou simbólicas, que consistem no não-reconhecimento ou desrespeito pelas diferenças, devem ser combatidas pela exigência do reconhecimento, mas requerem igualmente um outro remédio, o da redistribuição, que atinge o regime de exploração e que abrange de alguma forma todas as comunidades no conjunto da classe trabalhadora. Ora, se o reconhecimento tende a estimular a diferenciação de cada grupo e se, contraditoriamente, a redistribuição tende a atenuar essa diferenciação em nome de objetivos comuns, os dois remédios combinam-se de modo tenso. É um dilema. Mas Fraser não desiste e, para discutir a dificuldade, usa o exemplo da opressão de género e de “raça”:8 “Tanto o género como a ‘raça’ são coletividades paradigmáticas ambivalentes. Se bem que cada uma tenha características não partilhadas pela outra, ambas incluem dimensões político-económicas e culturais. Género e ‘raça’, por isso, implicam tanto redistribuição como reconhecimento”. Mas como? “Como podem as feministas lutar simultaneamente pela abolição da diferenciação de género e pela valorização da especificidade de género?”, ou “Como podem os anti-racistas lutar simultaneamente pela abolição da ‘raça’ e pela valorização da especificidade de grupos racializados?” Esse é o tal “dilema redistribuição-reconhecimento”. Para Fraser, a solução está na distinção entre as perspetivas de “afirmação” e as de “transformação”9. A primeira reivindica o Estado de Bem Estar, as políticas públicas, a afirmação do multiculturalismo; a segunda requer a transformação, ou seja, uma corte com a matriz capitalista, ou o socialismo. Se os movimentos se restringirem à “afirmação”, teremos o dilema; se se empenharem na “transformação”, encontram-se em objetivos anticapitalistas comuns.

 

Para que serve a identidade?

Voltemos a Fukuyama e à sua preocupação com as políticas identitárias, que seriam “uma das principais ameaças” à democracia. Mas quais políticas e por que é que são uma ameaça? A primeira família destas políticas inclui a constelação de nacionalismos e também outras formas de expressão cultural, como as religiosidades, que discutirei noutro lugar.

A segunda família destas políticas inclui algumas das grandes lutas da história dos EUA, que são aquelas a que se refere o politólogo, contra a escravatura e depois pelos direitos civis, pelos direitos laborais, pelos direitos das mulheres e, em geral, pela expansão da esfera da igualdade.14 Mais recentemente, nasceram movimentos como o Black Lives Matter, a partir do protesto contra a violência policial em Ferguson, no Missouri, em Baltimore e em Nova Iorque, ou o #MeToo, depois da revelação de abusos sexuais por figurões de Hollywood. Esses movimentos surgiram e cresceram por serem socialmente necessários e não por configurarem uma qualquer estratégia política. Exigiram o reconhecimento e o combate ao racismo ou ao sexismo e, se foram necessários, é porque o seu espaço não estava resolvido. Fukuyama argumenta que a peculiaridade destes movimentos é um processo de identificação assente na experiência vivida pelos seus e pelas suas participantes, e não podia deixar de ser assim, e até reconhece que são bem-vindos.15 Se essa experiência vivida diferencia esses grupos de outras partes da sociedade que não sentiram estas formas de opressão, é também evidente. Ora, ao registar estes factos, torna-se claro que, ao invés de constituirem uma ameaça, estes movimentos identitários são fundamentais para o reconhecimento e para a representação, indicando uma primeira resposta a problemas sociais.

Essa resposta é uma reclamação de dignidade. Ora, não se podendo opor os dois conceitos de dignidade, o que assenta nas liberdades e direitos individuais e o que se determina nas identidades coletivas (como uma classe, uma comunidade, ou uma nação, ou uma religião), a democracia exige o seu pleno reconhecimento. A crítica de Fukuyama remete então para uma questão de identidade da identidade, ou seja, o que ele critica é o que entende ser a estratégia das esquerdas partindo destas necessidades: “O decréscimo das ambições de reformas socio-económicas em larga escala convergiu com a adoção pela esquerda das políticas identitárias e do multiculturalismo nas décadas finais do século XX” e, assim, terá passado da luta pela igualdade para a defesa de sectores marginalizados. Acrescenta ele: “o programa da esquerda mudou para a cultura: o que precisava de ser desfeito não era a presente ordem política que explorava a classe operária, mas a hegemonia da cultura e dos valores ocidentais que reprimia as minorias em casa e nos países em desenvolvimento no estrangeiro.”16 É uma caricatura, mas como uma boa caricatura mantém algum traço da figura desenhada, acertando pelo menos na constatação do recuo da ambição de transformação social por parte de sectores importantes da esquerda, agravado pela passagem para o centro (a social-democracia europeia) ou mesmo para a direita (nos países do Leste europeu) de partes importantes do centro ou da esquerda tradicional. Ele até descobre uma rutura entre o marxismo clássico, iluminista e racionalista, e uma nova esquerda, na verdade já algo idosa, que seria inspirada em Nietzsche e em niilismos relativistas. Ora, a perda de energia revolucionária e de programa transformador por parte dessa esquerda, incluindo alguma de origem marxista, não pode ser confundida nem pode justificar qualquer recuo que abandone a luta pela convergência de identidades abrangentes na luta popular, o que nos movimentos feministas da terceira vaga se chamou de aliança interseccional. Em todo o caso, a esquerda falhou e isso tem consequências.

Ora, o que permitiu Trump foi a “ausência de uma esquerda autêntica”, responde Nancy Fraser. Para ela, a aliança do Silicon Valley e do capitalismo financeiro com a família Clinton deu-lhes a vitória em 1992 e a presidência durante oito anos, mas a ilusão de que promoveriam uma política progressista desfez-se quando a Casa Branca promoveu o desmantelamento da regulação bancária herdada de Roosevelt sessenta anos antes. Terá sido então essa política que promoveu o culto do individualismo, na sequência da era reaganiana, contrariando as propostas emancipatórias e de políticas sociais, e não os movimentos que procuravam formas de protesto e de afimação.17 Foi o poder que triunfou e não a contestação que fez a lei.

 

Fracassos das esquerdas

Nancy Fraser já notara, há quase 20 anos, que “questões de reconhecimento estão a servir menos para acompanhar, complicar e enriquecer lutas redistributivas e mais para as marginalizar, eclipsar e deslocar”, a que chamou o perigo da deslocação. Esse perigo é evidentemente maior se as lutas pela redistribuição económica e de poder, contra a exploração, são reduzidas e se não têm expressão política, ou se os movimentos sociais não se relacionam entre si. Por exemplo, a identidade pode acentuar a injustiça distributiva, religiões podem agravar o peso do patriarcado, ou outros movimentos podem reforçar o racismo. Uma mulher negra pode ser maltratada na sua família por ser mulher, mesmo que os restantes membros partilhem a preocupação com a discriminação “racial”. O reconhecimento tem que ser tão múltiplo como a opressão. Além disso, em vez de acentuar a interação e abrir os contextos multiculturais, as formas de comunicação intensa aceleram fluxos de mediatização, o que contribui para a absolutização de identidades de grupo, a que Fraser chamou o perigo da reificação.18

A constatação destes dois perigos tem sido respondida de modo errado pela contraposição de classe contra género, ou pelo economicismo, ou seja, a reclamação de um suposto privilégio da luta redistributiva abandonando o reconhecimento das diferenças. Fraser sugere, em contrapartida, que estes problemas de deslocação e reificação das identidades podem ser enfrentados reconsiderando o reconhecimento.

A abordagem tradicional do processo de reconhecimento é o que se poderia chamar de modelo de identidade, baseado em Hegel, como Fukuyama recordou com aprovação. Essa identidade é concebida como sendo construída num processo de reconhecimento mútuo progressivo do outro, por interação com outros sujeitos. A raiva de famílias trabalhadoras pobres nos EUA, que votaram em Trump, encaixa neste “modelo de identidade,” em que o não-reconhecimento é tratado como um dano cultural, ou como a expressão forçada de hierarquias culturais, que submetem a identidade que pretende ser sentida. Para mais, “a mercadorização invadiu todas as sociedades em alguma medida, separando pelo menos parcialmente os mecanismos económicos de distribuição dos padrões culturais de valor e prestígio”, o que reforça os tais riscos de deslocação e reificação. Como na modernidade as interações humanas, que são tradicionalmente subordinadas a hierarquias, passam a ser também permeadas por redes sociais, nascem oportunidades de reconhecimento num mundo paralelo, o que acelera a fragmentação, ou a reificação. Por essa razão, este modelo de identidade pode constituir um perigo: pode criar um reconhecimento ilusório e também pode gerar um desreconhecimento que ignora a complexidade das vidas (lembre-se do exemplo anterior das identidades religiosas que reforçam a opressão patricarcal).19

Qual é a alternativa? Se as duas formas de dignidade são inseparáveis e devem ser o objeto do reconhecimento, então “o que requer reconhecimento não é a identidade específica de grupo mas o estatuto dos seus membros individuais como parte plena da interação social”, ou seja, trata-se de combater a subordinação social institucionalizada e não se limitar a criticar a marca cultural dessa diferença. Então, a política deve ser dirigida “não a valorizar a identidade de grupo mas a superar a subordinação”, e esse “modelo de estatuto” opõe-se tanto ao “modelo de identidade”, defendendo o princípio do “reconhecimento universalista e desconstrutivo.”20

A experiência dos grandes movimentos identitários confirma esse “modelo de estatuto”: no momento definidor do movimento dos direitos cívicos, a Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade, em 1963, em que se destacou Martin Luther King, as principais exigências, como o slogan evoca, eram a liberdade, a justiça e a recusa da discriminação, mas também o pleno emprego e o aumento do salário mínimo. A sua força foi a identidade do movimento negro e a convergência dos movimentos populares. É por esse exemplo que deve seguir a esquerda anticapitalista e anticonservadora.

 

Fontes:

1 Citado em Timothy Egan, “What if Steve Bannon is Right?”, New York Times, 25 agosto 2017.

2 Francis Fukuyama (2018), Identidades – A Exigência da Dignidade e a Política do Ressentimento, Lisboa: D. Quixote, p.18.

3 Fukuyama, Ibid., pp.24-5.

4 Ibid, p.97.

5 Manuel Castells (1997), The Power of Identity, vol. 2 de The Information Age: Economy, Society and Culture, Oxford: Blackwell, pp.2, 65-6.

6 Castells, Ibid., pp.8-10, 355.

7 Nancy Fraser (1995), “From Redistribution to Recognition? Dilemmas of Justice in a ‘Post-Socialist’ Age”, New Left Review 212, pp.68-93.

8 Ao longo deste texto, recuso a ideia de existirem diversas “raças”, dado que só existe a raça humana. Por isso, quando for necessário para referir no texto o preconceito comum que diferencia pessoas pela cor da pele, usarei“raça”, entre aspas.

9 Ibid., pp.78, 80-2.

10 Castells, Ibid., p.27.

11 Benedict Anderson (1983), Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, Londres: Verso.

12 José Manuel Sobral (2018), “Nacionalismo e Desigualdade na Conjuntura Presente”, in Gomes, Silvia et al. (orgs.), Desigualdades Sociais e Políticas Públicas, Famalicão: Húmus, 83-105, p.85.

13 Castells, Ibid., pp.65, 53.

14 Fukuyama, Ibid., p.41.

15 O Black Lives e outros movimentos trouxeram “mudanças bem vindas que beneficiaram muita gente” e “não há, portanto, nada de mal nas políticas identitárias como tais; são uma reação natural e inevitável à injustiça” (Ibid., pp.133, 139).O autor reconhece ainda que não se pode abandonar a ideia de identidade, mas argumenta que é necessário procurar identidades amplas (p.147).

16 Ibid., p.137.

17 Nancy Fraser (2017), “Neoliberalismo Progressista versus Populismo Reacionário: Uma Escolha de Hobson”, em Heinrich Geiselberger (ed.), O Grande Retrocesso – Um Debate Internacional sobre as Grandes Questões do Nosso Tempo, Lisboa: Objectiva, 83-95, p.88.

18 Nancy Fraser (2000), “Rethinking Recognition”, New Left Review, 107-20, pp.112, 108.

19 Ibid., pp. 109, 111-2.

20 Ibid., pp.113-4, 116.

Francisco Louçã. Economista. Professor universitário

Artigo publicado em fevereiro na revista Esquerda.

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