O drama de Eriksen e os futebolistas-gladiadores

16 de June 2021 - 16:27
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A posição da UEFA, que deu aos jogadores dinamarqueses a alternativa “democrática” de prosseguir o jogo ou realizá-lo às 12 horas do dia seguinte, mostra que, para as instâncias do futebol internacional, os jogadores são uma espécie de gladiadores romanos. Artigo de Jorge Martins.

Criança levanta cartaz de solidariedade com o jogador dinamarquês Christian Eriksen, durante o jogo Inglaterra-Croácia, 13 de junho de 2021 – Foto de Catherine Ivill/Epa/Lusa
Criança levanta cartaz de solidariedade com o jogador dinamarquês Christian Eriksen, durante o jogo Inglaterra-Croácia, 13 de junho de 2021 – Foto de Catherine Ivill/Epa/Lusa

Sendo fã de futebol e, em especial, das grandes competições desportivas, tenho acompanhado os jogos do Euro 2020, que a pandemia adiou por um ano.

Assim, pude assistir em direto ao drama vivido no passado sábado, no encontro Dinamarca-Finlândia, realizado em Copenhaga, quando, aos 42 minutos de jogo, o melhor jogador dinamarquês, Christian Eriksen, caiu redondo no relvado, inanimado. Apercebendo-se da gravidade da situação, companheiros, adversários e árbitro chamaram, imediatamente, as equipas médicas das duas seleções. Percebemos, pelas imagens, que lhe estava a ser aplicado o desfibrilhador. Nesse momento, temi o pior e que estaríamos perante mais um caso de morte súbita no desporto.

No estádio, o desespero de toda a gente era evidente. Jogadores e adeptos das duas equipas mostravam-se apreensivos e muita gente chorava, em especial os jogadores dinamarqueses. Naquele momento, desconstruiu-se o estereótipo da “frieza nórdica”. Para evitar o “voyeurismo” das câmaras e dos adeptos, a equipa da Dinamarca fez um cordão à volta do jogador, enquanto este era alvo das manobras de reanimação. A situação pareceu ainda pior quando a sua companheira desceu ao relvado, naturalmente angustiadíssima, tendo sido confortada pelo “capitão” Kjaer (que prestou, de imediato, os primeiros socorros ao seu companheiro) e pelo guarda-redes Kasper Schmeichel. Por fim, Eriksen foi retirado do estádio, com a maca coberta por um pano branco (soube-se depois que um adepto finlandês cedeu a sua bandeira para esse fim.).

Após uns largos minutos de angústia, em que todos pensávamos o pior, esta cedeu lugar à esperança: uma foto, rapidamente divulgada nas redes sociais, mostrava que o jogador tinha saído do estádio ventilado, mas recuperara a consciência, antes de ser conduzido ao hospital, por sorte situado quase ao lado do estádio. E, cerca de meia hora depois, foi dito que Eriksen estava estabilizado e consciente, parecendo que, felizmente, o drama poderia ter um final minimamente feliz.

No dia seguinte, soube-se que o jogador estava bem e que só se encontrava ainda internado no hospital porque estava a fazer baterias de exames, que possam encontrar a causa do colapso que sofreu, resultado de uma arritmia maligna, a que só a rápida assistência médica lhe permitiu sobreviver.

Este episódio, a somar a muitos outros que se têm sucedido, de mortes súbitas de desportistas e, em especial, de futebolistas, bem como o desaparecimento precoce de várias figuras do desporto, vítimas de ataques cardíacos e de doenças oncológicas, levanta várias questões.

A esses casos não será estranho o grande esforço que, cada vez mais, vai sendo pedido aos jogadores, alguns dos quais fazem mais de 70 jogos “a doer” por época. Então, agora, com a pandemia, a sequência do final da última época e da atual tem sido demais. A maioria dos jogadores quase não teve férias e, em vários países, Portugal incluído, as equipas envolvidas nas competições europeias, em determinados períodos, tinham jogos a cada três dias e mal tinham tempo para treinar. E, a somar a isso, muitas delas tinham jogadores em diferentes seleções, pelo que esses também aí não paravam. No fundo, o futebol reflete a vida quotidiana e o neoliberalismo triunfante traz consigo a crescente mercantilização das sociedades e a cada vez maior exigência competitiva a ela associada. E o desporto não é exceção.

Se, ao esforço físico, juntarmos o "stress" competitivo e das viagens, a exigência para o coração dos atletas é enorme. E, apesar de estes terem condições físicas e acompanhamento médico bem acima da média, não são máquinas e, muitas vezes, o corpo cede.

E já não falo do “doping”, que, pela enorme exigência de resultados e lucros, é recorrente em todas as modalidades desportivas e em todas competições, nacionais e internacionais. Inocentes neste campo só os amadores…

Cada vez é mais evidente que, se praticar desporto dá saúde, praticar desporto de alto rendimento nem sempre a dá, muito antes pelo contrário

Cada vez é mais evidente que, se praticar desporto dá saúde, praticar desporto de alto rendimento nem sempre a dá, muito antes pelo contrário.

Na verdade, a imagem idílica que passa da vida dos futebolistas não é assim tão real. Por um lado, porque aqueles que ganham “rios de dinheiro”, como Cristiano Ronaldo ou Lionel Messi, são uma pequena minoria. Depois, porque a carreira é curta e há um resto de vida para viver. Claro que os mais inteligentes sabem disso e vão preparando o futuro, que pode passar pelo futebol (dirigentes, treinadores ou agentes de jogadores) ou não (na sua maioria, como grandes ou pequenos empresários) Porém, aqueles que se deslumbram e gastam tudo em pequenos e grandes prazeres “pagam uma grande fatura” no futuro e alguns acabam na miséria. Por outro lado, os que desenvolvem a sua carreira em clubes de menor dimensão não ganham assim tanto, estando sujeitos, em muitos países (como é o nosso caso) a ter meses de salários em atraso, que, às vezes, acabam por não receber.

Para a UEFA, “the show must go on”

A posição da UEFA, que deu aos jogadores dinamarqueses a alternativa “democrática” de prosseguir o jogo ou realizá-lo às 12 horas do dia seguinte, sob pena de derrota administrativa, ao jeito do clássico “the show must go on”, só mostra que, para as instâncias do futebol internacional, os jogadores são uma espécie de gladiadores romanos, sempre ao serviço do circo para distrair o povo. Ao que parece, o próprio Eriksen enviou um vídeo aos seus colegas, no qual afirmava que, dentro das circunstâncias, estava bem e que, face às alternativas que se lhes colocavam, seria melhor continuarem o jogo. Assim aconteceu, hora e meia após o drama, mas a verdade é que, compreensivelmente, a cabeça deles não estava no campo e, não por acaso, acabaram por perder com os finlandeses, que se estreavam na fase final de um Europeu. Aliás, no dia seguinte, o selecionador dinamarquês reconheceu ter sido um erro ter aceite retomar o jogo naquela altura.

É urgente que a FIFPRO (o sindicato internacional dos futebolistas profissionais) tome uma posição mais assertiva sobre estas questões, defendendo os interesses dos jogadores, que são seres humanos e trabalhadores. É que, mesmo dourada, uma gaiola é uma gaiola.

Apesar de tudo, este drama mostrou também que, apesar de tudo, no futebol e no desporto em geral ainda persistem os valores humanos, desde a atitude dos jogadores dinamarqueses na proteção ao seu “capitão”, à “guarda de honra “ e ao aplauso da equipa da Finlândia à da Dinamarca quando esta reentrou em campo para o retomar da partida, ao adepto finlandês que emprestou a bandeira do seu país para tapar Eriksen, à solidariedade que se gerou a todos os níveis (não só de companheiros e adversários, mas também de jogadores e adeptos de todo o mundo) e de que foi exemplo o gesto do avançado belga Lukaku, seu companheiro no Inter de Milão, que, após marcar o 1º golo belga frente à Rússia, fez questão de lho dedicar frente a uma câmara de televisão, dizendo “I love you, Christian”.

No fundo, como tudo na vida, também o desporto tem “luzes” e “sombras”.

Artigo de Jorge Martins

Jorge Martins
Sobre o/a autor(a)

Jorge Martins

Professor. Mestre em Geografia Humana e pós-graduado em Ciência Política. Aderente do Bloco de Esquerda em Coimbra