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O diário que mostra os "horrores” vividos pelos menores refugiados em Moria

Após o incêndio que devastou o campo de refugiados de Moria, jornalistas do Investigate Europe encontraram nos escombros um diário que os chocou.
Crianças brincam no campo de refugiados. Lesbos, Grécia, 2018. Foto de Fotomovimiento/Flickr.
Crianças brincam no campo de refugiados. Lesbos, Grécia, 2018. Foto de Fotomovimiento/Flickr.

Nove de setembro de 2020. Um incêndio destrói o campo de refugiados mais conhecido da Europa, em Moria, na ilha Lesbos, Grécia. No rescaldo, dois jornalistas do projeto Investigate Europe, Stavros Malichudis e Iliana Papangeli, descobrem na zona que era um aglomerado de centenas de tendas à volta das estruturas iniciais, um diário que sobreviveu às chamas. O que nele está escrito choca-os. São relatos que mostram “os horrores que os menores desacompanhados eram obrigados a viver”, escritos pelos trabalhadores sociais que os assistem.

Verificaram a autenticidade do documento junto, primeiro, de menores que tinham estado no campo, confirmando factos e identidades. Depois, junto de algumas das pessoas que o escreveram, onze trabalhadores da “International Organization for Migration”, organização intergovernamental responsável pela “zona segura”, a área reservada para menores não acompanhados.

As entradas deste diário partilhado são não só um relato do desespero pessoal de quem não consegue ajudar as pessoas pelas quais deveria ser responsável como “um documento escrito na primeira pessoa sobre o falhanço da Europa em proteger o grupo mais vulnerável de pessoas que pedem asilo”, escrevem os jornalistas. Os menores que viviam na “zona segura”, enfrentavam condições que eram semelhantes ao encarceramento, não tinham assegurados direitos básicos como o acesso à saúde, ou ao ensino. A higiene era deficitária. A zona era “segura” no nome, mas não na realidade.

O diário cobre apenas cerca de seis meses da vida nesta parte do campo de refugiados, entre três de novembro de 2018 e sete de maio de 2019. Tempo suficiente para perceber, através das suas várias entradas, uma realidade dura.

Numa das primeiras notas, de novembro de 2018, um dos trabalhadores queixa-se de ter descoberto uma ratazana morta numa caixa de tangerinas para as crianças. Não era a primeira vez e ele considera que há “um problema sério com ratazanas e a propagação de doenças aos beneficiários e ao pessoal”. Dá conta ainda que as chuvadas tinham inundado a sala do frigorífico e da unidade de aquecimento e entrado em alguns dos aposentos onde estavam alojados os menores. A ausência de isolamento conveniente leva-o a escrever a advertência: “perigo de eletrocussão”.

Os problemas elétricos são frequentemente citados no diário. Na “zona segura” falta muitas vezes a eletricidade dias a fio. Para além de todos os outros problemas que isso causava, a escuridão também impedia a verificação de que ninguém entrava na parte em que apenas os menores deveriam estar. No final de novembro uma outra nota queixa-se da inação dos responsáveis. As condições são “inaceitáveis”: os trabalhadores trazem tochas de casa para tentar ver quem entra na zona reservada

No natal desse ano, uma entrada fala no caso de uma menor que foi agredida por um homem alcoolizado. Segundo o agressor, a rapariga tinha-lhe ficado com parte do dinheiro que ele lhe dava “em troca de coisas que não podem ser descritas”. O assédio sexual fazia parte do quotidiano do campo, assim como o uso de álcool e de drogas e várias rixas. Também há violência auto-infligida, como é relatado a seis de novembro do mesmo ano: uma menor cortou-se com uma lâmina. O mesmo volta a acontecer a outra em março do ano seguinte. Muitos menores não aguentavam a pressão da situação, as filas para tudo e mais alguma coisa, a frustração com a incerteza da sua situação, o clima de intimidação causado por alguns elementos. O que leva um dos trabalhadores a escrever que “o papel e a causa de existência da zona segura necessita ser redefinida e isto é uma discussão que tem de ter lugar sem mais atrasos.” Uma nota que tem também o papel de um desabafo, pois culpa os responsáveis do campo de nada quererem mudar.

O incêndio acabou com o campo fundado em 2013, mas não com o problema de fundo. Moria tinha supostamente uma capacidade máxima de cerca de três mil pessoas e estava mais que sobrelotado. Na altura em que teve mais refugiados, o número chegou perto dos 16 mil. O mesmo se passava com a “zona segura” que tinha capacidade para 150 menores e chegou a albergar 600.

Depois do incêndio, 400 menores não acompanhados foram transferidos para a Grécia continental.

No novo campo construído em seguida, denominado Moria 2.0, vivem perto de 7.500 pessoas. Agora, já não há nenhuma “zona segura” mas continuam a existir menores não acompanhados. Dizem os jornalistas do Investigate Europe que, um mês depois de construído, ainda não tem chuveiros, que é disponibilizada apenas uma refeição por dia, que as tendas estão cheias e nada foi resolvido. Já sabemos tudo isto. Enquanto o diário de Moria 2.0 estará ainda a ser escrito.

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