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O 'Acordo de Paz' de Trump não passa de um apartheid

Apresentado como o “Acordo do Século” para a paz entre Israel e Palestina, o plano de Trump ressuscita e restaura o grande apartheid, sistema racista que está no caixote do lixo da história. Opinião da investigadora Sheena Anne Arackal publicada na Carta Maior.
Netanyahu e Trump apresentam o seu plano para a Palestina. Janeiro de 2020.
Netanyahu e Trump apresentam o seu plano para a Palestina. Janeiro de 2020. Fonte: Casa Branca/Flickr.

Com grande alarde, o presidente Trump finalmente apresentou a sua tão aguardada proposta para a paz no Oriente Médio. A proposta foi apresentada como "O Acordo do Século" porque supostamente ofereceria uma solução imparcial e justa para um dos conflitos mais difíceis de resolver do mundo. A proposta, no entanto, consiste em algo muito diferente. O "Acordo do Século" ressuscita e restaura o grande apartheid, um sistema político racista que deveria ter sido deixado no caixote do lixo da história.
De acordo com o recém-apresentado plano de paz do presidente Trump, os palestinianos terão autonomia limitada dentro de uma pátria palestina que consiste em vários enclaves não contíguos espalhados por Cisjordânia e Gaza. O governo de Israel manterá o controle da segurança nos enclaves palestinos e continuará a controlar as fronteiras palestinas, bem como o seu espaço aéreo, aquíferos, mar e espectro eletromagnético. Israel poderá anexar o vale do Jordão e as comunidades judaicas na Cisjordânia. Os palestinos poderão escolher os líderes da sua nova pátria, mas não terão direitos políticos em Israel, o estado que realmente os governa.
O plano do presidente Trump para controle racial e segregação soa perturbadoramente familiar. De facto, faz pensar imediatamente nas pátrias Bantu, a pedra angular do "grande apartheid" da África do Sul. Embora "pequeno apartheid" fosse o termo usado para descrever a segregação racial em autocarros e estabelecimentos públicos, "grande apartheid" referia-se às muitas leis que impunham a separação territorial e política entre sul-africanos negros e brancos.

As pátrias Bantu, que foram fundamentais para a separação territorial e política de grupos raciais, originaram-se nas Leis de Terras nativas de 1913 e 1936, que criaram reservas para a população negra nativa. Em 1970, a Lei de Cidadania das pátrias Bantu transforma os integrantes da população nativa em cidadãos legais de seus Bantustões, negando direitos políticos aos negros sul-africanos na África do Sul branca. O governo sul-africano criou as pátrias Bantu para afirmar que a África do Sul, um país de maioria negra, tinha, na verdade, maioria branca. As pátrias Bantu eram um truque político; uma tentativa mal disfarçada de dar ao colonizador branco racista um verniz de respeitabilidade democrática.
Assim como o grande apartheid da África do Sul, o plano de Trump segrega os palestinianos física e politicamente, colocando-os numa pátria não contígua e declarando-os cidadãos dessa pátria. Como o grande apartheid da África do Sul, o plano de Trump concede autonomia à Palestina para questões civis como educação e saúde, enquanto temas críticos como comércio, imigração e segurança permanecerão sob controle israelita. Como o grande apartheid da África do Sul, o plano de Trump não passa de um truque político: uma mal disfarçada tentativa de afirmar que Israel, um estado com o mesmo número de judeus e palestinianos, aproximadamente, é, na verdade, um estado de maioria judaica. Também como o apartheid da África do Sul, o governo Trump afirma que as pátrias são uma solução temporária. Uma vez que a população palestiniana se mostre pronta para se auto-governar, receberá um dia algo que se pareça com um Estado.
Usando uma combinação de ameaças e recompensas financeiras, como algumas reveladas em junho passado na cúpula económica no Bahrein, o governo Trump tentará forçar os palestinianos a aceitar o 'plano de paz' e declarar independência dentro da sua terra natal, assim como o governo de apartheid sul-africano tentou forçar a população negra nativa a declarar independência dentro dos seus bantustões. Ainda que as lideranças de alguns bantustões tenham realmente declarado independência, o grande apartheid da África do Sul foi derrotado porque os líderes locais, como os participantes do Congresso Nacional Africano e o lendário Nelson Mandela, travaram uma campanha internacional firme e poderosa contra o apartheid.
O plano de paz do presidente Trump foi batizado de 'Acordo do Século' porque traria, supostamente, paz e dignidade aos povos do Oriente Médio. Em vez disso, o "plano de paz" faz exatamente o contrário ao ressuscitar um sistema político racista nos moldes do apartheid.
O plano de paz de Trump não pode e não deve ser implementado porque dá aos israelitas a ilusão de segurança, enquanto na realidade os aprisiona em um regime instável baseado na opressão racial. O plano de paz de Trump não pode e não deve ser implementado porque viola gravemente os direitos e a dignidade do povo palestiniano e provavelmente constitui um crime contra a humanidade sob o Estatuto de Roma (1998). O plano de paz de Trump não pode e não deve ser implementado porque, se olharmos além de todo o confete e serpentina, o 'Acordo do Século' não passa de um novo apartheid.

Sheena Anne Arackal é doutora em ciências políticas pela Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, especializada em conflitos étnicos.

Artigo publicado na Carta Maior e, originalmente no Global Research. Tradução de Clarisse Meireles.

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