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Mulher/vida/liberdade e o horizonte de um futuro igualitário no Irão

As atuais revoltas iranianas, com avanços e recuos, inscrevem-se no contexto de lutas que continuam desde antes da revolução de 1979, na qual o povo, mesmo com a bandeira do Islão, aspirava e aspira construir a liberdade e sair de uma situação insustentável. Por exemplo, o Irão tem as segundas reservas mundiais do gás, mas atualmente, com um frio de 11º, não há gás natural para aquecimento das casas, vários setores industriais foram encerrados, assim como administrações, escolas e universidades e comércio em todo o país. Todavia, esta medida pode estar também relacionada com a política habitual que, várias vezes por ano, encerra tudo para neutralizar os protestos da rua. É o desprezo do regime, para quem em primeiro lugar importa a pilhagem das receitas. Um terço da economia iraniana passa, alias, pelo contrabando. A economia de pilhagem é baseada em banditismo bancário, mercado paralelo, desperdícios no fabrico da bomba atómica, armamentos e inflação das forças de repressão... A gestão do país continua no beco sem saída que criou o Xá, um sistema que hoje chegou à fase de apodrecimento. As riquezas saem do Irão e surgem nos bancos ocidentais e desapareçam nos offshore (é uma forma diferente de fuga de riquezas que em Angola articulava com o sistema financeiro mundial, mas aqui vai através do Afeganistão). Quantidades astronómicas de fundos desaparecem regularmente, o salário de operários não é pago durante 12 ou mais meses, uma vez que os patrões fazem parte do clã do poder e se permitem não pagar. É uma situação caótica: instabilidade constante, desemprego crescente (50%?) e inflação incontrolável (oficialmente 40%, mas atingindo em realidade mais de 1000% nalguns setores como o imobiliário. O preço médio de casa no centro de Teerão subiu para 2375€ o m2 e 575 € na última periferia da capital. Muitos operários e pobres, se conseguirem, alugam só um quarto).
Os relatos sobre a africanização do Irão são assustadores : seca severa em 90% do país e aparecimento de fenómenos ecológicos mortais. A poluição em Teerão e várias grandes cidades mata literalmente: é sobretudo a consequência de utilização, como combustível, do petróleo não refinado em vez de gás natural, na produção de eletricidade e em indústrias. A água é desviada em todos os lados; os rios e as fontes secaram, entre outras, na região de Esfahan, com vários milhões de habitantes. Em Teerão, com mais de 20 milhões, vai faltar água potável daqui 3 meses. A desertificação está a corroer o país. Apareceram buracos com quilómetros de diâmetro e profundidade em vários pontos do Irão, perto de cidades. Ao pé de Teerão, os gases emanados da lixeira não tratada são considerados pelos especialistas mundiais como um dos mais importantes fatores da poluição atmosférica e uma das causas principais do desregulamento climático.
Miséria generalizada, sanções e economia de pilhagem
A economia de pilhagem está na monopolização económica pelos passedaranes, braço militar de Khamenei, pelos seus cúmplices, devoradores dos rendimentos do petróleo, pelas instituições religiosas sob comando do filho de Khamenei, o «Senhor Mojtaba», gerente de desvios colossais e pretendente do trono. Resultado: inflação ruinosa, descida acentuada do poder de compra, aumento de desemprego, repressão brutal de protestos desde há 42 anos e cada vez mais brutalmente, existência de campos de concentração, múltiplas prisões clandestinas, torturas, execuções e assassinatos... Perto de Teerão, em Qartchac, numa prisão de mulheres com capacidade para 200 «pessoas», encontram-se hoje ensardinhadas 2.000! As testemunhas afirmam que o espaço cheira a fossa, não há equipamentos sanitários necessários, não há aquecimento, as prisioneiras sofrem fome, são frequentemente violadas e pedem a familiares para lhes fornecer pílulas de contraceção. Eis é o Irão que criou a «Republica islâmica»! Os rebeldes gritam todos os dias : «40 anos de crime! Morte a este regime!».
Tudo aponta para dizer que se trata de um dos mais perigosos fascismos atuais, baseado na teocracia e inspirado do terrorismo, pelo qual o regime está a tratar o povo iraniano. Assim, o terrorismo é o laço que liga um regime aventureiro à geopolítica da dominação/destruição no Médio Oriente. A subnutrição e as doenças causadas pela uma das mais terríveis poluições atmosféricas nas cidades como Teerão são assustadoras. Há sinais da fome na imensidade de barracas a volta das cidades, onde se acumulam os que sobrevivem em condições sub-humanas. Por cima de tudo, são condicionados pela droga que os passedaranes distribuem, em troca da compra de filhos de drogados. Dormem nos túmulos nos cemitérios, milhares de miúdos encontram-se abandonados nas ruas, à procura de comida no lixo. Até há o caso de dois miúdos afamados que se alimentam do leite de uma cadela! Enquanto as instituições religiosas, dirigidas por Khamenei, que possuem 10% do total da economia do país, só pagam 0,008% do conjunto de impostos do Irão!
Antes de 1979 o Irão produzia 2.5 milhões barris/dia, com uma população de 35 milhões, hoje, com bloqueios americanos, chegou a menos de 1 milhão de barris/dia. O dólar que valia 7 tomanes no tempo do Xá, hoje vale 44.000 tomanes (uma subida de 10% só no último mês; e os preços sempre aumentam). Assim, a moeda iraniana perdeu 95% do seu valor. As moedas dominantes aproveitam e a dependência económica do país concentra-se no investimento em primeiro setor da economia mundial : armamentos/meios de destruição e tráfico de droga. O Irão importa oficial ou clandestinamente quase todos os produtos alimentares, industriais ou tecnológicos (apesar de embargos), por via terrestre ou vários portos clandestinos no Golfo Pérsico que servem também para a exportação clandestina do petróleo e armamentos, destinados ao Hamas e outra forças terroristas do Médio Oriente (hezbollah de Líbano, Iémene, Síria, Iraque, Palestina). Quem paga são os povos com a sua vida, em guerras.
Enquanto os funcionários das companhias estatais têm o recorde dos mais altos salários e prémios (1300 € por mês), o salário médio de um funcionário é 175 €/mês. Um operário ganha acerca de 50 €/mês no início, enquanto o limiar da pobreza é estabelecido pelo ministério do trabalho em 375 €, declarando que um terço de 85 milhões de iranianos encontra-se (a ONU estima 65% da população iraniana) sob a linha da pobreza. A subnutrição aumenta seriamente. Segundo o ministério do trabalho, 2020 criou aproximadamente, 1.5 milhões de desempregados. As mulheres são em particular vítimas do desemprego (1.000.000 de mulheres perderam o emprego em 2020).
China e Rússia aumentam influência junto do regime
O dono do Irão já não é o Big Brother americano. O maior mercado do petróleo iraniano é atualmente a China que retém 30 bilhões de dólares de dívidas do Irão e paga em troca produtos de má qualidade que deram cabo da pequena industria iraniana. Para construção de uma barragem iraniana que aproveitará a China, este super-potência está a dar créditos com juros ao Irão! Há que salientar, todavia, que talvez depois de combinações sino-americanas, de repente a China declarou junto com a Arábia Saudita o desagrado de ver o Irão querer fabricar bomba atómica e intervir com terrorismo no Médio Oriente.
Os laços do Irão com a Rússia não são menos colonialistas. Em cumplicidade com a Rússia, o Qodse, forças de intervenção no estrangeiro, criado pelo Khamenei, interveio de diversas maneiras no terrorismo regional, na criação do hezbollah libanês, sírios, iraquianos, iemenitas, etc. Os passedaranes participaram com atos terroristas em 40 países do mundo. Doravante, é a Rússia que fala em vez do Irão nas negociações atómicas, enquanto com o assentimento russo, Israel bombardeia regularmente as bases das forças iranianas em Síria. A verdade é que o Irão tornou-se uma província pro-russa, entrou já na guerra da Ucrânia com drones, matando os ucranianos. Em troca, os Russos mandam especialistas anti-motim a Teerão para reprimir mais brutalmente a rebeldia. A Rússia colabora na fabricação da bomba atómica no Irão (chupando as riquezas deste país, mas talvez sem nunca permitir que se realizasse o ideal demencial do Irão ser uma potência nuclear). Há o perigo de o país se tornar o terreno do futebol macabro russo-americano, como na Ucrânia. Israel ameaçou constantemente bombardear o Irão.
O Ocidente está de facto no campo do povo iraniano, uma vez que o pacto de Yalta na partilha do mundo entre Estados-Unidos/Europa e a Rússia está a ser rasgado. Depois das revoltas atuais, o Ocidente deu luz verde à diáspora iraniana (mais de 4 milhões) para acentuar o isolamento do regime iraniano. Não foi sem eficácia: com a tutela jurídica dos prisioneiros políticos pelos parlamentares ocidentais, a máquina da morte do regime abrandou ligeiramente. É importante salientar que a dominação ocidental está a preparar uma alternativa para o Irão, promovendo o filho do Xá, na perpetuação da aristocracia de vassalidade, para assim dizer, para um povo considerado inapto de se liderar e se libertar.
As revoltas iranianas têm avanços e recuos. São dirigidas pelo movimento estudantil que teve desde o tempo do Xá a experiência do afrontamento (milhares de estudantes foram desde há décadas perseguidos, condenados, executados ou assassinados). «Os jovens dos bairros» organizam hoje a rebeldia em coordenação com as greves esporádicas em vários setores e sobretudo petrolífero, o que pode paralisar seriamente o regime. São eles os núcleos potencialmente capazes de constituir uma nova liderança, ao lado dos intelectuais, escritores, advogados/as, jornalistas, docentes, artistas, cantores, etc., todos presos/as. Pela primeira vez, apareceram os intelectuais do povo, longe dos intelectuais consumidores da ocidentalização. A rebeldia vai às vezes no caminho da guerra urbana contra forças de repressão, ao incendiar sedes de instituições. Todavia, há que sublinhar que a cultura global atual condicionou positivamente as revoltas (como foi o caso também no Egito e na Tunísia), sobretudo a rebeldia das mulheres é marcada pela cultura global: desde há um ano, em desafio do poder, desvelaram-se; hoje também nos protestos, enquanto o véu é o símbolo da autoridade teocrática, o sinal de soberania do regime ultrapassado por um mundo totalmente transformado, universalmente na vida dos jovens e das classes médias iranianas. A religiosidade devota está a desaparecer do palco social, não é evocada nas revoltas. Na construção da liberdade, e perante a corrupção e perversão dos homens do regime, as mulheres iranianas gritam todos os dias contra as forças de repressão: «Tu és perverso! Tu és corrupto! Eu sou a mulher livre!». A mensagem universal/laica contra o fascismo: Mulher/vida/liberdade está a desenhar, se o Irão conseguir escapar ao abismo, o horizonte de um futuro igualitário para todos e para os sub-humanos condenados à morte. Há que lembrar que, em resposta a homens que cantam o slogan nas manifestações, as mulheres respondem por uma segunda parte (ignorada por todos fora do Irão) : «Homem, pátria, desenvolvimento!».
Yuze-Palang é um professor iraniano reformado a viver em Portugal.
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