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Mulheres de Abril: Testemunho de Conceição Pereira

Foi através das reflexões na Liga Operária Católica Feminina que comecei a conhecer o regime fascista em que se vivia. Estávamos em plena guerra colonial, de vez em quando chegavam soldados no caixão e a consciência política foi ganhando força. Mas o meu baptismo político foi em 1969. Por Conceição Pereira.
Foto tirada no Funchal, quando Conceição Pereira estava a estudar para fazer os exames do antigo 5º ano do Liceu, em 1964.

 

 

Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.


 

 

 

Nasci em 1936 na freguesia do Seixal, Concelho do Porto Moniz-Madeira. É o concelho mais a Norte da Ilha e o que tem menos população. Para mim, este lugar é sagrado e único. A partir daqui, aprendi a conhecer o mundo, muito pequenino na época da minha infância e foi crescendo ao longo do tempo. Comecei por observar as altas montanhas que ladeiam o Seixal, as rochas que era preciso atravessar, a Coroa do Pico lá no alto, onde o sol se põe pelo meio-dia. Era o relógio da minha terra.

E além das rochas, das montanhas e das terras de cultivo, nos socalcos da borda das montanhas, temos o mar azul, esverdeado, calmo ou de barbas brancas em dias de tempestade, quando os pescadores ficavam em terra, por vezes durante semanas sem poderem pescar. O mar do Norte faz “levadia”, capaz de levar pessoas e bens. Mas é um lugar lindo. Quando chego ao Seixal, sento-me à beira mar, aquele mar a beijar a terra, verde, centro da laurissilva da Madeira.

Quem for ao Seixal pela primeira vez, não deve ficar apenas por uma visão turística. Tem de observar o mar a bater nas rochas, a cascata que o Turismo baptizou de Véu da Noiva, mas que em bom seixaleiro é a Ribeira de João Delgado. Levantar o olhar para observar as Queimadas, a Coroa do Pico e subir ao Chão da Ribeira, um vale aberto entre as duas altas montanhas, a Terra Chã e o Fanal.

Actualmente, o Chão da Ribeira é uma atracção turística, com pouca agricultura, mas ainda guarda vestígios das actividades agrícolas, como um fio (cabo de aço) que vem da beira do Fanal até o Chão da Ribeira. Através desses fios, os agricultores faziam chegar ao Chão da Ribeira o mato para o gado e madeira para as terras, para as latadas de vinha, sobretudo. Actualmente, os palheiros e armazéns foram transformados em pequenas casas de campo que alugam a quem quer fazer ali as suas férias ou apenas fins de semana. Conheço lá uma casa com pequeno comércio no rez-do-chão e quartos para alugar no primeiro andar. Tudo isto está coberto por grandes árvores da laurissilva, sobretudo vinháticos. É um Éden dos nossos dias.

Hoje li que a Empresa de Electricidade tem um projecto para o Chão da Ribeira. Estremeci. Há anos que os chamados “empreendedores” estão com vontade de fazer turismo no Chão da Ribeira. Será que é desta? Estou consciente que, quando chegarem esses investimentos, vão destruir a identidade deste lugar. Mas que posso eu fazer?

A principal actividade no Seixal era a agricultura. Naturalmente que eu pertenci a uma família de agricultores. O meu pai morreu muito cedo, não o conheci, e cresci com a minha mãe, os meus avós, as minhas avós, os meus tios e as minhas tias. E convivíamos com toda a vizinhança, conheciam-nos todos e não havia as desconfianças e os medos de hoje. Os perigos de convívio eram menores. Os grandes perigos eram os precipícios e as pedras que se desprendem e podem matar alguém cá em baixo.

A minha infância foi vivida ali, naquele meio, rodeada de outras crianças como eu, brincando nos quintais, a fazer rodas, a correr debaixo das vinhas e a subir às árvores. As crianças também trabalhavam nas terras, a cuidar de irmãos mais pequenos e algumas nem iam à escola, uma vez que as famílias davam mais valor ao trabalho que ao saber.

Eu fui para a escola aos seis anos, ainda antes de estar matriculada. A minha mãe e restante família dava muito valor ao saber, mas só havia a escola primária e a catequese. E por aqui fiquei. A minha adolescência e juventude não foi agradável. Eu gostava de ler, mas não havia livros. Só mais tarde apareceu o carro-biblioteca da Gulbenkien. Gostava de estudar, mas não tinha dinheiro para ir para a cidade. Não gostava de bordar e trabalhar na terra, mas não havia outras formas de vida. E a minha mãe voltou a casar.

Os rapazes saíram em massa para a Venezuela e ficaram as raparigas. Eu pensava: ao menos os rapazes embarcam, vão ganhar dinheiro e deixam esta vida, mas eu sou rapariga. Havia as actividades da igreja, enfeitar para as festas, ensinar catequese e pouco mais.

E foi a minha vida até aos 24 anos.

Um dia, uma senhora informou-me que nesse ano haveria exames para regentes escolares. E aí começou uma vida nova. O meu avô deu-me algum dinheiro, estive no Funchal uns meses a preparar-me para o dito exame e a seguir fui exercer como professora regente. Ganhava malíssimo, fora de casa, estive num sítio isolado durante três anos e percorria uma hora de caminho a pé para ir ao centro da freguesia. Mas ser professora era maravilhoso.

No último ano de trabalho nessa escola, recebi aulas de uma professora da freguesia e fiz o exame do 2º Ano do Liceu com boas notas. Sacrifiquei-me o ano inteiro, passei fome e passei frio naqueles longos caminhos, a pé, chegava ao sítio onde morava já de noite, o delegado escolar marcou-me faltas quando fui fazer exame, mas tive bons resultados e mandei o delegado se lixar.

É preciso tirar partido das coisas boas da vida e tentar anular o sofrimento e as patifarias que nos pregam.

Quando fui pedir uma licença para estudar, a Direcção Escolar não me autorizou e eu pedi exoneração de professora regente e fui estudar no Funchal para os exames do 5º Ano do Liceu. Para o efeito, vendi uma terra que tinha herdado dos meus avós paternos e com esse dinheiro paguei lições. No fim do ano lectivo fiz os exames, a parte de letras e a parte de ciências e passei. Alguém tinha vaticinado que eu não conseguiria, que ia misturar tudo o que tinha aprendido e reprovaria. Mas não reprovei e senti-me vitoriosa.

Mais uma vez as autoridades me lixaram a vida. Pedi uma autorização ao Ministério da Educação para entrar na Escola de Magistério e voltar a ser professora. A idade legal para entrar na Escola de Magistério era até os 28 anos e eu tinha 29. O Ministério não autorizou e eu não fui para o Magistério nessa altura. Também não sei onde iria buscar dinheiro para me manter a estudar mais dois anos, mas ia batalhar por isso.

Aluguei uma casa pequena para mim, o meu irmão e as minhas irmãs que foram estudar no Liceu do Funchal. E comecei de novo. Fiz diversos trabalhos, entre eles fui funcionária pública e empregada num escritório. Em 1972, parti para a França, com passaporte de turista, com o desejo de estudar sociologia. Contudo, a vida foi muito dura em França e apenas consegui o diploma superior da Aliance Française. Regressei definitivamente de França no verão de 1975. Vim cantar a LIBERDADE e entrei numa escola em Janeiro de 1976 para leccionar Francês e Português.

Como o diploma de francês não me deu habilitação própria para o Ensino, entrei para a Escola de Magistério em 1977, com 41 anos e fiz o curso. Leccionava francês à noite estudava durante o dia. Foi um tempo cansativo, com esgotamentos à mistura, mas nunca desisti. Como já estava a trabalhar no 2º Ciclo, quis manter-me neste patamar e para isso precisei fazer mais um estágio. Ao terminar esta fase, fomos avaliadas e as formadoras, sobretudo a de História, colocou-me abaixo das outras todas em termos de nota. Eu levantei a cabeça, sem pestanejar e disse: Podem dar-me a nota que quiserem porque a mim ninguém me tira o prazer de ter chegado aqui. Não pedi nada, não chorei, não fiz intrigas, mas cheguei onde eu queria. E vou ganhar tanto como as demais.

Alguém me disse: mas não é assim que se defende a nota! A nota é minha e eu defendo como eu quiser.

E passei a professora profissionalizada.

Quando é que tomei consciência política?

Eu sempre fui muito comunicativa, lidava com pessoas da paróquia onde vivia, no Funchal, e uma senhora convidou-me para uma realização da Acção Católica Operária. Fui nesse dia e continuei a frequentar aquele ambiente que me agradava bastante. Em breve entrei para a direcção diocesana da LOCF (Liga Operária Católica Feminina). Foi aí que comecei a tomar consciência social. Fazíamos revisão de vida, o Ver, Julgar e Agir, que nos ajudava a conhecer a situação social das pessoas. Tínhamos um padre assistente, o Dr Cruz (deixou de ser padre), que era um homem culto e com preocupações políticas. Foi através dessas reflexões que comecei a conhecer o regime fascista em que se vivia. Estávamos em plena guerra colonial, de vez em quando chegavam soldados no caixão e a consciência política foi ganhando força.

Mas o meu baptismo político foi em 1969. Um número elevado de cidadãos e cidadãs assinaram e entregaram uma carta ao Governador Civil, colocando aí as suas preocupações sociais e políticas. Eu não assinei essa carta por ser funcionária pública. Lembro-me de um amigo nosso que não assinou por ser bancário e outro que trabalhava na TAP. Houve o cuidado de proteger algumas pessoas para preservar-lhes o seu posto de trabalho.

Em Setembro do mesmo ano foram apresentadas as candidaturas às eleições. Uma lista do poder, da União Nacional e outra da oposição. Eu e a minha amiga Fernanda Pereira participámos em debates políticos durante uma semana. Todos os dias à noite reuniamo-nos na Fotografia Vicentes, propriedade do pai do Vicente Jorge Silva e aí discutimos o programa e as pessoas que concorreram como candidatos a deputados pela Madeira.

Estavam poucas mulheres como participantes nestes debates. Da Acção Católica, apenas eu e a Fernanda e outras senhoras que eu não conhecia. Também participaram estudantes universitários, todos rapazes, antes de saírem para Lisboa ou Coimbra.

A candidatura não teve êxito, como era previsível, mas discutimos política e fiquei com uma visão mais profunda do que era o fascismo.

Entretanto, os organismos operários da Acção Católica criaram o Centro de Cultura Operária (CCO), com o intuito de alargar a nossa acção a pessoas que não se reviam na Acção Católica de cariz religioso. Na Madeira, por influência do Dr Cruz e outros padres amigos dele que eram professores, o CCO tomou a forma de escola. Eu fiz parte da Direcção do CCO e cheguei a ser presidente. Além das aulas, realizávamos actividades culturais e recreativas para ampliar a cultura e a consciência de quem frequentava o CCO. Até organizámos uma biblioteca com livros que um casal que saiu para Lisboa ofereceu e os que tínhamos em casa e não precisávamos. Criámos ali um ambiente cultural, recreativo e político.

Em finais de 1971, reunimos todos os elementos do CCO que trabalhavam no sector do comércio e escritórios, com o fim de trabalhar para uma candidatura ao Sindicato dos Empregados de Escritório e Caixeiros. Nessa altura eu trabalhava num escritório, mas ainda não podia candidatar-me, pois a burocracia sindical na época era complicada. Mas vivi essa campanha eleitoral com muito empenho.


Conceição Pereira na Escola Horácio Bento de Gouveia, 1981.

Passados 40 e muitos anos, e porque não fui candidata à direcção do sindicato, havia muitas lacunas na minha memória sobre este acontecimento. E em 2016, conversei longamente com o senhor Américo Nunes, contabilista reformado, que tinha presente na memória todos os acontecimentos sobre essas eleições. Em finais de 1971, dois elementos do CCO convidaram-no para uma reunião na sede da Acção Católica. Conversaram sobre a possível candidatura ao Sindicato de que ele também fazia parte e marcaram outra reunião, com a condição de que cada um levaria mais um elemento à reunião seguinte. E o grupo foi aumentando, muita gente se entusiasmou, porque a direcção que dirigia o sindicato não se preocupava com os trabalhadores e trabalhadoras do sector e o poder político e patronal fazia o que bem entendia. Só para exemplificar, quem fazia a contabilidade dos sindicatos era um elemento da Delegação Regional do Trabalho, dirigida por um representante do Ministério das Corporações.

O grupo já era grande e foi pedido à Direcção do Sindicato para reunirmos na sede do Sindicato, mas foi-nos negado. O tal doutor da D.R. do Trabalho começou a intimidar elementos do grupo, por telefone, porque eram proibidas reuniões clandestinas. Começámos a distribuir comunicados aos sócios da seguinte maneira: feita uma lista dos elementos em condições de fazerem distribuição clandestina e quantos comunicados cada um precisava, metemos os comunicados em envelopes fechados, com os nomes das pessoas a quem eram endereçados e andámos à noite a percorrer a cidade e a meter os tais envelopes debaixo das portas de escritórios e casas de comércio. E a nossa campanha atingiu muita gente, esperançada por uma mudança nas suas condições de trabalho.

E chegámos ao dia das eleições. A direcção cessante até tinha recorrido para uma Federação Nacional, com o intuito de nos barrar o caminho, mas as eleições aconteceram com duas listas à disputa da liderança. Começaram a chegar os sócios para votar, os da direcção cessante ameaçavam-nos que se houvesse balbúrdia nós seríamos responsabilizados. Os sócios votantes foram organizados numa fila dupla pela rua abaixo, que muito ordeiramente foram subindo para entrar na sede e votar. À porta do sindicato, estavam duas mulheres: eu e outra colega, que entregávamos a cada votante o boletim de voto e o programa da lista.

E aparece-nos pela frente o grande chefe, o Delegado do Ministério da Corporações da Delegação de Trabalho. Que havíamos de fazer? Parece-me que nem nos assustámos. Éramos novas, estávamos em luta e não pensamos nas consequências. Argumentámos o melhor que soubemos, que era um acto eleitoral, tudo legal… O dito senhor não disse nada, olhou para aquela gente toda pela rua fora pronta para votar e foi embora. Mais tarde tomámos consciência que corremos sérios riscos. Se estivessem menos pessoas com certeza que o dito senhor tomaria medidas para nos prender, quem sabe? Ele teria saído de casa num dia à noite só para fazer a vontade aos dirigentes que estavam em vias de perder eleições? E perderam mesmo. A lista A, a nossa, ganhou com 538 votos e a lista B da direcção cessante perdeu com 35 votos.

Foi uma grande vitória dos trabalhadores e trabalhadoras que pode servir de exemplo nos dias de hoje, com sectores sem representação sindical, condições de trabalho degradadas e muitos outros problemas. Podem sempre organizar-se e mudar direcções sindicais ou criar sindicatos novos. Haja iniciativa e espírito de luta.

Através das situações que fui vivendo, a minha consciência política foi evoluindo.

Gostaria de referir aqui o papel do Comércio do Funchal, um jornal anti-fascista, impresso em papel cor de rosa, onde escrevia o Vicente Jorge Silva e o Liberato Fernandes, que faziam parte da redacção, e tinha muitos correspondentes pelo país e no mundo. Até a Natália Correia escrevia para o Comércio do Funchal. Este jornal tinha assinantes na Madeira, mas era a nível nacional e no estrangeiro que tinha muita aceitação, sobretudo pelos exilados políticos e desertores que assinavam o jornal cor de rosa e mandavam os seus contributos para serem publicados. Eu também publiquei alguns artigos no Comércio do Funchal: História de Uma mulher, Promoção da Mulher ou discriminação Sexual?, A Mulher Portuguesa e a Imigração. Também publiquei Mulheres – Conceitos e Falsos Conceitos na página feminina do Diário de Notícias da Madeira, dirigida pela jornalista e escritora Helena Marques.

E em 1972 fui para França, como atrás já referi.

Cheguei de França no Verão de 1975, numa época em que a situação política estava ao rubro. Eu queria fazer política e tive de escolher. Pedi a minha inscrição na União do Povo da Madeira (UPM), uma organização política regional que não era um partido. Foi aqui que comecei a fazer política organizada.

O Vasco Gonçalves estava no poder central, o PCP tinha uma organização muito fraca na Madeira e a UPM era a vanguarda da luta que enfrentava a direita, organizada na FLAMA, uma organização independentista e sobretudo belicista. Muitos carros de pessoas da UPM e do PS foram explodidos e a nossa sede foi atacada várias vezes. Todas as noites ficava um grupo na sede, que se dividia em três a partir da meia-noite. Uma equipa vigiava da meia-noite às duas, outra equipa das duas às quatro e outra das quatro às seis da manhã. Cada um destes grupos estava de serviço duas noites por semana.

Uma noite, fui para o meu local de vigia às quatro horas, mas deu-me vontade de fazer xixi e desci a escada rapidamente, fui à casa de banho e subi. Uma vez sentada na janela, vejo um fuminho como se fosse um cigarro aceso. De repente pensei: se o camarada que estava aqui deitasse uma beata fora não iria bater àquele lado. Deve ser uma bomba. Gritei, acordei todos os que estavam na sede e reparei que ninguém sabia o que fazer naquela situação. Abri a porta e queria fugir dali. Um camarada chamou-me e eu respondi: Achas que vou ficar aí à espere que o prédio venha abaixo? Nisto, ouve-se um estalinho como uma bombinha de Natal. Esperámos, não aconteceu mais nada. Quando o dia clareou, encontrámos o petardo que continha doze velas de gelamonite, material de guerra. O que terá acontecido? Os flamistas prepararam o petardo e espiaram-nos durante algum tempo, vários dias, talvez. Na fachada da frente era difícil e tentaram atacar-nos pelas traseiras do prédio. Quando se deu a mudança de equipas, acenderam o rastilho e atiraram-no para o nosso quintal. Como era um grande petardo, o rastilho separou-se e quando estalou não fez explodir o petardo. Se explodisse seria uma tragédia, pensamos nós, porque o prédio não ia segurar-se.

Outro dia atiraram um petardo pela frente do prédio, com um carro em andamento, que explodiu na rua. Causou prejuízos, mas não matou ninguém. A Clarisse e o Teixeira, que estavam à janela, foram atirados para o fundo da sala, mas seguraram-se.

A Flama causou muitos prejuízos em edifícios públicos e até destruiu um avião. Em Outubro atacaram a rádio, ocuparam o prédio, obrigaram profissionais a ler os comunicados deles, mas nesse dia deram-se mal. A Direcção da UPM reuniu, contactou com o Sindicato da Construção Civil e trabalhadores de duas obras desceram ao centro do Funchal armados de paus e ferros. Alguns trabalhadores entraram pelo telhado do prédio, outros pela porta e à medida que os flamistas foram saindo levaram pancadaria e foram lamber as feridas para o hospital.

Foi uma época difícil, mas rica em aprendizagem. Cada um teve de posicionar-se. Ou estava com a direita ou com a esquerda. Estas lutas com a Flama só terminaram em 1976, quando o PSD chegou ao poder na região.

A UPM aderiu à UDP em finais de 1975 e começámos a trabalhar como partido. Durante anos integrei o Conselho Regional da UDP, participei nas lutas e nas listas eleitorais. Só fui candidata em lugar elegível em 1992 e fui deputada na Assembleia Legislativa da Madeira durante um mandato.

E vou referir-me à UMAR, que foi criada em 1976 e sou associada desde essa época até os nossos dias. Durante muitos anos fiz parte da Direcção Nacional e por fim da Assembleia Geral. Sempre custeei as minhas viagens às reuniões da UMAR e também da UDP, apesar de não ser rica e sei que muitas outras e outros têm mais dinheiro do que eu. Mas estou bem comigo mesma, pois ainda não me faltou o essencial para viver. A causa feminista foi sempre uma área que me entusiasmou, pois sendo mulher com responsabilidades sociais e políticas não podia descurar esta causa. Passo a transcrever um texto que escrevi e publiquei num pequeno livro, A VIDA EM MOVIMENTO.

ÀS MULHERES DO MEU PAÍS

Mulher
Não deixes passar a vida
Pois só vives uma vez
E a vida passa depressa
Que um dia, quando acordares
E olhares para trás
O que é que encontrarás?

Não deixes espaços vazios
Nem marcas de silêncio cúmplice
Pensa em ti, na tua vida
Na vida de todas nós
E naquelas que hão-de vir

Não deixes passar a vida
Prende-a bem
Com alma, com coração
Sobretudo com a razão
Não te esqueças de viver
Pois vives só uma vez

A vida
É a nossa razão de ser
Existes. És vida.
Vive. Pensa. Ama. Tens de ser ouvida
Tens de estar presente na vida
Na casa, no trabalho, na associação, na política
Na decisão
Não mais a passividade e a resignação
És um ser pensante, tens ideias, intervéns
E pesas nas decisões

Nada de de seguir atrás porque te disseram:
Vai!
Tu vais se decidires ir
Tu ficas se quiseres ficar
Tu amas e queres ser amada
Tu pensas e não serás anulada

Não mais a mulher – objecto
Não mais a mulher bibelot para homem se recriar
Não mais o teu corpo só para dar lucro
Não mais teu sorriso pra vender produto

O teu corpo é belo
Teu sorriso encanta
Mas é teu só teu
Não pra ser vendido
Não és gado bruto nem ave canora
És gente! És senhora!

És uma mulher
Dás filhos ao mundo
Povoas a Terra
Trabalhas, produzes
E tens de ser gente
Ao lado dos homens
Que marcham contigo
E te amam assim

É este o meu ideal de mulher: interventiva, pensante, autónoma.

Tenho muito orgulho em ter conquistado a minha autonomia pessoal, social, política e económica. Não dependo de ninguém, a não ser para alguns trabalhos que o corpo já não é capaz de realizar. Estou ficando velha, por causa da idade e das doenças que enfraquecem as pessoas. Sei que, se não morrer antes, vou depender de alguém que me apoie e trate de mim. É uma regra universal e eu não sou diferente das outras pessoas.

Em 1999 nasceu o Bloco de Esquerda. Foi uma alegria imensa, fazer política de forma mais alargada, com mais cabeças e mais ideias.


Conceição Pereira em sua casa, em 2013.

As primeiras eleições a que o BE concorreu foi para o Parlamento Europeu e eu fui a candidata pela Madeira. Fui e sou a primeira pessoa que se candidatou pelo BE na Madeira, num partido novo, sem implantação, com muita gente a dizer enormidades contra este partido, mas começámos a lançar o BE para a frente. No mesmo ano, fui cabeça de lista do BE para as eleições à Assembleia da República, incluindo na lista o Roberto Almada que pela primeira vez entrou num partido político. E fomos abrindo caminho e dando a conhecer o Bloco de Esquerda como partido.

Apesar da idade e das maleitas que me atacam, ainda não desisti da luta por um mundo onde prevaleça o respeito e a justiça social

O que eu gostaria mesmo era de ver a humanidade tomar conta do seu destino e abater os malfeitores que dão cabo da vida dos humanos e até do Planeta Terra. E termino com o seguinte texto, que faz parte do pequeno livro que citei atrás.

É PRECISO DESTRUIR A VILANIA

Ó céu da minha terra
Tu cobres este espaço e ouves os lamentos
Das mulheres e dos homens madeirenses
Tu ouves nossos passos nossos gritos
Tu vês todos os dias falcatruas injustiças
Tu sabes quem oprime e quem nos pisa
E nada fizeste para nos libertar deste flagelo
Por favor
Faz chover uma lança bem cortante
Que destrua estas amarras e mordaças
Faz soar a voz da liberdade
Do respeito e da justiça social
Estamos à espera e o tempo vai passando
E todos os dias sobe o tom desta loucura
Em que o carrasco é o rei do arraial

Não te esqueças que paciência tem limite
E a ousadia já vai desabrochando
Já sinto os passos apressados dos ousados
E pressinto a revolta palpitando
E um dia
Nem o céu nem o inferno
Poderão sufocar o ímpeto dos agravos
Das revoltas e sentimentos recalcados

Nesse dia
As comportas se abrirão
E as mágoas sofrimentos sacrifícios
Correrão
Num rio de cascatas
Desembocando no centro da cidade
Os covis ficarão tão alagados
Que as ratazanas sairão à luz do dia
Ou ficarão para sempre sepultadas
Na lama da sua vilania

E cantará minh’alma enfim liberta
Meu coração dançará ao som da valsa
Embalando a bela música tão esperada

Ó música que tardas a chegar
Meu coração anseia por clarinetes e trompetes
Precisa ouvir novas melodias
Dançar ao ritmo do amor e da harmonia
E só depois adormecer e repousar
Confiante que este céu que cobre a Terra
Sempre há-de abrigar este bom povo
Que um dia destruiu a vilania


Maria Conceição Pereira Maria tem 83 anos, professora aposentada e membro do sector dos professores aposentados do Sindicato de professores da Madeira. É membro da UMAR desde a sua fundação e dirigente regional do Bloco de Esquerda. É a primeira pessoa que se candidatou pelo Bloco de Esquerda na Madeira em 1999, data da fundação do Partido.

 

 

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