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Melilla: a tragédia e a morte geradas pelas políticas de controlo migratório

Cerca de 30 migrantes morreram e centenas ficaram feridos por causa do abuso da polícia marroquina em cooperação com forças espanholas. A Europa Fortaleza recebe quem foge de massacres com mais massacre. Por Irene Graíño Calaza.
Migrantes retidos pelas forças policiais marroquinas. Foto: Associação Marroquina dos Direitos Humanos.
Migrantes retidos pelas forças policiais marroquinas. Foto: Associação Marroquina dos Direitos Humanos.

25 de junho, Melilla. Até ao momento em que este artigo foi escrito sabe-se que morreram pelo menos 27 pessoas migrantes e que há centenas feridas como consequência do abuso de força por parte das forças de polícia marroquinas em cooperação com as forças espanholas. Uma tragédia que foi relatada na primeira pessoa, entre outras organizações, pela AMDH Nador que testemunhou os acontecimentos, gravando imagens e vídeos que dão conta da enorme brutalidade que usou o dispositivo policial para tentar impedir a entrada dos migrantes. Como denunciam num comunicado conjunto a AMDH, o Caminando Fronteras, o Coletivo das Comunidades Subsaharianas de Marrocos, a Associação de Ajuda aos Migrantes em situação vulnerável e a Attac de Marrocos, estas condições têm vindo a repetir-se desde há semana: “as campanhas de detenções, as rusgas nos acampamentos e as deslocações forçadas das comunidades migrantes em Nador e região envolvente pressagiavam este drama escrito de antemão”.

De acordo com o que as associações afirmam no comunicado, estas ações são marcadas por “violações dos direitos humanos dos migrantes no norte (Nador, Tetouan e Tânger), bem como no sul de Marrocos (El Aaiun, Dakhla)”. Há mais de um ano e meio, os migrantes de Nador não têm acesso a medicamentos ou cuidados de saúde, os acampamentos foram incendiados e os seus bens saqueados, os seus poucos alimentos destruídos e até "se confiscou a pouca água potável que tinham nos acampamentos”.

O que aconteceu em Melilla enquadra-se num contexto de retomada dos acordos de “cooperação” entre Espanha e Marrocos, uma aproximação do executivo de Pedro Sánchez ao regime de Mohammed VI, e do mesmo modo, uma reiteração da falta de compromisso com o povo saharaui. Basta escutar as palavras de Sánchez, que agradeceu sexta-feira à noite a “extraordinária cooperação com que estamos contando no Reino de Marrocos” e agradecendo a Marrocos por ter acionado a polícia em Melilla. As imagens da AMDH mostram a indiscriminada violência policial no contexto da tal cooperação entre os dois Estados, centenas de pessoas abandonadas, feridas, desprotegidas e sem ninguém que as assista, ante a omissão e a falta de humanidade dos corpos de “segurança” de ambos os Estados.

Neste contexto, a Fronteira Sul converte-se um dia mais num lugar de horror, desumanização e excecionalidade, no qual as violações dos direitos humanos das pessoas pessoas migrantes se repetem constantemente. Um cenário de abuso de força e de autoridade, violência, impunidade e criminalização, apoiado e aplaudido por ambos os governos sob o pretexto do esquema securitário da “política inteligente de fronteiras”.

A Fronteira Sul como porta de entrada e primeiro espelho de uma Europa Fortaleza na qual a uns migrantes se diz sim e a outros não. Esta Europa, e esta Espanha, na qual se executam políticas de seleção e exclusão de migrantes com base em critérios hierárquicos de opressão como a origem, a nacionalidade, o género e a raça. É na sequência destes acontecimentos e da rejeição dos migrantes dos países do Sul global que estes eixos históricos de opressão se tornam mais claramente visíveis: o racismo exacerbado e o colonialismo que explica as políticas de migração nacionais e da União Europeia.

Espanha e Marrocos “cooperam” e, neste contexto, a externalização torna-se numa ferramenta indispensável para que Marrocos adote o papel de guardião da porta de entrada e realiza o primeiro controlo securitário usando brutalidade sistemática na Fronteira Sul. Deste modo, mediante os dispositivos fronteiriços de controlo e securização adotados nos últimos anos, as políticas de “segurança” simbolizam a faceta mais mortífera, egoísta e desumaniza do Norte global, que face à sua “segurança” gera a morte, violência e violação absoluta das pessoas que vêm do sul.

As migrantes do Sul fogem de massacres, guerras, ocupação, crise climática, esgotamento de recursos, pobreza extrema e fome pelas quais o Norte – que nega o acesso e condena à morte – é diretamente responsável. Estes são efeitos da história, uma história na qual este Norte participou, apesar de não se querer falar sobre isto. Uma história do saque mais extremo de recursos, violação, colonialismo, extrativismo, abuso, colaboração com ditaduras e elites de poder, venda de armas e um longo et cetera que se pretende, a partir do Ocidente, esconder e “mitigar” com “acordos de colaboração e cooperação bilaterais”.

É hora de assumir responsabilidades históricas e atribuir reparações aos povos que foram sistematicamente saqueados, reprimidos e violentados com a participação do Norte Global. Isto deve começar por acabar, condenar e não deixar impunes as violações de direitos humanos contra migrantes e implementar políticas públicas migratórias e de asilo garantistas. As consequências da história e os eixos sistémicos de opressão com base no racismo e colonialismo perduram, como vemos, hoje em dia, esta historia na qual – conjugadas com a política de alteridade – as pessoas de uns países são acolhidas dignamente e outras são brutalmente violentadas. As imagens de Melilla revelam a discriminação e as diferenças de tratamento entre umas pessoa migrantes e outras.

As políticas de acolhimento e integração devem ser regidas com base na igualdade e não com base na discriminação, nas garantias e obrigações internacionais dos direitos humanos. Deve ficar claro que a Espanha e a União Europeia receberem dignamente as pessoas que fogem da violência não é questão de escolha e de solidariedade exclusora – que não se trata de solidariedade mas é seu dever devido aos pactos internacionais assinados em matéria de direitos humanos –, e que deriva igualmente da legislação europeia e interna. Esta Europa Fortaleza, sob o pretexto da “segurança comunitária”, ataca os direitos das pessoas migrantes e, ao mesmo tempo, infringe frontalmente as suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos.

O sucedido em Melilla é gravíssimo e está relacionado com a deriva securitária, criminalização da migração e externalização das fronteiras dos últimos anos. Desta forma, as políticas migratórias transformam-se em políticas de morte, necropolíticas (termo cunhado por Achille Mbembe). A Europa Fortaleza recebe as pessoas que fogem do massacre com mais massacre, violência e morte.

É urgente que esta deriva violenta e sistémica nas políticas seja travada, que se assumam responsabilidades pelo sucedido, se criem políticas migratórias garantistas e se proporcione um acolhimento digno às pessoas que fogem. Face a este massacre, o silêncio é intolerável e cúmplice. Basta de políticas migratórias racistas e exclusoras que geram morte e insegurança. Das imagens divulgadas pela AMDH Nador, devemos retirar cada palavra, cada voz e grito de raiva e injustiça para denunciar, visibilizar e condenar estas violações de direitos humanos. As vítimas merecem reconhecimento, reparação, memória, verdade e justiça. Esta mortandade e massacre fronteiriço não podem ficar impunes.


Irene Graíño Calaza é jurista e politóloga especializada em Direitos Humanos.

Texto publicado originalmente no El Salto Diário. Traduzido para o Esquerda.net por Carlos Carujo.

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