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Médico sírio relata fuga do país

O agravamento da situação na Síria nos últimos quatro anos levou Marwan* a tomar a decisão de fugir para a Europa. Um depoimento impressionante feito para a ONG Médicos sem Fronteiras.
"O meu filho recusou-se a falar comigo. Ele pensava que eu o tinha abandonado e isso partiu o meu coração", revelou o refugiado sírio

"Era pediatra na Síria, casado, com dois filhos. Nós vivíamos em Raqqa, conhecida como o reduto do Estado Islâmico (EI), e administrava uma clínica privada numa área pobre da cidade que oferecia cuidados de saúde gratuitos aos deslocados que fugiram para lá vindos de Homs e Aleppo.

Em abril e maio de 2013, houve uma escalada nos confrontos, ataques aéreos e tiroteios. O Exército Livre da Síria (FSA, na sigla em inglês) conquistou território em Raqqa, e a cidade estava a ser bombardeada todos os dias por forças do governo. Um dia, eu estava com um vizinho do lado de fora da minha clínica, quando ele foi baleado na minha frente. Foi então que decidi fechar a minha clínica devido ao perigo que corria. Uma semana depois, uma bomba de barril atingiu uma mesquita nas proximidades e, ao mesmo tempo, destruiu completamente a minha clínica. Felizmente, naquele momento, não havia ninguém no prédio.

As ameaças do EI

Foi nesse período que ouvi dizer que os MSF estavam a fazer entrevistas para uma campanha de vacinação que pretendiam fazer em Tal Abyad, situada a 100 quilómetros ao norte de Raqqa. Dois dias depois de ter tido conhecimento desta iniciativa, comecei a trabalhar para a organização.

Em Raqqa, uma série de grupos opositores foi-se revezando no controle da cidade: primeiro, foi o FSA; depois, a Al Nusra; e, no fim de 2013, o EI havia tentou tomar a região.

No início, o EI não se importou com a área médica. No entanto, após alguns meses, o EI decidiu que era necessário assegurar o controlo dos hospitais, clínicas e serviços de apoio médico. As pessoas começaram a sentir-se ameaçadas: a maioria das organizações internacionais saiu de Raqqa e muitos médicos sírios fugiram do país.

Quanto a mim, decidi abrir uma clínica em minha casa para prestar alguma assistência. Como médico, o meu lema era: “Tratar pessoas, mas também tentar proteger-me”.

Os membros do EI começaram a vir à minha casa para receber tratamento médico. Eu sentia-me desconfortável com esta situação, mas fazia-o por causa da ética médica: tratar todos os pacientes independentemente da etnia, religião ou filiação política.

Pouco tempo depois, os membros do EI começaram a vir à minha casa para receber tratamento médico. Eu sentia-me desconfortável com esta situação, mas fazia-o por causa da ética médica: tratar todos os pacientes independentemente da etnia, religião ou filiação política.

O barulho dos aviões assemelhava-se a um terramoto

Mas a presença de membros do EI à porta da minha casa era aterrorizante, tanto para a minha família como para mim. Eles chegavam em jipes, faziam muito barulho e conduziam a alta velocidade. Alguns meses depois, quando a coligação liderada pelos Estados Unidos começou a bombardear o EI, eles chegavam à noite e forçavam-me a ir com eles para tratar os seus feridos. A minha família ficou com medo que eu não voltasse. Eu pensava que seria morto por ataques aéreos ou pelo EI.

Um dia, o EI pressionou-me para que eu fosse trabalhar para o hospital que eles controlavam na cidade. A maioria dos médicos fugiu da Síria e eles precisavam de mim. Mas eu disse que não e fui ameaçado. Não havia lugar para me esconder deles, nem em pequenos lugares perto de Raqqa, nem na própria cidade. Por causa disso, comecei a perceber que só conseguiria sobreviver se fugisse da Síria. Então pensei: Prefiro entrar num daqueles barcos mortais do que ficar aqui.

Em Raqqa a vida era um terror. Durante o dia, a cidade era alvo dos ataques aéreos do governo e à noite era bombardeada pelas forças da coligação. O barulho dos jatos assemelhava-se a um terramoto. Um amigo próximo foi morto por um ataque do governo.

Tive a sensação que a vida tinha acabado para mim, e a única coisa que eu tinha a fazer era salvar a minha família. Eu preocupava-me com o facto de os meus filhos não terem vida nem acesso à educação na Síria. Eu queria proteger a minha vida para salvar a vida dos meus filhos.

Comecei a planear minha partida. E assim pensei viajar para a Turquia e apanhar um barco para a Europa, em direção à Holanda. A minha esposa estava no último mês de gravidez do nosso terceiro filho. Ela estava tão exausta por causa do seu estado que a viagem foi difícil para ela. Então, a ideia era que eu fosse primeiro com um amigo e quando conseguisse obter os documentos de imigração, a minha família iria ter comigo.

Na última noite decidi dormir com os meus filhos. Embora eles não soubessem que eu estava decidido a partir, pressenti que eles perceberam que algo se passava. Eu gostaria de os ter trazido comigo.

Sair de Raqqa não foi fácil, devido aos confrontos entre o EI, combatentes curdos, a Frente Al-Nusra e o FSA. Eu precisei de passar por três postos de controle entre Raqqa e Efreen e  foi como passar por três países diferentes.

Em Esmirna as pessoas dormiam nas ruas e estavam a morrer de fome

Quando cheguei à Turquia, ouvi dizer que o governo estava a prender as pessoas que se deslocavam para Esmirna. Lá no fundo, tinha uma voz dentro de mim a pedir que essa viagem não corresse bem o que me obrigaria a voltar para a Síria

O meu amigo e eu fomos ver o mar. Foi difícil olhá-lo sabendo que em breve nós poderíamos morrer afogados.

Quando chegamos a Esmirna, a cidade estava lotada: as pessoas estavam dormir nas ruas e a morrer de fome; precisamente aquelas que haviam dado todo o dinheiro que tinham a traficantes, mas não conseguiam ir-se embora. Nós ouvimos muitas histórias sobre barcos náufragos. O meu amigo e eu fomos ver o mar. Foi difícil olhá-lo sabendo que em breve nós poderíamos morrer afogados.

Quando chegou a hora da partida, foi uma decisão difícil entrar naquele bote de borracha superlotado. Algumas pessoas estavam a chorar e outros estavam a rezar porque todos têm a sua maneira de enfrentar  o medo. Chegamos à ilha grega de Farmakonisi e no dia seguinte fomos transferidos para Leros. Viajámos da Grécia para a Macedónia, depois passámos pela Sérvia. Dormia mal e o meu sonho era encontrar uma almofada para dormir, água para tomar um banho e um telefone para ligar para a minha família.

Só em Belgrado, consegui obter um chip para telefonar para casa. Falei com minha esposa e filha, mas meu filho recusou-se a falar comigo porque achava que eu o tinha abandonado e isso partiu o meu coração.

A partir de Belgrado, atravessamos campos de milho, e depois pagamos 450 euros a um contrabandista para nos levar para a Áustria. Aí passámos a noite num parque em Viena, e pela manhã comprei bilhetes de comboio para Amesterdão.

A minha esposa deu à luz em outubro, logo depois da minha chegada a Amesterdão. Ela enviou-me uma foto do bebé. Eu falo com a minha família todos os dias, mas meu filho ainda se recusa a falar comigo. Quando eu falo com minha filha, o meu coração dispara como o de um cavalo em corrida, e não consigo acalmá-lo. É muito difícil ouvir os aviões de guerra em  fundo, sabendo que a qualquer momento eles vão largar as suas bombas e que minha família está apavorada, mas eu estou a milhas de distância e não posso protegê-los".

*Marwan (nome fictício)  trabalhou para  a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Tal Abyad, no norte da Síria. Após recusar um emprego oferecido por militantes do Estado Islâmico (EI) em Raqqa, onde vivia com a mulher e os dois filhos, passou a ser ameaçado pelo grupo extremista. Sabendo que sua vida estava em perigo, tomou a decisão de partir para a Europa.

Depoimento publicado no Opera Mundi no dia 18 de dezembro.

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