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Medicina e urbanismo: um abraço necessário no pós-covid

Como a nova pandemia já nos aponta, a saúde tem que ter um papel mais importante na vida das cidades, devendo ser a base da construção dum novo ambiente urbano. Artigo de José Castro e Ana Isabel Silva
A saúde tem que ter um papel mais importante na vida das cidades - Comox, British Columbia foto de University of British Columbia
A saúde tem que ter um papel mais importante na vida das cidades - Comox, British Columbia foto de University of British Columbia

Em 1848 foi criada a primeira Lei de Saúde Pública no mundo. Apesar das suas limitações, foi um passo importante para melhorar as condições sanitárias nas cidades da Inglaterra e Gales e muito contribuiu para o surgimento, 100 anos depois, do Serviço Nacional de Saúde (NHS) no Reino Unido, que viria a ser também o primeiro no mundo. Baseada no relatório de Edwin Chadwick de 1842 sobre “A condição sanitária da população trabalhadora da Grã-Bretanha”, teve muitas dificuldades na sua aplicação. Esbarrou com a ideologia liberal então dominante. Em tempos de “laissez faire”, não era aceite a intervenção do Estado nos problemas dos aglomerados urbanos. E a criação dos conselhos locais de saúde, previstos na lei para todas as cidades com índice acima de 23 mortos por mil pessoas e com poderes sobre abastecimento de água, rede de esgotos ou novas edificações, era apresentada como despesista. Foi um novo surto de cólera nesse mesmo ano de 1848 que acelerou a aprovação da Lei de Saúde Pública. Mais tarde, um outro acontecimento, o “Grande Fedor de Londres” em 1858 forçou os parlamentares de Westminster, não podendo escapar aos cheiros horríveis dum rio Tamisa sem água devido ao calor e à seca, a encontrarem rapidamente verbas e a autorizarem o projecto do engenheiro Bazalgette de construção da primeira rede de esgotos.

Naquela época eram frequentes nas cidades os surtos de varíola, peste, tifo, cólera e outras doenças que provocavam milhares de mortos. As causas de tanta mortandade eram erradamente atribuídas a miasmas, exalações pútridas existentes no ar. O médico John Snow num trabalho em 1854 sobre o modo de transmissão da cólera, salientou o papel dos micróbios na difusão das doenças, mas as suas conclusões foram ignoradas. Também durante muito tempo foi atribuída à grande densidade populacional a causa do surgimento das doenças, apesar de ser conhecido desde 1844 o escrito “A condição da classe operária na Inglaterra” de Engels, em que eram descritas as terríveis condições de vida dos trabalhadores, uma situação bem mais decisiva na difusão das doenças.

Em 1848 foi criada a primeira Lei de Saúde Pública no mundo, no Reino Unido

Na França só em 1902, 54 anos depois da Inglaterra, foi aprovada a primeira Lei de Saúde Pública. Em 1820 a esperança média de vida era de 36 anos. E em Paris a cólera tinha causado mais de 18.000 mortos, apenas no ano de 1832. Mas apesar dos trabalhos de cientistas como Lavoisier ou Villermé (na sua obra “De la mortalité dans les divers quartiers de Paris” mostrou que as causas das doenças são mais as condições sociais que os factores ambientais), o Estado era demasiado fraco para impor medidas de saúde pública nas áreas urbanas. Em 1850 saiu a lei sobre alojamentos insalubres, que ajudou o prefeito Haussmann a avançar com as obras que, a partir de 1853, revolveram (e destruíram) a área central de Paris, não tanto por razões de higiene pública, mas por receio de novas revoltas operárias. É que na revolução de Junho de 1848 o exército não tinha podido entrar com todos os canhões nas ruas estreitas e sombrias ocupadas pelos trabalhadores em luta.

Folheto que anuncia o início do SNS na Inglaterra em 5 de Julho de 1948
Folheto que anuncia o início do SNS na Inglaterra em 5 de Julho de 1948

Os trabalhos de Pasteur em 1862 sobre o papel dos germes e bactérias no surgimento das epidemias vão provocar uma maior atenção mediática sobre a investigação médica. E impulsionaram intervenções públicas nos espaços urbanos: construção de redes de esgotos, pavimentação de ruas, distribuição de água canalizada ou recolha de lixos.

Além destas intervenções na sequência das propostas médico-científicas que ficaram conhecidas como higienismo, ocorreram ainda no século XIX importantes transformações no pensamento e acção sobre os grandes aglomerados populacionais. São disso exemplo projectos como o “Falanstério” de Charles Fourier em 1822 ou “A new view of society” de Robert Owen em 1836, e também publicações como “Hygeia, uma cidade da saúde”, livro em que Benjamim Richardson, partindo duma visão moralista onde o tabaco não existe e o álcool é proibido, promete uma cidade sem doença. A descoberta das vacinas só ocorreria muito tempo depois: contra a tifoide em 1896, tuberculose em 1921, difteria em 1923, febre amarela e gripe em 1937, varicela em 1966…

Uma relação prometedora …

Na origem do urbanismo na segunda metade do século XIX há uma analogia com a medicina. O urbanismo era entendido como “remédio” para os males que afectavam as grandes cidades. Um dos casos mais expressivos desta nova forma de fazer frente aos problemas dos aglomerados urbanos foi a obra de Ildefons Cerdá. Após apresentar em 1859 um plano de extensão (eixample) de Barcelona, o autor associou estatísticas epidemiológicas dos surtos de cólera às condições de alojamento, analisando cada um dos locais onde se verificaram mortes. Destacou ainda a enorme diferença (nove vezes menos) de volume de ar respirável por pessoa e por hora, por quem morava nos últimos andares, pessoas mais pobres, e os residentes nos rés-do-chão bastante mais amplos, dos prédios de Barcelona. E demonstrou a variação da mortalidade conforme a classe social. Em 1867 começaram a ser publicadas as mais de mil páginas da sua “Teoria Geral da Urbanização”, definida como “o conjunto de princípios, doutrinas e regras que devem aplicar-se para que a edificação sirva para fomentar o desenvolvimento do homem social…”. Com Cerdá, o urbanista veste a bata branca do profissional de saúde, salienta F. Choay numa das suas obras sobre cidades.

Na origem do urbanismo na segunda metade do século XIX há uma analogia com a medicina. O urbanismo era entendido como “remédio” para os males que afectavam as grandes cidades

Mais tarde surge a proposta da Cidade-Jardim. O seu autor, Ebenezer Howard, propunha-se combater a densidade urbana e superar a controversa relação cidade-campo através da construção de novas cidades com o máximo de 30.000 habitantes. Depois, com a “Cidade Industrial” publicada em 1917, Tony Garnier preconiza o “zonamento” das diversas actividades nos grandes aglomerados. Em conjunto com a “cidade linear” de Arturo Soria, que projectara para Madrid a construção de moradias unifamiliares ao longo dum imenso corredor de transportes, seriam inspiração para Milyutin propor-se “ruralizar a vida urbana e urbanizar o campo” nos primeiros anos da União Soviética. Ainda na primeira metade do século XX, a “Carta de Atenas” redigida no Congresso Internacional de Arquitectura Moderna de 1933, invocando a saúde pública, a higiene, a salubridade e também a prevenção da tuberculose (peste branca), defende a necessidade de áreas verdes e um maior papel da luz, do ar e do sol nos espaços urbanos e nas habitações.

Com o neoliberalismo, o divórcio

Se o surgimento do urbanismo moderno, como intervenção no território de acordo com regras e princípios de salubridade, foi marcado pelas relações muito estreitas com a medicina, com o pós-modernismo a partir dos anos 60 do século XX acentuou-se a separação. O urbanismo, mais marcado pela ideologia neoliberal, pelo negócio e pelos interesses imobiliários, afastou-se de preocupações sociais e urbano-sanitárias. A medicina orientou-se para as tecnologias da saúde, para a produção de fármacos e para a intervenção curativa, afastando-se da prevenção da doença.

No pós-Covid19, DESURBANISMO não é o caminho

Ainda é cedo para tirar conclusões sobre a origem, propagação e resposta vacinal ao novo coronavírus. As aglomerações urbanas com grande densidade populacional parecem ser as mais afectadas pela pandemia: Milão é das cidades europeias com maior número de entradas e saídas diárias, mais de um milhão de pessoas, oriundas principalmente de Como, Busto Arsizio e Bergamo (Urban Europe, Eurostat, p.202). Nova Iorque, outra cidade severamente atingida pela pandemia, tem uma das densidades populacionais mais elevadas do mundo, e até as 15 cidades portuguesas com maiores números absolutos de infectados no final de Abril de 2020 têm todas densidade populacional muito acima da média nacional de 111,4 habitantes/km2: Lisboa 5.070, V. N. Gaia 1.781, Porto 5.198, Matosinhos 2.794, Braga 992, Gondomar 1.255, Maia 1.661, Valongo 1.285, Guimarães 634, Sintra 1.217, Ovar 366, Coimbra 419, Stª Maria da Feira 642, Loures 1.264, V.N. Famalicão 653.

Esta circunstância, tal como o papel das PM10 (micropartículas inaláveis) na propagação do vírus (na região Norte, onde ocorreu a maior transmissão do Covid 19, a queima de lenha em lareiras residenciais representa mais de 65% das emissões, sendo Stª Maria da Feira, V.N.Gaia, Oliveira de Azeméis, Guimarães, Braga e V.N.Famalicão os concelhos com peso mais significativo nestas emissões), ou a correlação da mortalidade com a situação social de cada pessoa infectada, deve ser objecto de análise rigorosa por especialistas das várias áreas do conhecimento. E também deve ser apurado se os que governam as cidades densas falharam ou não na protecção dos seus habitantes. Mas a rápida propagação do vírus nos territórios de grande densidade não pode ser motivo para o ressurgimento das velhas ideias anti-urbanistas que durante muitas décadas marcaram o pensamento sobre as aglomerações urbanas e apresentavam a cidade densa como o espaço da doença, da imoralidade, berço de epidemias mortíferas. Na Itália fascista, a lei nº 1092 “contra o urbanismo” aprovada em 6 de Julho de 1939, proibia a deslocação de trabalhadores para municípios com mais de 25.000 habitantes sem que possuíssem uma carta de trabalho. Na Inglaterra durante a 2ª guerra mundial, o movimento “Organic” de ideologia anti-urbana e xenófoba apresentava os residentes nas cidades como “instrumentos do comunismo”. Na Suíça o arquitecto Armim Meili proclamava que em todos os locais onde vivia muita gente junta, acontecem greves, desemprego, doenças, fome e pobreza, recomendando actuações agressivas do Estado contra a urbanização densa. Na França as publicações de Jean Gravier como “Paris e o deserto francês”, livro editado em 1947, desenvolviam a mesma linha de discurso anti-urbano do regime de Vichy e impulsionaram políticas de expansão habitacional em áreas periurbanas. Naquele país, na década de 70 do século passado, mais de 3 milhões de moradias unifamiliares tiveram generosos apoios públicos para a sua construção, levando à crescente utilização individual do automóvel, a um maior consumo de solo e energia, a grandes gastos em infraestruturas, à destruição de ecossistemas naturais e também à quebra da proximidade e relacionamento social …

Em tempo de distanciamento físico, um abraço necessário

As cidades são, têm que ser, o espaço da inter-relação entre pessoas, da diversidade social e da inovação. Daí, o movimento imparável de deslocação de populações para as cidades, fazendo com que desde 2007 mais de metade da população mundial viva em áreas urbanas. É certo que o ambiente físico e social (mais poluição do ar, mais desperdício energético e disseminação de produtos tóxicos) dos últimos anos, alargou os factores de risco para as populações, desenvolvendo doenças crónicas cardiovasculares, respiratórias, oncológicas, alergias e obesidade, como nos adverte a Organização Mundial de Saúde (OMS) há mais de 15 anos.

novo ambiente urbano: promoção de modos de transporte não-poluentes, alojamentos saudáveis, mais atividade física, mais espaços verdes

Como a nova pandemia já nos aponta, a saúde tem que ter um papel mais importante na vida das cidades, devendo ser a base da construção dum novo ambiente urbano: promoção de modos de transporte não-poluentes, alojamentos saudáveis, mais atividade física, mais espaços verdes, conforme nos diz a publicação “Urban green spaces and health–a review of evidence”, OMS, 2016. O planeamento do território deve participar na mitigação das alterações climáticas pela redução das emissões de gases de efeito de estufa (GEE), travando a expansão urbana para limitar deslocações através do automóvel e reforçando o transporte colectivo público, como salienta o livro “Repenser l’étalement urbain: vers des villes durables” da OCDE. E o princípio da suficiência energética tem que constar do desenho urbano e da construção dos edifícios…

A pandemia que hoje enfrentamos mostra que é necessário e urgente que o urbanismo, como intervenção no território, deixe de estar amarrado ao negócio imobiliário e se relacione, cada vez com maior intensidade, com a medicina. Num novo abraço, libertador. Para, como nos lembra Alex Ross, director do Centro da OMS para o Desenvolvimento Sanitário, organizar as cidades para o ser humano e para a saúde.

Artigo de José Castro e Ana Isabel Silva

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