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Mataram Mariana… a greve das operárias conserveiras de Setúbal em março de 1911

Um dos primeiros momentos das lutas sindicais no feminino em Portugal ocorreu em março de 1911, quando uma greve das conserveiras de Setúbal leva à morte de uma operária, Mariana Torres, em confronto com a recém-criada Guarda Republicana. Por Álvaro Arranja.
Operárias Conserveiras de Setúbal, Ilustração Portuguesa, 11.7.1910

Em 5 de Outubro de 1910, a proclamação da República só foi possível mercê da contribuição activa de uma grande parte do operariado. Vivia-se o momento alto dessa aliança entre a plebe urbana de Lisboa e a elite do Partido Republicano que tornou possível a revolução. Usando a definição de Fernando Rosasi, "o bloco social e político do 5 de Outubro", esteio da 1ª República, estava no seu auge.

Porém, esse momento rapidamente se desvanece. A República herda uma sociedade baseada numa desigualdade social profunda, com uma oligarquia económica pouco habituada a ver contestados os seus privilégios. Após o 5 de Outubro, os republicanos defrontam-se com a questão social, levantada sobretudo pelas inúmeras greves que eclodem. Os trabalhadores não estavam dispostos a esperar mais pelo reconhecimento dos seus direitos básicos. Queriam que a República avançasse com medidas sociais básicas para modificar as suas condições de vida.

Setúbal, cidade com uma importante concentração operária, baseada fundamentalmente na indústria de conservas de peixe, com uma mão-de-obra essencialmente feminina, foi um dos principais centros das reivindicações sociais que marcaram o período posterior ao 5 de Outubro.

O Sindicalistaii dá-nos testemunho do quotidiano das conserveiras de Setúbal, neste período. O jornal entrevista algumas operárias, que relatam as suas condições de trabalho. São obrigadas a levantar-se da "cama a qualquer hora da noite, isto é, quando ao industrial apetece", para trabalharem "dez e onze horas" e ganharem "apenas 180 réis que corresponde a 5 horas de trabalho". Têm de executar tarefas que não lhes competem, "pregar caixas e trabalhar com as ferramentas", ou "dar o peixe em volta das mesas, serviço que deve ser feito por rapazes, pois que estamos sempre expostas aos insultos de alguns camaradas menos delicados".

Referem a desigualdade de remuneração em relação aos colegas homens ("ganhamos menos e temos mais horas de trabalho do que os nossos camaradas trabalhadores").

Falam também das multas e castigos corporais, "para os nossos filhos e filhas, sem respeito algum pelo sexo e pela sua situação". Bem como da falta de higiene nas fábricas ("a água da salmoura corre pelo chão, encharcando-nos os pés e o ar é empestado, chegando, especialmente de Verão, a dar-nos desfalecimentos quasi de sufocar").

Às más condições de trabalho associam-se os abusos sexuais. ("As nossas filhas são muitas vezes chamadas ao escritório, demorando-se tempo imenso, ficando nós em ânsias por saber o que se passa; vemo-las vir chorosas, e, ai de nós, já sabemos – é a desonra, a desfloração e ninguém os pune. Rapariga bonita tem de ser amante do industrial, do gerente e de todos os que a querem prostituir. Se alguma resiste, vem a multa, a pancada e, por fim, o despedimento que é o princípio da fome").

E que pedem as operárias de Setúbal?

Um aumento de dez réis (na época um quilo de carne custava 320 réis, um litro de leite 80 réis, a água, 200 réis o metro cúbico). A recusa dos industriais abre um conflito sem fim à vista.

A 22 de Fevereiro já o Diário de Notíciasiii anuncia uma "Greve das Mulheres nas Fábricas de Conservas de Setúbal". A 23 de Fevereiro, o mesmo jornal refere que "esteve eminente um grave conflito com a força armada", apenas evitado por acção do Administrador do Concelho e do Presidente da Câmara.

A situação social em Setúbal agravou-se de tal forma que as conserveiras vão conseguir a solidariedade das outras classes operárias. O Germinaliv, o jornal mais próximo dos sindicalistas setubalenses, anuncia no dia 25 que "estão em greve todas ou quase todas as classes operárias de Setúbal". A tal situação foram "levadas pela maneira desprezadora porque têm sido tratadas as suas companheiras em luta”.

A paralisação quase total é confirmada pelo jornal A Capitalv. Segundo o periódico de Lisboa, "por efeito da propaganda do mulherio, aderiram quase todas as classes, estando paralisados todos os serviços".

A 11 de Março, o Germinal resume a situação. O jornal começa por nos falar das operárias conserveiras, "essas desgraçadas que logo ao alvorecer da vida são lançadas para a fábrica, afim de aumentar o salário da família, sujeitando-se desde logo às brutalidades revoltantes de industriais e encarregados que nelas cevam grosseiramente os seus instintos perversos". Elas "são maltratadas, espancadas, mal pagas, sem que a sua existência de proletárias arranque um grito de piedade ou de horror à democracia triunfante". Para o jornal, "essa situação origina sempre revoltas, que se manifestam em greves". Setúbal vivia precisamente essa situação. "As mulheres operárias sentiam-se escravas" e "resolveram solicitar o insignificante aumento de dez réis". Do outro lado, "os industriais gananciosos" não aceitaram "a reivindicação das operárias e logo procuraram colocar-se de acordo com as autoridades que obedeceram passivamente". Daí "surgiu então o grande conflito" e "a greve tornou-se geral".

A morte de Mariana Torres

A situação de impasse e a relativa acalmia, a que se tinha chegado, foram bruscamente alterada pelos acontecimentos do dia 13 de Março de 1911.

Usando as palavras do relatório feito a pedido do Ministro do Interior"vi, a agitação dos grevistas começou a notar-se no momento em que alguns industriais resolveram mandar transportar peixe fabricado, em carroças, para o caminho de ferro".

Prevendo a oposição dos operários em greve, os industriais requisitaram protecção armada. Como refere o citado relatório, os industriais porque viram "levantar-se grande oposição por parte dos operários, requereram ao Administrador do Concelho que mandasse escoltar as carroças na ida e volta, o que lhes foi concedido".

Para Setúbal foi enviado um destacamento da recém-formada Guarda Republicana que havia substituído, em Lisboa e no Porto, a Guarda Municipal.

Terão sido os industriais das fábricas Mariano Lopes e Chancerelle a promover o referido transporte, sentido pelos grevistas como uma forma de quebrar o seu movimento.

Segundo o Diário de Notícias de 14 de Março, "os grevistas sabendo que na fábrica de Mariano Lopes, se encontram trabalhando, não só este senhor como os seus sócios e pessoas de família, fazendo a embalagem do peixe em caixotes que depois enviam para a estação de caminho de ferro, resolveram impedir a circulação das referidas carroças, porque isso os prejudica no seu movimento". Ainda segundo o mesmo jornal, os grevistas concentraram-se na Avenida Luísa Todi, na zona próxima da Associação dos Soldadores. O industrial, conhecedor da localização e intenções dos grevistas, pediu protecção policial.

Para escoltar as carroças, foi mandado para o local um destacamento da força da Guarda Republicana que se tinha deslocado de Lisboa para Setúbal.

Na versão do Diário de Notícias, "pelas dez e meia da manhã, quando um daqueles veículos passava pela Avenida Todi, em frente do local onde se encontravam os grevistas, estes apedrejaram a carroça e a força que a guardava". Mais tarde, "cerca da três e meia da tarde, passava novamente guardada por uma força da Guarda Republicana", outra carroça.

O veículo "regressava já da estação, onde havia ido levar peixe da fábrica Mariano Lopes, com carregamento de folha de Flandres". Os grevistas "homens e mulheres, então cercaram a carroça e de alguns começaram partindo pedras sobre os soldados, ferindo um deles". Ainda segundo o mesmo jornal, "do grupo de grevistas, partiram alguns tiros". Então "o cabo comandante da força mandou fazer fogo sobre os grevistas". Mariana Torres e António Mendes morreriam em consequência destes disparos.

Nas páginas do jornal O Mundovii, surge uma outra versão dos acontecimentos. O jornal ouve uma delegação de operários de Setúbal que se deslocou a Lisboa, para contactar o movimento operário da capital. Pelas "nove horas da manhã a firma Chancerelle fez seguir para a estação algumas caixas de peixe, com o que os operários não se preocuparam, porquanto era peixe já fabricado". Todavia, pelas três horas da tarde, quando regressava para a fábrica um carro carregado com folha, "estavam do lado norte da Avenida Todi, uns três mil operários". A carroça era cercada por seis soldados da Guarda Republicana, comandados por um sargento. "Os soldados afastavam os operários arrogantemente e um deles brada para uma mulher:

– Ande lá para trás!

Replicou a mulher que ali não faz mal algum e a resposta do soldado foi dar-lhe uma coronhada no peito. Um popular atirou então uma pedrada que feriu o sargento. Foi o suficiente para que a força formasse em quadrado e descarregasse sobre os operários".

Desta descarga resultariam as mortes de Mariana Torres e António Mendes e onze feridos.

Monumento a Mariana Torres em Setúbal, inaugurado em 2016.

A greve geral em Lisboa

Os acontecimentos de Setúbal (os “fuzilamentos” ou “assassinatos” de Setúbal, como os designaram as organizações operárias de vários pontos do país), quando são conhecidos em Lisboa e no resto do país, provocam vivas reacções entre as organizações operárias.

Este espontâneo movimento de indignação face às notícias de Setúbal, veio a provocar uma resposta organizada do operariado. Seguindo O Sindicalista de 26 de Março, vemos que a reunião magna das Associações Operárias de Lisboa resolveu delegar num comité eleito "a realização do protesto contra os fuzilamentos de Setúbal e ao mesmo tempo manifestar a sua solidariedade aos grevistas". Com esse objectivo, "as Associações de Classe enviaram delegados a uma reunião que se efectuou no dia 16, resolvendo que se levasse à prática a paralisação geral do trabalho por 24 horas".

O operariado português decidia pela primeira vez uma paralisação geral do trabalho. O Comité das Associações de Classe de Lisboa e arredores declara a paralisação de trabalho por 24 horas, segunda-feira 20. Não qualificaram esse movimento de greve geral, mas de paralisação. Será a grande imprensa a usar a expressão greve geral para se referir ao acontecimento. A Ilustração Portuguesaviii dá como título à sua reportagem sobre o acontecimento "A Primeira Tentativa de uma Greve Geral Frustrada".

O dia de greve começou logo, após a meia-noite, com incidentes em Alcântara, a propósito da saída dos eléctricos da Companhia Carris de Ferro.

Seguindo o Boletim do Comité de Greve, reproduzido em O Sindicalista de 26 de Março, por volta das 8h, o Comité envia uma comissão ao Poço do Bispo. Na volta, "foram detidos por uma força de cavalaria da Guarda Republicana que lhes rodeou o automóvel, intimando-os a acompanhá-los ao Governo Civil". Então, "as mulheres de diversas fábricas de Xabregas e Poço do Bispo, que se encontravam reunidas desde o Beato até às portas de Xabregas, tentaram impedir que a cavalaria atacasse o automóvel, rodeando-o e dando vivas aos operários", tendo a Guarda Republicana carregado sobre as operárias, conseguindo dispersá-las”.

Entretanto, em Alcântara, zona de grande concentração fabril e tradicional bastião operário, a partir das nove da manhã era grande o ajuntamento de grevistas no Largo do Calvário, vindos das fábricas da zona.

Em Xabregas e no Beato, outra das zonas fabris de Lisboa, era grande a adesão à paralisação. Segundo o jornal O Mundo, de 21 de Março, "para os lados do Beato, Poço do Bispo, Xabregas, trabalham uns vinte mil operários; pois trabalhavam apenas os das fábricas da Companhia de Moagens e João Brito & Cª, que não chegam a ocupar dois mil operários".

Pelas 10h15, o Comité de greve recebe a informação de que em Almada "todas as classes trabalhadoras estão paralisadas". Aliás, Almada tinha vivido uma jornada de protesto contra as mortes de Setúbal, logo no dia a seguir ao acontecimento.

Bem cedo o Terreiro do Paço se tornou um dos principais centros dos acontecimentos. Segundo o Diário de Notícias, de 21 de Março, "depois de terem aderido ao movimento, de vários pontos da cidade, nomeadamente Alcântara, Beato, Xabregas, Poço do Bispo, todos se foram encaminhando para o Terreiro do Paço". O Mundo, de 21 de Março, diz-nos que “cerca das 11 horas da manhã, começou a aglomerar-se no Terreiro do Paço grande multidão de operários, ouvindo-se vivas à greve e à República social". O Diário de Notícias dá-nos conta da chegada ao Terreiro do Paço de "forças de artilharia montada, assim como um esquadrão de cavalaria da Guarda Republicana". Essas forças espalharam-se pelas embocaduras das ruas e em frente de alguns ministérios. Os eléctricos passaram a ser escoltados pela cavalaria. Deram-se vários "conflitos a cavalo desembainhando as espadas". Temendo consequências destes incidentes, os comerciantes encerraram as lojas da baixa. O Mundo dá conta de seis operários presos no Terreiro do Paço.

Em Setúbal, o impasse no conflito entre trabalhadores e industriais vai ser longo.

A 2 de Abril, o Diário de Notícias dá conta do lock-out promovido pelos industriais e da greve operária. O horário de trabalho torna-se o principal ponto de discórdia. Segundo aquele jornal, "continua na mesma situação a greve dos moços das fábricas e das mulheres, mantendo-se os industriais na resolução já tomada de reabrirem as suas fábricas, somente nas condições do regulamento que há pouco apresentaram". A isto respondem os grevistas, "resolvendo não voltarem ao trabalho senão nas condições antigas, isto é, com as 8 horas de trabalho".

Um golpe de força das autoridades vai fazer claudicar o movimento grevista. Segundo O Trabalhadorix, "os membros do comité de greve eram presos". A 10 de Abril, "as fábricas estavam todas guardadas por forças de infantaria, enquanto numerosas patrulhas de cavalaria percorriam as ruas e praças". A greve durava "há cinquenta dias entrando a fome em todos os lares", razão de peso para a diminuição da capacidade de luta das conserveiras.

O Governador Civil, Eusébio Leão, irá intervir pessoalmente na questão, promovendo uma reunião entre as partes em conflito. Será ele a emitir uma sentença arbitral, que assegurava "as 8 horas de trabalho no Inverno e 9 no Verão".

Os "fuzilamentos de Setúbal" ou "assassinatos de Setúbal", como então ficaram conhecidos por todo o país, as balas disparadas sobre as conserveiras na Avenida Todi que lutavam pela sua dignidade enquanto operárias e mulheres, feriram de morte o desejo de uma República social e emancipadora.

(excertos do livro de Álvaro Arranja, Mataram Mariana…dos Fuzilamentos de Setúbal à Ruptura Operariado-República, publicado em 2011)


i ROSAS, Fernando, "A Crise do Liberalismo Oligárquico em Portugal" in História da Primeira República Portuguesa, Lisboa, Tinta da China, 2009.

ii O Sindicalista, 26.02.1911

iii Diário de Notícias, 22.02.1911

iv Germinal, 25.02.1911

v A Capital, 25.02.1911

vi Relatório elaborado por José de Castro, a pedido do Ministro do Interior, António José de Almeida, publicado no jornal O Mundo de 23 de Março de 1911.

vii O Mundo, 14.03.1911

viii Ilustração Portuguesa, 03.04.1911

ix O Trabalhador, 02.07.1911. Número único editado pela Associação de Classe dos Trabalhadores das Fábricas.

Sobre o/a autor(a)

Professor e historiador.
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