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Marrocos: “Despotismo do governo pode vir a resultar numa guerra civil”

Entrevista com Abdallah El Harif, ex-secretário-geral e responsável pelas relações internacionais da Via Democrática, o partido de esquerda de Marrocos que apelou ao boicote nas últimas eleições.
Abdallah El Harif numa audição realizada no Parlamento Europeu em 2011.

O governo de Marrocos especializou-se no silenciamento dos protestos populares. Fê-lo em 2011 com o Movimento 20 de fevereiro e no ano passado no Rif. Em que situação se encontra o movimento de resistência?

A mobilização do Rif estendeu-se à província de Jerada, uma região carbonífera que faz fronteira com a Argélia que hoje está morta, completamente esquecida por parte dos poderes públicos. O problema é que estas vagas de protesto só têm impacto quando chegam às grandes cidades, como Casablanca e Rabat. E quando lá chegarão? Não sabemos. Mesmo assim, estamos a preparar-nos para a chegada desse momento, porque não é improvável que suceda, dada a atual situação. O problema que temos é que, efetivamente, em Marrocos existem travões sociais. Por exemplo, as classes médias e alguns partidos da esquerda propagam o medo às revoltas populares e pensam que a estabilidade atual do país, por muito falsa que seja, será sempre melhor que uma transformação política profunda. Eu, no entanto, penso que uma estabilidade sob o despotismo atual nos conduz, inevitavelmente, a situações muito mais graves. Talvez uma guerra civil.

Acreditam que esse confronto será inevitável?

Lutar pela estabilidade quando a situação do povo é deplorável é inadmissível. Na Via Democrática (VD) lutamos para incorporar mais forças ao movimento pacífico de resistência que se criou em Marrocos para alargá-lo a todo o país. Trabalhamos para criar uma frente de oposição o mais ampla possível, já que a mudança só poderá chegar se milhões de pessoas saírem às ruas de forma não violenta. O papel dos partidos políticos e dos movimentos de esquerda é tentar a unificação do protesto contra o Makhzen [expressão usada para designar o sistema arcaico no Estado e naa monarquia marroquina]. Essa é a nossa estratégia. Quando começaram os protestos no Rif, o lema era apoiar o Hirak [o movimento] para alargá-lo ao resto de Marrocos sem utilizar a violência. A violência não deve vir do nosso lado, mas sim da outra parte, do regime, para que apenas ele se coloque numa situação de ilegalidade.

Então a repressão é uma faca de dois gumes para o regime?

Exatamente. Na minha opinião, o atual governo agiu de forma irresponsável no Rif e está a repeti-la na região de Jerada. A repressão só contribui para que a raiva cresça. Vimos os intermediários oficiais irem a estas duas regiões e prometerem programas de desenvolvimento que não saíram do papel, enquanto suprimiam qualquer iniciativa de diálogo com a VD e com Al Adl wal Ihsane (Justiça e Caridade), as únicas forças populares capacitadas para mediar estes dois conflitos. Isso é muito grave. Essa política nem sequer a praticava Hassan II, que reprimia ferozmente mas permitia alguns espaços de expressão às forças da oposição. Hoje, o Makhzen não quer diálogo nem tolera a resistência. Isso leva a que a política oficial viva num mundo e o povo noutro mundo diferente, separados por um abismo enorme e irreconciliável. A continuar assim, sem rever as suas políticas, está a caminhar para o suicídio.

As eleições de 2016 foram boicotadas pela Via Democrática. Qual foi o custo político?

Não podemos dizer que o boicote que propusemos tenha tido um grande impacto sobre o regime. Afirmar o contrário seria mentir, mas apesar de tudo votou muito pouca gente. Menos de 20% do eleitorado. Nós decidimos manter ativo esse boicote até hoje e estamos as explicar essas razões nos bairros populares de todas as cidades de Marrocos. A nossa resistência não é uma posição de princípios, mas puramente tática. Pensamos que não temos nada a ganhar dentro deste regime. As eleições em Marrocos carecem de garantias e impedem que o Parlamento seja a caixa de ressonância do problemas reais do povo. A isto devemos acrescentar que toda a imprensa está nas mãos do Makhzen, incluindo a que se autodenomina independente, que depende dos subsídios do regime e dos recursos publicitários que obtêm da holding real e dos grandes grupos ligados ao poder. Para nós, é mais importante participar na vida política do país do que umas eleições. E esta incidência nas classes populares está a ser promovida graças ao nosso trabalho com a militância de organizações dos direitos humanos, dos sindicatos, com as mulheres e as associações amazigh. A VD é cada vez mais visível em Marrocos, sobretudo nas grandes cidades. Falta-nos reforçar a nossa presença nas regiões rurais mais recônditas do país.

O ministério do Interior pondera a hipótese de vos ilegalizar, sob acusações de rebelião.

É verdade. Há duas semanas, o ministro do Interior, Abdelouafi Laftit, interveio no Parlamento para dizer que a VD, a Associação Marroquina dos Direitos HUmanos e o partido Justiça e Caridade empurram a população para a rebelião. Não é a primeira vez que o faz. Há uns meses convocou-nos para uma reunião para ameaçar que nos ia “passar a certidão de óbito”. Recriminou-nos por estarmos a favor da autodeterminação do Sahara e de incitarmos as pessoas a exigirem os seus direitos. Para compreendermos melhor, é preciso contextualizar a política marroquina. No meu país, o Mkhzen entende que o dever dos partidos é o de controlar a população, não o de agitá-la. Também nos acusam de mantermos relações com uma organização alegal como o Justiça e Caridade e de sermos nihilistas. Li na imprensa que a França não está a favor da nossa ilegalização, o que tem influência na decisão que o regime venha a tomar, mas isso não os travou na perseguição que nos movem. Até esta data já nos tiraram espaços públicos para a organização de várias iniciativas e até chegaram a prender vários militantes nossos.

Como é que um partido laico de esquerda com a Via Democrática se foi unir com uma força islamista como Justiça e Caridade?

Pensamos que a mudança em Marrocos não se pode realizar apenas a partir da esquerda. Alguns partidos islamistas, não todos, como Justiça e Caridade ou o partido da Oumma (Al Haraka Min Ajli Al Oumma) são atores políticos importantes e estão legitimados para participar nessa mudança que propomos. Trabalhamos para a constituição de uma frente ampla, dialogando com todas as forças opositoras ao regime. Também com os liberais. E queremos que o debate de ideias, para além disso, seja público. Devemos fomentar o diálogo sem marginalizar os islamistas e muito menos demonizá-los. É verdade que há pessoas fanáticas e retrógradas no seio do movimento islamista, mas também há gente que tenta compreender a realidade. Nós já perguntámos ao Justiça e Caridade se estaria disposto a impor a sharia no caso de uma mudança de regime e a sua resposta foi que está a favor da liberdade de consciência. Para nós é muito importante que admita esse princípio de liberdade. A laicidade que propomos para o Estado não se pode aplicar sem ter em conta estas pessoas. A sua transformação não se consegue de um dia para o outro. O regime está aterrorizado por essa conjunção e o imperialismo tem medo. Mas ao mesmo tempo, esse pavor também dificulta mais o caminho do diálogo em Marrocos. É preciso tempo.    


Entrevista de Gorka Castillo, publicada no portal Viento Sur. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.

 

 

 

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