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Marielle Vive! contra a lógica do condomínio

Numa viagem ao Acampamento Marielle Vive, Veridiana Zurita descreve a resistência à estigmatização, à violência e à pobreza de cerca de mil famílias da zona de Campinas no Estado de São Paulo.
Acampamento Marielle Vive.
Acampamento Marielle Vive. Foto: Mídia Ninja.

Aos poucos, somem as ilhas muradas. Então, entra-se num mundo em que mil famílias de sem-terras constroem um outro “nós”. Romperam a cerca e o estigma. Gestaram uma lógica oposta à do condomínio. Falta água. Pulsa a vida

 

A Estrada do Jequitibá que leva ao Acampamento Marielle Vive!, revela em cada uma de suas tortuosas curvas o avanço da especulação imobiliária. Na sequência de condomínios do trajeto que liga Valinhos à porteira de entrada do acampamento, variações de uma mesma arquitetura replicam determinado “pacote de vida” que anúncios imobiliários vendem todo dia. Diz um anúncio online: “Clique aqui e tenha realmente uma vida alto padrão.” Do lado de fora, o que se vê são muros de concreto, portarias de vidro opaco, controles de acesso e segurança, entradas sociais e de serviço e portais com nomes que variam entre Bella Roma e Viva Real.

Aos poucos, essas ilhas muradas vão desaparecendo, até chegarmos, a apenas 100 quilômetros do centro de São Paulo, ao Acampamento Marielle Vive! Na entrada bambus cuidadosamente dispostos e conectados diagonalmente formam uma porteira e demonstram que sua bioconstrução foi feita coletivamente. É evidente para quem chega que há um protocolo de entrada e saída no acampamento. Antes de a porteira ser aberta, um morador pergunta qual o motivo da visita. Logo o contato do visitante aparece. Abre-se a porteira e documentos de identificação são solicitados. Há um controle de entrada; porém, diferentemente dos condomínios que vigiam supostas ameaças de furto, as medidas de segurança do acampamento monitoram ameaças de despejo.

 

Nosso contato dá as boas vindas e nos leva a uma das coordenadoras do Marielle Vive! Ele bate na porta de um barraco e espera, com calma, que alguém apareça. Patricia abre a porta e falamos sobre a possibilidade de uma conversa. Enquanto organizamos cadeiras para nos sentar, dois jovens com uma câmara de vídeo e um microfone se aproximam e perguntam se podem filmar a conversa. São estudantes de cinema, sendo que um deles é filho de moradores de outro acampamento do MST. Estão ali na empreitada de fazer um documentário sobre o Marielle Vive!

Sentamos do lado de fora. Patricia prefere o sol.

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Em 14 de abril de 2018, um mês após o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, mais de 700 famílias da região de Campinas (São Paulo) romperam as cercas da Fazenda Eldorado Empreendimentos Imobiliários Ltda. Fazendo frente à especulação imobiliária e à improdutividade da terra, essas famílias fundaram o Acampamento Marielle Vive!

Desde o primeiro dia da ocupação o prefeito de Valinhos, Orestes Previtale (PSB), deixou claras suas intenções diante da ocupação: expulsar as famílias do local. Em setembro de 2019, o acampamento completa um ano e cinco meses de permanência no território e mais de mil famílias registradas. Durante todo esse período, as medidas tomadas pelo prefeito e uma parte da comunidade valinhense tiveram como objetivo intimidar os moradores e sabotar a ocupação, através de uma série cumulativa de violações.

A prefeitura negou, por mais de um ano, o abastecimento de água na comunidade. Marielle Vive! abriga famílias de mulheres, homens, idosos e crianças que sofreram diariamente com a falta de água para beber, lavar, comer e produzir seus alimentos. Além da falta de abastecimento de água, o acesso a outros serviços públicos – como saúde e segurança pública – continuam restringidos. Algumas mulheres grávidas relataram que os postos de saúde da região lhes negaram o atendimento pré-natal por orientação da prefeitura.

Há toda uma intimidação por parte da polícia militar e guarda municipal: agressões físicas e verbais, monitoramento da área com drones e helicópteros, e até blitz na estrada de acesso ao acampamento, frequentemente conduzidas de forma violenta – muitas vezes com empurrões e descarte das doações recebidas pelos moradores.

A mídia local esforça-se em disseminar uma narrativa negativa do Acampamento e do MST. Narrativa tóxica, que cria um senso comum segundo o qual o Marielle Vive! é ameaça aos valinhenses, alienados ainda mais da importância histórica de luta pela reforma agrária. Essa narrativa também traz consequências para a comunidade do Marielle Vive! Estigmatizada, ela corre o risco de ceder a tais intimidações e abandonar a luta. No entanto, o MST tem seus alicerces fortalecidos por uma prática de vida em comum. Mesmo com a pressão da mídia local, financiada por interesses empresariais e amparada em frágeis processos jurídicos, o sentido de luta do movimento cresce. A ação do prefeito de Valinhos aprofunda a cisão social entre aqueles que foram domesticados pela promessa da propriedade privada e os que lutam pelo direito a terra Comum.

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De todas as violações dos direitos humanos sofridas por parte dos moradores, a mais violenta e midiatizada foi a morte de Luis Ferreira da Costa, atropelado enquanto participava de um ato simbólico por água, na frente do acampamento. Não foi um acidente. O motorista da caminhonete ultrapassou um ônibus parado pelos manifestantes, parou, engatou a marcha, lançou o carro em direção aos que reivindicavam o bem mais essencial à vida e fugiu. Seu Luis morreu e o motorista da caminhonete foi preso depois de confessar o crime. A prisão resolve parte do problema. Ela pune e garante às autoridades locais certa credibilidade diante da opinião pública. No entanto, está longe de tocar no cerne da questão. Prender quem matou não interrompe a cultura de ódio que assola o país através de crescentes expressões de uma política de morte. Como diz Patricia, “Quem matou Seu Luis foi Bolsonaro, pelas mãos desse homem”.

E quem é esse homem? “Leo Luiz Ribeiro é vendedor. O veículo utilizado no crime é uma caminhonete Mitsubishi Hylux L-200, com placas de Valinhos. O carro foi apreendido. No painel, havia uma bandeira do Brasil.” Assim o homem que matou Sr. Luis foi definido pela maioria das matérias publicadas sobre o caso. Eu diria que ele é um homem branco, de classe média, dono de um carro que representa poder e virilidade, morador de uma cidade orientada pela estigmatização do MST, muito provavelmente bolsonarista (quem mais carrega, nestes tempos, uma bandeira do Brasil no painel do carro?), atordoado por incertezas econômicas e de futuro, e inflamado por um presidente que disse, “A partir de primeiro de janeiro sem-teto, sem-terra serão tratados à base da bala”. Leo Luiz Ribeiro não é uma vítima nem muito menos deve ser liberado de sua pena. Porém, o punitivismo isolado e individualizado, não dá conta de algo que Hanna Harendt pontuou de forma impactante (e sempre atual) como a “banalidade do mal”. O bolsonarismo é de fato a expressão contemporânea da banalização de todo violência sobre os corpos e sujeitos que o presidente considera matáveis.

O que matou Seu Luiz foi uma conjuntura que começa quando a disputa política-jurídica-ecómomica-mediática criminaliza o direito constitucional da reforma agrária; quando um prefeito sabota o movimento popular que reivindica esse direito; quando a mídia sedimenta no inconsciente coletivo que o MST é uma ameaça; e, por fim, quando a expressão de uma política de morte é celebrada pelo próprio presidente da república.

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Esse aparato político-jurídico-ecónomico-mediático é o vetor de um conjunto de violências que tem como objetivo aniquilar tudo aquilo que confronte a hegemonia do capital. A aliança entre justiça, mercado, governo e grande mídia pode ser sintetizada em todo processo de reintegração de posse. É através de um pedido de reintegração de posse que toda uma rede de articulações políticas, empresariais, jurídicas e midiáticas fomentou as tensões cotidianas entre parte da comunidade valinhense e os moradores do acampamento Marielle Vive!

Um mês depois da morte de sr. Luis, a juíza de primeira instância Bianca Vasconcelos, emitiu a segunda ordem de reintegração de posse da terra contra os acampandos. Mesmo depois de o Tribunal de Justiça de São Paulo já ter suspendido uma primeira ordem, por falta de provas sobre a legitimidade da posse dos supostos proprietários, Bianca Vasconcelos reincidiu no arbítrio, em caráter de urgência, e estabeleceu 15 dias úteis para saída voluntária de mais de mil famílias.

A condução jurídica do processo de reintegração de posse assemelha-se ao “coronelismo das novelas” e expõe os excessos, vícios e inconsistências das decisões da juíza. Bianca Vasconcelos é moradora de um condomínio construído pela Andrade – empresa imobiliária de uma família com origem escravocrata e uma das acionistas da Fazenda Eldorado, ocupada pelos sem-terra. Sem provas concretas, a juíza baseou sua decisão em um contrato de arrendamento para criação de gado, firmado em 2009, já expirado há cerca de 7 anos. Mais tarde, a juíza foi além: propôs que crianças do acampamento fossem capturadas e levadas para um abrigo e, ainda, usou imagens editadas de drones como prova de que a ocupação seria fantasma.

Enquanto escrevia este texto, recebi uma mensagem da coordenação do acampamento dizendo que o Ministério Público Estadual havia suspendido tal ação de reintegração de posse. Viva! Um dia de celebração! No entanto, isto não significa a anulação do processo. Foi suspenso, pela segunda vez, mas segue em andamento.

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O que se quer colocar à força no lugar do Acampamento Marielle Vive! é um condomínio de luxo.. O que está em disputa não é apenas um território, mas dois projetos de mundo cujos modos de vida são opostos.

De um lado o mundo murado, o bem comum privatizado, a segregação de espaços de sociabilização, a comunidade fechada entre iguais, trancada. Indivíduos assegurados no seu próprio isolamento, ilhados em suas casas, em suas salas de ginástica, cada um em sua esteira, correndo sem sair do lugar, plugados em fones de ouvido – qualquer semelhança com ratos de laboratório é mais do que mera coincidência. O condomínio é a maquete em tamanho real da aspiração máxima do neoliberalismo; maquete que cria sujeitos assegurados em suas propriedades, encenando uma comunidade entre iguais, seduzidos pela promessa da liberdade privada, mas presos pelo medo do outro. Curiosamente, nesse parquinho planejado, idealizado, uma noção de “nós” é criada.

O “nós” dentro, o “eles” fora. O psicanalista Christian Dunker escreve que “a vida entre muros”, “a condominização da vida” cria uma “mentalidade paranóica (…) o outro vira um bicho potencialmente perigoso e isso gera um sofrimento característico”. A “condominização da vida” – que extrapola o condomínio e se expande nas relações diárias – adoece a todos, transforma a diferença em ameaça e os iguais em meros competidores. O condomínio, enquanto modelo urbanístico, organiza o espaço urbano como réplica de uma lógica medieval. O muro impõe de forma simbólica, material e afetiva os limites entre pertencentes e forasteiros. E esse limite, reafirmado por variações históricas, desde homens com lanças e armaduras, até portarias de vidro blindadas e munidas de interfone, é sedimentado no tecido social.

No fundo o que se quer, com a condominização da vida aludida por Dunker, é que não nos vejamos, não nos olhemos nos olhos, não tenhamos tempo e muito menos espaço público em comum para perceber que a lógica do condomínio, enquanto forma de sociabilização que se pretende hegemónica, é tóxica. E são exatamente todos os mecanismos de segurança e controle, vendidos pela arquitetura do condomínio e replicados nas relações sociais dentro e fora dele, que realmente impõem o medo como afeto fundamental entre as pessoas de uma ficção que se tornou a norma. Essa mesma ficção enfraquece, diariamente, o desejo de contato, de solidariedade e de empatia.

Do outro lado, temos um acampamento, uma comunidade organizada pela demanda de direitos, pessoas mobilizadas por um projeto de vida e mundo compartilhado. O Marielle Vive! ocupa e coletiviza um território exaurido e abandonado pela lógica da propriedade privada. O lugar ocupado não é simplesmente um pedaço de terra, mas território de imaginação e prática de outros modos de vida. O que se pretende no acampamento é o exercício diário de uma democracia participativa. Sua organização em diversos setores – educação, cozinha, saúde, segurança, cultura, infra-estrutura, produção de alimentos, entre outros – fomenta o diálogo diário entre todos os moradores. É na prática de uma política de participação coletiva que se constrói outra noção de “nós”.

Um “nós” que organiza a cozinha coletiva garantindo almoço para mais de 300 pessoas por dia; que oferece desde reforço escolar até auxílio no cuidado e saúde dos moradores; que se alegra com um grupo de batucada; que exercita o corpo e o humor num jogo de futebol; que semeia hortas coletivas; que investe tempo e energia na aprendizagem e produção agroecológica; que une mulheres através do cultivo de ervas medicinais; que organiza mutirões para a plantação de mais de 300 mudas de plantas nativas e frutíferas; que agrega pessoas durante “banquetaços” com produtos próprios e de outros acampamentos do MST; e ainda toda uma potência na criação daquilo que Patricia chama de “uma outra relação de cultura”.

Apesar de toda a precariedade, falta de água e esgoto, falta de eletricidade e de segurança, as pessoas querem ficar no acampamento. Há um laço de comprometimento afetivo e de luta que não se desfaz. Melhor ainda: como diz Patricia, um laço que “semeia a humanidade (…) que resgata nesse processo de participação a humanidade das pessoas”. Nessa prática de uma vida em comum, o MST cultiva também outro modo de cuidado. Não é só a terra que é ocupada, cultivada e tem a floresta recomposta, mas a própria subjetividade das pessoas como parte de um processo de restauração do desejo coletivo. Existem pessoas que chegam no acampamento com depressão, medicadas, e que depois de um tempo conseguem reverter esse quadro através da convivência. A prática de vida em comum, motivada pelo direito a terra, pela produção e distribuição de alimentos e por outras formas de se estar junto, começa na mudança do paradigma burguês da propriedade privada e se expande na esfera das relações inter-subjetivas.

É este desejo coletivo que pode resistir à alienação histórica entre meios de produção e consumo imposta pelo capitalismo. Ele se fortalece na prática do MST porque materializa um modo de vida capaz de superar a hegemonia econômica e existencial do sistema. Como uma utopia que se realiza, o movimento faz tremer padrões de vida emergentes, seus sujeitos, subjetividades, temores e transtornos. E é exatamente por isso, por fazer tremer um sistema que se quer insuperável e inevitável, mesmo que em profunda crise, que o MST é perseguido e criminalizado.

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Num momento alarmante de emergência climática, onde o paradigma moderno de cisão entre o humano e a natureza adoece corpos e florestas, onde declinam os projetos desenvolvimentistas, em um país onde o agronegócio expropria e exaure a terra e com isso extingue biomas inteiros através de um projeto de mundo sem futuro, onde queimadas que destroem a Amazónia são organizadas pelo whatsapp, com uma ministra da agricultura – ou “musa do veneno” – que libera o maior numero de agrotóxicos já registados, com uma população alienada pela ideia de que é o Agropop que põe comida na mesa, quando na verdade é majoritariamente a agricultura familiar que o faz, em síntese, em um momento em que o retrocesso se mascara de progresso, aliar-se ao MST como prática de um outro mundo e suas formas de existir é fundamental.

Reverter a narrativa estigmatizante difundida pela grande mídia e por um senso comum que criminaliza os que lutam é tarefa que cabe a qualquer pessoa, movimento social, partido político e forma de resistência. Luta que não se restringe a uma noção de “eles” que estão no movimento mas faz nascer uma possibilidade de “nós”. Nós que habitamos a terra, o país e no limite o mundo. Visitar o Acampamento Marielle Vive!, entrar em contato com sua realidade material e histórica é o começo de uma aliança capaz de reverter uma narrativa tóxica e fortalecer o movimento através do desejo por uma luta coletiva.

 

 

Veridiana Zurita é uma artista e investigadora que vive na zona rural no interior de São Paulo. Ativista feminista, desenvolve o seu trabalho “através de projetos multidisciplinares que possam suspender, torcer, desfazer e re-imaginar papeis sociais”.

Texto publicado originalmente no site OutrasPalavras em 18 de setembro de 2019.

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