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Manuel Vilas: o longo lamento da auto-ficção
As primeiras páginas de Em tudo havia beleza, que tem sido aclamado pela crítica, são escorreitas, trazem novidade, um estilo, um modo de estar. Contudo, a partir daí, tudo se repete até à exaustão, sobrando o cansaço da repetição, a fadiga da dor alheia.
Manuel Vilas escreveu este livro sobre a sua vida e sobre a sua dor: as expectativas frustradas, os falhanços, a morte dos pais, a morte dos pais, a morte dos pais. A dor humana pode parecer tocante, mas quando já não traz nada – nem exercício estético nem uma dimensão sublime – só serve para moer. E Vilas mastigou tanto que moeu.
Por isso, quem vai pelo título é enganado. Esta obra não procura a luz; pelo contrário, chafurda no escuro, explora-o de forma sentimental, transformando a dor num tédio.
A experiência pessoal pode e ser deve usada para aumentar a dimensão da condição humana, para que seja possível entendê-la, para que os leitores se confrontem com ela, tenham mais mundo. Quando o livro não extrapola essa experiência, não se atinge o mais elevado nem se cogita essa condição. Pelo contrário, mergulha-se num só homem, atinge-se a condição dele. Claro, se é dele – indivíduo – passará a ser nossa – humano –, mas o que a literatura procura é o universal – não no sentido de atingir o que é comum a todos, mas no sentido de se procurar o espelho, a empatia, o estalo. Contudo, neste longo monólogo de Vilas, parece não haver mais do que um chorrilho de mágoas e tristezas, numa prosa que é a sua dor ruminada, numa transformação da literatura em depósito de nostalgias.
É sempre um perigo que um escritor se meta a escrever sobre si e nada mais. Perde a capacidade de extrapolar-se, de outrar-se, de se ver de fora, encarar o que é tedioso, ridículo. Fazer da literatura palco de vaidades, do romance palco do eu, tem perigos técnicos, teóricos e estéticos.
Em Em tudo havia beleza, para além de episódios de devassa da vida privada, ainda se constata que a obra interessa mais como memória familiar do que como fundação de uma relação dialógica. O exercício estético não impõe uma realidade nova, e portanto não há plano analítico para a exegese textual. Não é a condição humana, não é o intento de atingir o outro, é o zeitgeist emocional chapado. É uma queixa intermitente em que a literatura é um desabafo, um livro que serve para despejar mágoas, e para mais com comparações de efeito, a armar ao drama, e conclusões também de efeito.
Assim, a leitura torna-se fastidiosa. Se o drama aborrece, que dizer do drama forçado? É que o texto é pesado, meloso e gasto, e o pior é que o é para nada. A prosa é ensimesmada, a narrativa não avança, o chorrilho de desgraças chega a envergonhar: a angústia é íntima e pornográfica, o leitor recebe-a de chapa, não tem como fechar a porta, fingir que não a viu.
Para mais, a dor mastigada aparece em prosa mastigada. Uma implica a outra. O texto demora-se em explicações escusadas, há jogos semânticos, carece de limpeza. As dores íntimas, que deviam estar no pântano do autor, transformam-se, afinal, no pântano da auto-ficção.
A literatura é um exercício empático, mas o que esta estratégia literária faz é o contrário do que tem acção no mundo: ao invés de se procurar uma empatia que extrapole o texto, procura que os leitores sintam empatiam com o autor. Encontra-se assim numa forma de se fazer favores sentimentais; o desafio do autor passa a ser o de emocionar o autor – e daí o chorrilho, daí as queixas, daí o enfado, daí o pântano. A dada altura, sente-se que ouvir (ler) é respeitar a dor. Que cabe ao leitor folhear como quem deixa que desabafe quem engaiolou angústias.
Quem se mete dentro de si não consegue ver o outro, e assim torna-se difícil lá chegar. Não há certeza, não há faca afiada, há apenas uma forma de ver de tal forma auto-centrada que impossibilita a relativização ou mesmo ver o mundo à volta. O próprio autor refere-se ao livro como “a ficção de um homem dorido” (p. 163), e é precisamente aqui que reside o problema: a transformação do livro no consultório do psicólogo.
Manuel Vilas esqueceu-se da regra fundamental da criação literária: kill your darlings. Assim, fez uma prosa cheia de pó e escreveu para desempoeirar, instrumentalizou a literatura em prol da exposição ou da cura da mágoa. Em tudo havia beleza é uma queixa permanente.
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