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Manuel Vilas: o longo lamento da auto-ficção

Aclamado pela crítica, este Em tudo havia beleza (Alfaguara, 2019), de Manuel Vilas, sensação literária de Espanha, prometia muito mais do que o que deu. Por Ana Bárbara Pedrosa.
Publicado em Portugal pela Alfaguara em Fevereiro de 2019.
Publicado em Portugal pela Alfaguara em Fevereiro de 2019.

As primeiras páginas de Em tudo havia beleza, que tem sido aclamado pela crítica, são escorreitas, trazem novidade, um estilo, um modo de estar. Contudo, a partir daí, tudo se repete até à exaustão, sobrando o cansaço da repetição, a fadiga da dor alheia.

Manuel Vilas escreveu este livro sobre a sua vida e sobre a sua dor: as expectativas frustradas, os falhanços, a morte dos pais, a morte dos pais, a morte dos pais. A dor humana pode parecer tocante, mas quando já não traz nada – nem exercício estético nem uma dimensão sublime – só serve para moer. E Vilas mastigou tanto que moeu.

Por isso, quem vai pelo título é enganado. Esta obra não procura a luz; pelo contrário, chafurda no escuro, explora-o de forma sentimental, transformando a dor num tédio.

A experiência pessoal pode e ser deve usada para aumentar a dimensão da condição humana, para que seja possível entendê-la, para que os leitores se confrontem com ela, tenham mais mundo. Quando o livro não extrapola essa experiência, não se atinge o mais elevado nem se cogita essa condição. Pelo contrário, mergulha-se num só homem, atinge-se a condição dele. Claro, se é dele – indivíduo – passará a ser nossa – humano –, mas o que a literatura procura é o universal – não no sentido de atingir o que é comum a todos, mas no sentido de se procurar o espelho, a empatia, o estalo. Contudo, neste longo monólogo de Vilas, parece não haver mais do que um chorrilho de mágoas e tristezas, numa prosa que é a sua dor ruminada, numa transformação da literatura em depósito de nostalgias.

É sempre um perigo que um escritor se meta a escrever sobre si e nada mais. Perde a capacidade de extrapolar-se, de outrar-se, de se ver de fora, encarar o que é tedioso, ridículo. Fazer da literatura palco de vaidades, do romance palco do eu, tem perigos técnicos, teóricos e estéticos.

Em Em tudo havia beleza, para além de episódios de devassa da vida privada, ainda se constata que a obra interessa mais como memória familiar do que como fundação de uma relação dialógica. O exercício estético não impõe uma realidade nova, e portanto não há plano analítico para a exegese textual. Não é a condição humana, não é o intento de atingir o outro, é o zeitgeist emocional chapado. É uma queixa intermitente em que a literatura é um desabafo, um livro que serve para despejar mágoas, e para mais com comparações de efeito, a armar ao drama, e conclusões também de efeito.

Assim, a leitura torna-se fastidiosa. Se o drama aborrece, que dizer do drama forçado? É que o texto é pesado, meloso e gasto, e o pior é que o é para nada. A prosa é ensimesmada, a narrativa não avança, o chorrilho de desgraças chega a envergonhar: a angústia é íntima e pornográfica, o leitor recebe-a de chapa, não tem como fechar a porta, fingir que não a viu.

Para mais, a dor mastigada aparece em prosa mastigada. Uma implica a outra. O texto demora-se em explicações escusadas, há jogos semânticos, carece de limpeza. As dores íntimas, que deviam estar no pântano do autor, transformam-se, afinal, no pântano da auto-ficção.

A literatura é um exercício empático, mas o que esta estratégia literária faz é o contrário do que tem acção no mundo: ao invés de se procurar uma empatia que extrapole o texto, procura que os leitores sintam empatiam com o autor. Encontra-se assim numa forma de se fazer favores sentimentais; o desafio do autor passa a ser o de emocionar o autor – e daí o chorrilho, daí as queixas, daí o enfado, daí o pântano. A dada altura, sente-se que ouvir (ler) é respeitar a dor. Que cabe ao leitor folhear como quem deixa que desabafe quem engaiolou angústias.

Quem se mete dentro de si não consegue ver o outro, e assim torna-se difícil lá chegar. Não há certeza, não há faca afiada, há apenas uma forma de ver de tal forma auto-centrada que impossibilita a relativização ou mesmo ver o mundo à volta. O próprio autor refere-se ao livro como “a ficção de um homem dorido” (p. 163), e é precisamente aqui que reside o problema: a transformação do livro no consultório do psicólogo.

Manuel Vilas esqueceu-se da regra fundamental da criação literária: kill your darlings. Assim, fez uma prosa cheia de pó e escreveu para desempoeirar, instrumentalizou a literatura em prol da exposição ou da cura da mágoa. Em tudo havia beleza é uma queixa permanente.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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