You are here

Maka Angola: Conselhos Práticos para Presos de Luxo

O meu primeiro conselho é simples. Façam um pedido especial à direcção da cadeia, para que vos seja autorizado reunirem com os vossos “consofredores” (é assim que os presos se tratam entre si) mais enfermos e mais necessitados. Por Rafael Marques de Morais, Maka Angola.
José Filomeno dos Santos “Zenú”, filho do ex-presidente da República e do MPLA, José Eduardo dos Santos, e Augusto Tomás, antigo membro do Bureau Político do MPLA, foram presos e acusados de corrupção – Foto de Hospital-Prisão de São Paulo, Luanda
José Filomeno dos Santos “Zenú”, filho do ex-presidente da República e do MPLA, José Eduardo dos Santos, e Augusto Tomás, antigo membro do Bureau Político do MPLA, foram presos e acusados de corrupção – Foto de Hospital-Prisão de São Paulo, Luanda

Caros Zenú e Augusto Tomás,

Imagino a vossa sensação de incredulidade e desespero quando finalmente foram conduzidos aos calabouços. Tenho, no entanto, alguns conselhos úteis para a vossa estadia, os quais poderão ajudar-vos.

Mas antes tenho de explicar porque vos escrevo. Vocês são os principais rostos da elite predadora que pilhou o país, mas agora estão a contas com a justiça, e na cadeia. Vocês foram agora afastados da impunidade que vos permitia os constantes abusos de poder e da liberdade que tinham para espezinhar os vossos próprios concidadãos.

Recentemente, João Lourenço vincou o seu compromisso com o combate à corrupção, “mesmo que os primeiros a tombar sejam altos militantes e altos dirigentes do partido”.

José Filomeno dos Santos “Zenú”: você é filho do ex-presidente da República e do MPLA, José Eduardo dos Santos, e foi o primeiro da família dos Santos a ser apanhado nas malhas anticorrupção de João Lourenço. Para muitos angolanos, este dia, que se transformará num símbolo da justiça, era impensável há um ano atrás.

Augusto Tomás: no princípio do mês, você era membro do Bureau Político do MPLA. Você foi o primeiro, entre os dirigentes do partido, a tombar. Agora está misturado com os doentes na Hospital Prisão de São Paulo.

O meu primeiro conselho é simples. Façam um pedido especial à direcção da cadeia, para que vos seja autorizado reunirem com os vossos “consofredores” (é assim que os presos se tratam entre si) mais enfermos e mais necessitados. Visitem a enfermaria e o refeitório. Tomem nota das dificuldades e ofereçam assistência.

Certamente que vocês têm muito dinheiro escondido, muitas empresas que continuam a facturar. Escrevam às autoridades relevantes a exprimir o vosso interesse em contribuir para a melhoria das condições da Cadeia de São Paulo. Pensem logo também nas cadeias de Viana, Calomboloca e Kakila, onde eventualmente vocês e outros membros da elite do país poderão acabar como condenados. Em Kakila, os detidos bebem água imprópria para consumo humano, suja, acastanhada, retirada directamente do rio. Ofereçam a Kakila equipamento para tratar a água.

Vocês, bem como alguns leitores, devem estar a pensar: “Lá está outra vez este ‘traidor da pátria’, o ‘agente da CIA’, a denegrir a imagem do país, a falar à toa.” Pois bem, eu falo por experiência própria.

Zenú: em 1999, quando o regime do seu pai, José Eduardo dos Santos, ordenou a minha detenção por lhe ter chamado corrupto e ditador – vejam só a ironia –, eu tive sete armas apontadas contra mim, quando abri a porta da minha casa. A vossa experiência, pelo contrário, foi cordial. João Lourenço actuou no respeito dos vossos direitos e da vossa dignidade.

Mas vamos ao que importa. Quando fui transferido para a Cadeia de Viana, percebi que diariamente um grupo de condenados fazia o inventário dos detidos e condenados em cadernos. Era uma tortura diária.

Pedi autorização à direcção da cadeia para que a minha estimada assistente da altura fizesse uma doação de papel químico e resmas de papel já formatado, de modo que o preenchimento dos dados fosse facilitado e o registo da população prisional, mais eficiente. Assim aconteceu. Infelizmente, eu não dispunha de meios para fazer mais.

Foi também nessa altura, tendo testemunhado a desumanidade prevalecente na cadeia e por força das circunstâncias, que me tornei defensor dos direitos humanos. Ouvia os meus “consofredores” a aludirem à “cela dos judeus”. Perguntei o que era. Olharam para mim como se eu fosse de Marte. Dias depois vi a cela, com esqueletos humanos ainda vivos, que mal conseguiam sentar-se entre as pernas uns dos outros, para apoio mútuo. Todos os dias alguém morria.

Transformei a minha fúria em coragem e força de vontade para defender, como prioridade absoluta, a humanização dos meus “consofredores”.

Muitos dizem agora que sou “amigo dos bandidos”, por denunciar vigorosamente os esquadrões da morte do SIC. Augusto Tomás e Zenú: imaginem só se o SIC tivesse enviado o seu famoso executor Pula-Pula para tratar de vocês, como tem acontecido aos supostos delinquentes do Cazenga, Cacuaco e Viana. Vocês roubaram infinitamente muito mais do que o conjunto de todos esses pilha-galinhas que foram fuzilados e de todos os outros que pululam pelo país. Talvez vocês agora compreendam, como novos alunos da escola da vida, a importância da defesa integral dos direitos humanos e do Estado de direito.

Vocês, Zenú e Augusto Tomás, por via da corrupção desenfreada, são também responsáveis pela desumanização, pela desgraça e pela morte de centenas de milhares de cidadãos angolanos. Como tenho escrito, a corrupção também mata.

Certamente estarão a perguntar-se de que modo mata a corrupção, já que nenhum de vocês é o ex-ministro da Saúde, José Van-Dúnem. Este médico sempre soube pilhar o sector da saúde, em tempos de cólera e outras epidemias, com grandes sorrisos públicos. Foi precisamente a sua simpatia que o tornou num dos corruptos mais perigosos e letais do país. Mas também há espaço para ele na Cadeia de São Paulo. Para ele e para muitos mais.

Nenhum acto voluntário da vossa parte diminuirá, é certo, a vossa pena aos olhos da sociedade e da justiça. Mas será sem dúvida uma grande experiência de arrependimento e redenção. Descobrirão, desse modo, a humanidade que há muito vocês perderam nos labirintos da ganância desmedida e da falta de amor ao próximo. Acredito que algum dia a tiveram.

Como vocês são demasiado egoístas, este é um conselho para tornarem mais confortável a vossa estadia nas cadeias.

O meu segundo conselho é simples também: devolvam o dinheiro e os bens roubados ao povo, de forma voluntária e patriótica. Estou aqui para vos defender também, caso os vossos direitos sejam violados na cadeia.

Artigo de Rafael Marques de Morais, publicado em Maka Angola, em 26 de setembro de 2018.

Termos relacionados Internacional
(...)