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Maioria dos ciganos "traficam droga" e "não trabalham"? Não

Manuela Mendes, coordenadora do primeiro estudo nacional sobre as comunidades ciganas portuguesas, diz que uma “percentagem grande trabalha”. O estudo indica que os ciganos portugueses fazem da venda ambulante a principal atividade económica.

Na quarta-feira da passada semana, no programa matinal da TVI “Você na TV”, o psicólogo Quintino Aires, comentando uma notícia sobre um grupo que, alegadamente, danificou um quartel e agredido bombeiros, afirmou que “a etnia cigana não respeita as normas do país onde vive. Invadem as escolas, invadem os hospitais. Não respeitam regra absolutamente nenhuma”. Mais à frente, o psicólogo defendeu ainda que “a maioria trafica droga e não trabalha”.

Os comentários já mereceram o repúdio de 14 associações e de 3 membros de associações ciganas com assento no Grupo Consultivo para a Integração das Comunidades Ciganas, que, por via de um comunicado, acusam as declarações de serem “inadmissíveis” porque “reproduzem preconceitos e estereótipos e promovem posições racistas” e pedem à TVI que tome uma posição pública, à Ordem dos Psicólogos, à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial e à ERC que atuem.

Segundo o primeiro estudo nacional sobre as comunidades ciganas, a ideia de que as comunidades ciganas portuguesas “não trabalham”, são “criminosos” e “vivem à custa dos apoios sociais” não passa de um estereotipo generalizado bastante desfasado da realidade. O trabalho foi encomendado pelo Alto Comissariado para as Migrações e registou dados de 1599 pessoas ciganas, dispersas por todo o território nacional, durante o ano de 2014.

Segundo Manuela Mendes, coordenadora do estudo, “uma percentagem grande trabalha", só que muitas vezes não se trata de trabalho no mercado formal, com um contrato ou um salário. Ainda assim, muitos estão desempregados, bastantes recebem o Rendimento Social de Inserção e mais de metade admite que já passou fome.

O estudo concluiu que os ciganos portugueses têm baixos níveis de escolaridade, casam cedo, fazem da venda ambulante a principal actividade económica.

Em declarações à Lusa, em junho do ano passado, a investigadora disse que uma das coisas que ressaltam são os padrões regionais, destacando haver "aspetos singulares" que variam consoante as regiões do país e que contribuem para a heterogeneidade entre os ciganos portugueses, tendo sido possível detetar três grandes grupos.

Um primeiro grupo é constituído por jovens até aos 34 anos de idade, com níveis de escolaridade muito heterogéneos entre si, com uma grande percentagem de pessoas que nunca trabalhou ou que não se consideram trabalhadores, havendo muitos que vivem na dependência de familiares.

"Estas pessoas predominam em zonas como Estarreja, Ovar, Santa Maria da Feira e Barreiro e este é um grupo que se distingue", apontou Manuela Mendes.

Um outro grupo concentra pessoas mais velhas, com 45 ou mais anos de idade, que vivem em "condições mais deficientes ou com maior índice de vulnerabilidade". Mais de metade não trabalha e "uma percentagem significativa" recebe o Rendimento Social de Inserção ou outro tipo de prestações sociais.

"Encontramos aqui reformados, domésticas, viúvos, e há uma maior incidência deste perfil em zonas do país como Castelo Branco, Santarém, Campo Maior e também no Algarve, em Lagoa. São pessoas que vivem em maior precariedade, com piores condições em termos habitacionais e de acesso a serviços e equipamentos", disse a investigadora.

O terceiro grupo é constituído por pessoas em idade ativa e com família constituída ou estabilizada, com idades entre os 25 e os 34 anos de idade, muitos com o primeiro ciclo. Tem um maior número de trabalhadores, sobretudo pessoas que andam em vendas ambulantes ou trabalhadores por conta de outrem.

"São pessoas mais abertas a amizades com pessoas não ciganas, têm redes de relações menos fechadas e são pessoas que, grosso modo, se concentram sobretudo em Almada, Guarda, mas também no concelho de Espinho e Vila do Conde", adiantou.

Metade já passou fome

A investigação mostra também que, no que diz respeito à alimentação, quase metade (48%) admitiu ter passado fome, dos quais 18,6% disseram que foi entre uma a duas vezes por ano e 13,7% entre uma a duas vezes por mês.

Muitos (58,6%) afirmaram ter-se sentido discriminados por serem ciganos, tanto em contexto de trabalho, serviços, quer públicos ou privados, ou na escola, mas também é apontado que quando as comunidades ciganas "coabitam com outros grupos étnico-culturais" tem havido "alguns problemas de relacionamento, sobretudo com pessoas de origem africana".

Por outro lado, os percursos escolares dos ciganos "são geralmente muito curtos, principalmente no caso das raparigas", os casamentos acontecem em idades muito precoces (entre os 13 e os 15 anos) e parece dominar o culto evangélico, ligado sobretudo à Igreja de Filadélfia.

Ao nível das recomendações, o estudo sugere, entre outros, o reforço de alguns projectos, como o Programa Escolhas ou os mediadores culturais, e a capacitação das mulheres ciganas, principalmente através da aquisição de competências profissionais.

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