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"Má gestão e políticas neoliberais puseram o Sri Lanka de joelhos"

Com o primeiro-ministro demissionário e os protestos nas ruas a exigirem também a saída do seu irmão da presidência do país, o Sri Lanka atravessa a pior crise económica das últimas décadas. O economista Ahilan Kadirgamar explica nesta entrevista como o seu país chegou a esta situação.
Ahilan Kadirgamar na entrevista ao programa "Democracy Now!"

O primeiro-ministro do Sri Lanka demitiu-se na semana passada após semanas de protestos de rua durante a pior crise económica da história do país, com os preços dos alimentos e dos combustíveis a dispararem na nação insular. A demissão do primeiro-ministro Mahinda Rajapaksa veio depois de apoiantes do partido no poder terem invadido um importante local de protesto na capital Colombo, atacando os manifestantes e provocando confrontos com a polícia. O Presidente Gotabaya Rajapaksa, irmão do primeiro-ministro cessante, declarou o estado de emergência e permanece no poder, apesar das exigências dos manifestantes para a demissão de todos os membros da dinastia política que tem dominado a política do Sri Lanka durante décadas.

Nesta entrevista ao Democracy Now!, Amy Goodman e Juan González conversam com Ahilan Kadirgamar, economista político e professor principal da Universidade de Jaffna, no norte do Sri Lanka, sobre o momento político conturbado que o país vive e a maior crise económica das últimas décadas.


AMY GOODMAN: Bem-vindo de volta à Democracy Now! Pode explicar-nos o que está a acontecer no seu país, como é que o primeiro-ministro se demitiu, as centenas de pessoas feridas, pelo menos cinco mortos?

AHILAN KADIRGAMAR: Obrigado, Amy. O Sri Lanka está a atravessar talvez a pior crise económica desde a década de 1930. Há escassez de bens essenciais. Os preços do gás e do gasóleo duplicaram, e há filas enormes por causa da escassez. O preço do pão duplicou. O preço do arroz duplicou. Há escassez de medicamentos. E as pessoas estão a perguntar: Qual é a razão para isto? E apontam o dedo diretamente ao regime de Rajapaksa, que chegou ao poder em finais de 2019.

Evidentemente, esta crise económica foi agravada pela guerra na Ucrânia, com a subida dos preços globais das mercadorias, e pela pandemia, que perturbou o sector do turismo no Sri Lanka. Mas também remonta há muito mais tempo, à liberalização no Sri Lanka, porque até aos anos 1970 o Sri Lanka era considerado um estado de desenvolvimento modelo a nível mundial, juntamente com Cuba e o estado indiano de Kerala. Apesar de termos rendimentos per capita muito baixos, tínhamos indicadores de desenvolvimento humano muito elevados, principalmente graças à educação gratuita e a políticas de saúde gratuitas, que continuam até hoje. Mesmo na minha universidade para os meus estudantes - todas as universidades são públicas - a educação continua a ser gratuita.

Mas a tremenda má gestão da nossa economia por parte deste regime, combinada com a história das políticas neoliberais, foi o que de certa forma pôs o Sri Lanka de joelhos. E as pessoas estão a questionar-se seriamente sobre este regime em particular e como têm lidado com esta crise económica desde que chegaram ao poder. Mahinda Rajapaksa foi primeiro-ministro e acabou de se demitir. Ele foi presidente durante 10 anos, de 2005 a 2015. E por causa do limite de dois mandatos, o seu irmão concorreu ao cargo em 2019. E quando regressaram ao poder, concentraram-se apenas na consolidação do seu poder. De facto, apesar da pandemia, o Sri Lanka foi o país que menos medidas de alívio tomou, mesmo em comparação com outros países do Sul da Ásia. As pessoas obtiveram muito pouco apoio durante a pandemia. Sofreram um bom bocado. Enquanto isso, eles tentaram consolidar o seu poder. Após as eleições parlamentares de 2020, propuseram uma emenda à Constituição para acumular enormes quantidades de poder no presidente. Temos tanto um sistema parlamentar como um sistema presidencial no Sri Lanka, e o presidente tem enormes poderes. Assim, apesar de o primeiro-ministro se ter demitido após semanas de protestos, agora há protestos militantes que pedem a demissão do presidente. E é aqui que o Sri Lanka se encontra neste momento.

JUAN GONZÁLEZ: Como foi a família capaz de consolidar o poder tão absolutamente com tantos irmãos do presidente em exercício? Não houve uma reação do resto dos governantes, ou do público em geral?

AHILAN KADIRGAMAR: Este tem sido um longo projeto, desde 2005 - sabe, o Sri Lanka passou por uma guerra civil de três décadas. Em 2005, anos antes do fim da guerra civil, Mahinda Rajapaksa chegou ao poder como presidente. E foi-lhe creditado o mérito de ter esmagado os Tigres Tamil. E isso deixou um legado. E depois ganhou o mandato seguinte, onde se tornou ainda mais arrogante ao trazer mais membros da sua família para a política. Houve uma reação. Depois da guerra, as lutas sindicais crescentes, etc., acabaram por levar a uma mudança de regime em 2015, e eles foram expulsos do poder.

Mas o novo governo que chegou ao poder pouco fez para resolver as questões económicas. Houve uma seca durante dois anos. Por isso, começaram a perder credibilidade. E em 2019, talvez se lembrem, no Dia de Páscoa houve ataques terroristas no Sri Lanka. E subsistem dúvidas quanto a quem esteve por detrás disso, mas afirma-se que foram ataques inspirados pelo ISIS. E esses ataques terroristas levaram os Rajapaksas ao poder em finais de 2019. Juntamente com isso, utilizaram uma espécie de nacionalismo virulento, um nacionalismo budista Sinhala, para mobilizar a maioria da população contra as minorias. Durante a última década, tem havido enormes ataques contra a comunidade muçulmana, em particular, mobilizando forças islamofóbicas. Tudo isto levou-os a consolidar o poder.

Mas com esta crise económica, penso que a  maioria da população também chegou finalmente à conclusão de que este regime saqueou realmente o país. E assim, no seu cerne está uma crise económica que se transformou agora também numa crise política muito grave.

JUAN GONZÁLEZ: E como em muitos países em desenvolvimento, as agências internacionais podem muitas vezes desempenhar um papel importante na formação das políticas governamentais. Poderia falar sobre o papel do Banco Mundial e do FMI em termos das políticas económicas do Sri Lanka?

AHILAN KADIRGAMAR: Sim, sem dúvida. Se olharmos para a década de 1970, até então tínhamos um governo de esquerda. E com a longa recessão económica da década de 1970, um governo de direita emergiu. Um governo muito pró-EUA em 1977 sob a liderança de J.R. Jayewardene. E o Sri Lanka passou por políticas de ajustamento estrutural com o apoio do Banco Mundial e do FMI. E decidimos liberalizar o comércio, liberalizar o nosso sistema financeiro. Ao longo das últimas quatro décadas, isso conduziu a níveis muito mais elevados de desigualdade no país. E isso tem sido continuado.

Mas durante os últimos 12 anos após a guerra, em particular, com o apoio do FMI - celebrámos 16 acordos com o FMI no Sri Lanka - temos vindo a contrair empréstimos consideráveis nos mercados internacionais de capitais, os chamados títulos soberanos, a taxas de juro muito elevadas, da ordem de 7,5%, o que significa que quando estes títulos são reembolsados num prazo de 10 anos, o custo dos juros é igual ao do capital. Por isso, se pedirem emprestados 500 milhões de dólares americanos, no momento do reembolso, são mil milhões de dólares americanos, mas isto veio com o apoio destas agências internacionais. Portanto, na minha opinião, elas são parte do problema.

E agora a solução para a atual crise económica é também vista como o regresso ao FMI para um acordo. O governo alinhou com isso, até a oposição. Mesmo que haja uma mudança de governo é a sua principal saída, pensam que ir para o FMI é uma varinha mágica. Na minha opinião, os credores do FMI, tal como a Índia, podem ser capazes de nos ajudar a fazer face a estas carências de abastecimento devido à queda real das reservas externas. Mas a longo prazo, temos de ser muito cuidadosos, porque as condicionalidades do FMI que provavelmente serão colocadas - já estão presentes em muitos dos relatórios do FMI - exigem austeridade, novos cortes na assistência social, serviços públicos a preços de mercado. Agora, se pensarmos num país como o Sri Lanka, somos um modelo porque 99% do nosso povo tem eletricidade. E essa eletricidade é dada a custos muito baixos. As famílias rurais podem pagar eletricidade a menos de 2 dólares americanos por mês. Mas tudo isso vai ser a preço de mercado agora, por isso há enormes interrogações quanto ao futuro do nosso bem-estar social, se também passarmos por tais políticas de austeridade.

AMY GOODMAN: Ahilan, antes de terminarmos, será este o fim da dinastia Rajapaksa? Quer dizer, vimos Mahinda Rajapaksa a demitir-se, mas o seu irmão, que é o presidente, Gotabaya Rajapaksa, permanece. Explique quem são eles, como retiveram o poder durante tanto tempo, e se vê toda a dinastia familiar desmoronar-se?

AHILAN KADIRGAMAR: A família inteira e o regime foram completamente deslegitimados, por isso vai ser muito difícil para eles. Provavelmente não há futuro político para eles, embora não possamos dizer com certeza. Como referiu no seu programa sobre a história de Marcos nas Filipinas, sabe, talvez os seus filhos, lá mais para a frente, possam tentar regressar. Mas penso que nas próximas décadas eles estão arrumados. E também é possível que venham a ser processados por todas estas alegações de corrupção, para não falar dos vários tipos de violações dos direitos humanos que têm sido parte integrante do seu governo.

Ainda assim, é pouco provável que o presidente, que detém uma imensa quantidade de poderes, se demita. Provavelmente vão tentar prolongar isto o mais possível, enquanto puderem. Mas mesmo que prolonguem, se o presidente permanecer no poder, isso vai provocar quase um estado de anarquia no país. A crise económica continua a agravar-se. Todos os sindicatos estão em greve contínua. Assistimos a protestos que não se viam neste país nos últimos 70 anos. Portanto, é um momento importante.

Mas penso que Rajapaksa terá de partir. A sua política familiar está condenada. A verdadeira questão é: que tipo de alternativa vai surgir? Os liberais não têm  uma alternativa a esta crise económica. Temos mesmo de nos concentrar no nosso sistema alimentar. Estamos a falar de carências alimentares e até mesmo na ameaça de fomes que se avizinham. Portanto, há que pensar como tudo isto vai acontecer e se podemos reconstruir o nosso sistema alimentar, concentrarmo-nos na produção local, pensarmos na auto-suficiência e verdadeiramente tentarmos reduzir a desigualdade neste país, o que significaria implementar algo como um imposto sobre a riqueza. Isto vai contra as recomendações do FMI, que vão no sentido de regressar ao mesmo caminho de desigualdade e liberalização do comércio e da financeirização, o que de facto conduziu a esta crise. Portanto, Rajapaksa tem de sair, mas quem vai tomar as rédeas e colocar o Sri Lanka num rumo diferente é a principal questão que se nos coloca.

Transcrição da entrevista realizada por Amy Goodman e Juan González no programa Democracy Now. Tradução de Luís Branco para o Esquerda.net.

 

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