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Luís Varatojo: “Estamos numa fase em que as pessoas conformam-se com situações miseráveis”

A Luta Livre, de Luís Varatojo, sobe aos palcos de Setúbal e Lisboa, a 21 e 27 de abril, respetivamente. O Esquerda.net esteve à conversa com o músico sobre o seu trabalho, a importância da mobilização social e temas como precariedade e fake news. Por Mariana Carneiro.
Luís Varatojo. Foto de Sara Varatojo.

Em 2020, Luís Varatojo lançou-se no novo projeto Luta Livre, que “reflete o seu olhar interventivo sobre a sociedade e a atualidade”. Já no início deste ano, em fevereiro, surge o álbum de estreia “Técnicas de Combate”, numa edição de autor em formato CD e LP/Vinil.

Com letras e músicas de Luís Varatojo, o álbum conta com a participação de vários convidados e convidadas como o Coro Gospel Collective, Ricardo Toscano, Kika Santos, Edgar Caramelo, João Pedro Almendra, Nelson Cabral, Ivo Palitos, Diogo Santos, Pedro Mourato e o Coro Os Amigos do Vicente. A ilustração da capa é da autoria de João Pombeiro e o artwork é de Luís Carlos Amaro. Os sete vídeos lançados até ao momento são da autoria de Andreia Reisinho Costa e Cristina Viana.

Depois da estreia ao vivo na Festa do Avante em 2020, e do confinamento forçado, Luís Varatojo volta ao palco, em Setúbal, no Fórum Municipal Luísa Todi, a 21 de abril, e em Lisboa, no Teatro Maria Matos, a 27 de abril. Ambos os espetáculos têm início às 20h.


Li que o projeto Luta Livre reinventa a música de intervenção - “traz uma música de intervenção com uma linguagem estética moderna”. Afinal o que é isso da música de intervenção?

Não sei. Essa foi uma expressão que alguns jornalistas usaram para definir aquilo que fiz.

Basicamente, ao longo de alguns meses, fui tirando algumas notas, sobretudo de artigos de imprensa com assuntos que me interessavam, sem saber se ia fazer letras, ou se ia fazer músicas. Honestamente, sabia que iria fazer alguma coisa com essa recolha, mas não sabia o quê. A partir de certa altura, quando já acumulava um certo volume de notas, comecei a trabalhar nelas. Às vezes eram frases, outras vezes eram pedaços de textos jornalísticos. A partir daí, começaram a tomar uma forma. Algumas são texto corrido, nem sequer são rimas. Às vezes são, outras vezes não. Seguiram o seu caminho. Foi por aí que comecei a apanhar a ideia de que, se calhar, aquilo poderia dar origem a músicas. Essa é a minha primeira explicação para aquilo que quis fazer. É a minha preocupação, aquilo que acho que devo estar a fazer em determinado momento. E acaba por ser uma coisa espontânea. De repente, vejo-me a trabalhar nestas letras e nestes assuntos sem um plano para fazê-lo. Foi algo que foi aparecendo.

Intervenção. Esse é um termo que diz uma coisa para umas pessoas e outra coisa para outras pessoas. No fundo, se formos à definição básica da palavra, que é intervir numa realidade qualquer, a intervenção pode ser feita, e puxando isto para o contexto das artes, onde se insere a música, de várias formas. Não tem de ser em contextos abertamente políticos ou de crítica social. É uma intervenção que se faz em determinado meio. É assim que entendo o termo. Entendo que se pode fazer intervenção nas artes, abanar o sistema, simplesmente, por exemplo, mudando o formato da música, mudando as referências. Fazendo coisas que não estão no mainstream. Isso é intervir.

No que respeita à definição mais clássica da música de intervenção, há uma certa tendência para cristalizá-la no passado, sobretudo nos anos 70, antes e depois do 25 de Abril. Mas sobretudo depois. Não há dúvida de que foi uma altura em que a música que falava de política, dos problemas sociais, que falava do coletivo, dominava, por assim dizer. Eu era pequeno nessa à época, mas lembro-me de ouvir até à exaustão Sérgio Godinho, Zeca Afonso, Zé Mário Branco, Fernando Tordo, as letras de Ary Santos… Era essa a música que se ouvia. Por isso, há muita gente que, quando se fala em música de intervenção, dizem logo que era aquela música que se fazia a seguir ao 25 de Abril. Período revolucionário = música de intervenção.

Acho que essa ideia é completamente errada. Isso pressupõe que não há assuntos hoje em dia, dentro dessa esfera, que devam ser abordados e falados na música. O que não é verdade. Sempre houve e cada vez há mais. A música ou a intervenção acaba por ser aquilo que os artistas querem fazer em determinada altura e que, de alguma forma, é feito com vontade de denunciar, de quebrar algumas regras. Para mim, isso é o que se pode chamar uma linguagem ou um projeto de intervenção.

Capa do albúm "Técnicas de Combate"

Moderei um debate com o José Mário Branco em 2018, no Fórum Socialismo, em que ele dizia que toda a música é música de intervenção. Porque tu fazes sempre uma escolha, mesmo que essa escolha seja a de não pôr em causa o sistema.

Estou completamente de acordo com ele. Em determinada altura, ali no início dos anos 2000, eu e o João Aguardela criámos um projeto que se chamava A Naifa. Durou até 2014, mesmo já depois da morte do João. Lembro-me que, nessa altura, o que se ouvia nas rádios, mesmo nas rádios públicas, era, sobretudo, música cantada em inglês, mesmo quando feita em Portugal. Se recuarmos às playlists de 2003/2004, é isso que temos. O estarmos a fazer música em português foi, para mim, um ato de intervenção. E, por isso, também não passámos na rádio, tivemos essa consequência. Estou completamente de acordo com o José Mário Branco. Aquilo que tu fazes em determinada altura pode não ser abertamente político ou de crítica social mas pode ser de intervenção.

Nas tuas músicas trazes temas como precariedade, xenofobia, desinformação e fake news, gentrificação, alterações climáticas, desigualdade, crime financeiro... E está sempre presente a importância da luta, da mobilização. Esta é uma espécie de wake up call? Achas que estamos todos em risco de nos tornarmos na nêspera que fica deitada e é comida, como diria o Mário Viegas?

Já há algum tempo que andamos a caminhar nesse sentido. Estamos numa situação bastante grave a esse respeito, pelo desinteresse das pessoas pela política. É algo que tem sido trabalhado ao longo dos anos, evidentemente. A abstenção tem crescido e as pessoas acham que envolverem-se em política é uma coisa ultrapassada, que o que é bom é não saber da política. Isto não sabendo eles que basta terem um cartão de cidadão para serem parte do sistema. Não é por aí que vão dar a volta ao sistema.

Há pouco estava a ver um artigo do Público, depois vi-o também no Observador, sobre uma sondagem que diz que boa parte dos portugueses com um emprego estável está no limiar da pobreza. E que a maioria desses trabalhadores se sente feliz com isso. Estamos num ponto em que voltámos àquela ideia de que somos pobrezinhos mas honestos, de que mais vale ter um emprego e ser explorado até à exaustão, de fazer trabalho escravo, do que não ter nada. A música “Escravo do Patrão”, que até devia ser “Escravo e Patrão”, porque a ideia é essa, fala sobre a malta que anda a entregar comida.

A realidade das plataformas digitais e do trabalho dos estafetas…

Exato. Não encomendo comida por aí. Tenho pena, mas não dou para esse peditório. Sei que as pessoas precisam de ganhar, no entanto, não vou colaborar com esse sistema.

Fiz essa música porque faz-me imensa confusão ver a malta de bicicleta com uma mochila às costas. Acho que é escravidão, mesmo. Obviamente, recebi comentários positivos. Ainda assim, houve quem tenha comentado o vídeo nessa perspetiva: “Pelo menos há emprego”. Respondo que não têm contrato, não têm direito à assistência social, não têm direito a um seguro de saúde, não têm direito a baixa se se magoarem, etc. É um trabalho sem condições nenhumas, que volta quase aos tempos da industrialização. É um trabalho escravo.

Estamos nessa fase em que as pessoas se sentem cada vez mais conformadas com aquilo que têm. Isso é muito perigoso. Estamos, todos nós, a perder direitos que foram conquistados ao longo de séculos, sobretudo durante o século XX, por muitas lutas e pelo trabalho de muita gente. Sinto que muitas pessoas assobiam para o lado e conformam-se com situações miseráveis. Isso é muito grave.

 

Nas tuas músicas não te referes só ao afastamento da política, mas também ao afastamento do ativismo, dos sindicatos, de uma organização e de uma luta coletiva. Os espaços de reivindicação esvaziam-se…

E isso ainda é pior para a vida de cada um, individualmente. É uma conformação com aquilo que tens. Não almejas nada de melhor. E, se a seguir te tiram o que tens e te dão algo mais pequeno, vais continuar a dizer “Epá, isto assim está bom”. Até não teres mesmo nada. É o que está a acontecer, não é nenhuma teoria da conspiração. É, nitidamente, real.

Assisti de perto a processos, que têm a ver com este “reajustamento” que estão a fazer as grandes empresas por causa da crise, que são completamente antidemocráticos, chantagistas. É chantagem o que fazem com os trabalhadores na redução das condições de trabalho. E tem havido um aproveitamento por parte dessas empresas e do governo do facto de estarmos em confinamento e os trabalhadores não se poderem reunir em assembleias. Basicamente, têm de ouvir “missas” e dizer que sim ou que não. Normalmente dizem que sim, porque são chantageados. Isto está a acontecer a toda a hora.

É um bom contexto para a perda de direitos.

É um bom contexto para se pôr ainda mais medo em cima das pessoas. E as pessoas pensam que é melhor ficar com isto do que ficar sem nada.

Na tua música “Mentalidades sem Cortes” falas naqueles que nos andam a dividir para depois reinar. Quem são eles, afinal?

Muita gente.

São muitos os vampiros…

Sim, são muitos os vampiros. E há muito trabalho que é feito sem sequer nos apercebemos. Por exemplo, o facto de nos afastarmos da política, de deixarmos de ir votar, a ideia de que a política é o nosso trabalho, é algo que tem vindo a ser trabalhado. Não é inocente.

Mesmo as programações dos canais de televisão, no geral, são uma alienação completa. A ideia é alienar as pessoas e entretê-las com assuntos que não as põem a pensar. Isso tem sido feito ao longo das últimas décadas, não é de agora.

Para ser mais concreto, acho que, ultimamente, temos sido controlados pelas grandes empresas globais. São elas que controlam tudo e que impõem as regras. São elas que emprestam, ou não, dinheiro aos governos, que ditam as leis.

No que respeita à música, a globalização invadiu-nos completamente o território. Fomos os primeiros lesados da pirataria. A música foi a primeira coisa a ser pirateada no início dos anos 2000. A partir daí, podes gravar aquilo que quiseres, que no dia a seguir está na internet e dali não tens direito a nada. As grandes empresas, sobretudo desse meio digital como o Facebook, e mesmo a Apple, não pagam os impostos que devem pagar. Todos nós sabemos que vivem dos nossos conteúdos, do meu enquanto músico, do outro enquanto jornalista, da outra pessoa como artista plástica, fotógrafa, etc. Aquela rede sem estes conteúdos não é nada. No entanto, eles nunca pagaram direitos por isso, nem pagam. Mesmo os Estados Unidos, que é onde eles têm a base, não tem podido controlar e regular a atividade dessas empresas. Estamos praticamente todos, a nível mundial, nas mãos deles. Os governos estão nas mãos deles, e nós ainda mais.

Portanto, esses são os que andam a dividir para reinar.

 

Creio que a questão da desinformação, das fake news, é fundamental, principalmente num contexto de crescimento da extrema direita e de manipulação e instrumentalização da informação por parte da mesma. De que forma tem de ser feito o combate contra esta estratégia de desinformação?

Antes, deixa-me só ligar esta questão à pergunta anterior. Em “Mentalidades sem Cortes” o contexto da letra é uma ideia de pureza racial, é o que ali está implícito. E quem anda ali a dividir para reinar são essas pessoas. Não é só em Portugal, não é só na Europa, é na Ásia, na América… A letra fala disso, sobre essas pessoas que acham que deve haver uma determinada pureza a todos os níveis: da raça, religião, de ideias políticas, um certo nacionalismo. Queria fazer esta referência. Na resposta anterior alarguei-me mas é disso que fala a letra.

Em relação às fake news, que abordo no tema “Ninguém quer Saber”, fiz uma pesquisa para perceber qual era a dimensão da tragédia. Encontrei centenas e centenas de exemplos, sites em que só listam fake news. E depois tentei abordar o tema trazendo algum humor para cima da mesa. Puxei o lado do ridículo para mostrar às pessoas até onde é que vai este fenómeno. Existem estas notícias porque há sempre alguém que acredita.

É muito difícil combater a desinformação. As pessoas seguem determinados filões, determinadas ideias, e acabam por acreditar em tudo. Quando partilho algo no Facebook sobre a pandemia, vêm logo os negacionistas com exemplos e vídeos do Youtube.

A extrema direita também está a capitalizar o negacionismo.

A extrema direita capitaliza sempre aí. E nós vimos quem chega ao poder com fake news: Bolsonaro, Trump… é a extrema direita.

 

Temos observado que este é um combate bastante difícil. Nem com Polígrafos lá vamos. É quase como uma religião. Quando uma pessoa começa a acreditar que a terra é plana não existem fotografias de satélite que a convençam do contrário. Para dar um exemplo mais caricatural.

Quando publicam vídeos para rebater a minha publicação, não vou à discussão. Não vale a pena. Eles mandam mais vídeos e mais artigos que são fake news. É uma espiral de onde não conseguimos sair. Tem de ser um combate quase “boca-a-boca”. Se existe um problema com o amigo do lado podemos falar e ter uma conversa tête-à-tête.

Noutros meios é muito difícil, até porque há um descrédito nos media. E lembro que existem meios de comunicação, e em Portugal já tivemos vários casos, que nós consideramos fiáveis e depois dão notícias que não são verdadeiras. Estou a lembrar-me daquele caso caricato, quando a SIC, no Jornal da Noite, foi buscar uma notícia do New York Times sobre o Avante que nunca existiu. E estamos a falar da SIC no Jornal da Noite. Quando chegamos a este ponto, é muito difícil dizer às pessoas para não irem à internet, ao Youtube, e optarem pelo jornal da Sic ou da RTP.

Os jornalistas têm um papel muito importante. Têm de ter muito rigor naquilo que fazem. Mas aqui entra o problema de que falámos antes, as grandes empresas, que também estão a aproveitar o momento para despedir jornalistas e contratar estagiários, pessoas com muito menos experiência e que farão as coisas com menos rigor.

Mas é isso, o combate tem de ser feito “boca-a-boca” e os jornalistas têm de assumir esse papel, que é bastante importante.

Passando ao projeto musical em concreto. Conhecemos-te de projetos como Peste & Sida, Despe e Siga, Linha da Frente, A Naifa e, mais recentemente, Fandango. Mas este é o teu primeiro trabalho a solo, ainda que com várias colaborações. Que influências trazes dessas experiências para este projeto e como foi o desafio da estreia a solo?

Em termos daquilo que fiz para trás, e daquilo que está neste trabalho, creio que neste projeto está aqui tudo. Não sei se está tudo, mas estão coisas das várias experiências. Não quero, mas, mesmo que quisesse, não conseguia, livrar-me da experiência que já tive e daquilo que me ficou marcado na pele do que já fiz. Neste trabalho, e nos outros que fizer para a frente, isso acontece.

Quando comecei a trabalhar, comecei pela escrita, por juntar uns textos. Como tenho um pequeno estúdio, que é onde nós estamos, tenho um método de trabalho regular. Praticamente todos os dias dedico uma parte do meu tempo a fazer algo no lado da música. Vou criando coisas. Para além dessas bandas, já fiz várias trabalhos para publicidade, para vídeo, para documentários. Estou sempre a construir alguma coisa.

Na altura em que comecei a retocar, a retrabalhar esses textos que recolhi dos jornais, também andava a fazer um trabalho de corte e colagem, a que nós chamamos “samplagem”. Andava a tirar algumas coisas de discos de jazz que comprei nos últimos anos. Tenho ouvido muito jazz, sobretudo dos anos 50, 60, 70. Tenho um gira-discos cá em baixo e comecei a trazer para discos e a tirar bocados. “Samplava” notas, pequenos loops. Organizei-os e comecei a ter pedacinhos de músicas que me interessaram. Achava que aquilo poderia resultar num disco. Como já andava a trabalhar aqueles textos, decidi investir nisso.

É um trabalho bastante a solo, bastante solitário. Achei que devia mantê-lo assim. Os textos eram muito específicos, têm a ver com a visão que tenho das coisas. Essa experiência à volta desses beats de jazz também eram muito característicos.

Primeiro nem queria mostrar a ninguém. Depois logo se via. Estava com alguma vergonha de mostrar o meu trabalho. Só quando as músicas começaram a ficar com melhor forma decidi mostrá-las aqui em casa. Achei que devia ser uma coisa a solo.

Quando já tinha os temas todos construídos, quando começou a chegar a altura de decidir em termos de arranjos, em termos do que é que vai ficar mesmo, olhei para eles e achei que, em alguns casos, em vez da minha voz, ficava bem outra voz. Por exemplo, no caso da Kika, que é minha vizinha. Encontramo-nos de vez em quando, sabia que ela andava a fazer muito locução. A música das fake news precisava de uma locução, por isso convidei a Kika para fazê-la. Já tinha feito um esboço da voz em cima da música, ainda assim, achava que devia ser outra voz. Isso aconteceu também noutras canções.

Não foi difícil alinhar todos estes contributos?

Comecei com um canal de Youtube. Criei o canal Luta Livre e juntei à equipa duas pessoas que trabalham na área da animação, a Cristina Viana e a Andreia Costa. A ideia era, à medida que eu fosse acabando as músicas, íamos animando e pondo no Youtube. O objetivo era criar esse canal de comunicação, comunicar a partir dali. Não sabia se ia fazer um disco, até porque não sabia quantas músicas ia conseguir acabar.

O facto de termos ficado confinados foi um fator positivo para mim. Fiquei com muito mais tempo e, como não podia sair daqui, fui adiantando as músicas. Consegui ir acabando uma por mês. A Cristina Viana e a Andreia Costa também conseguiram fazer um vídeo por mês. Fizemos sete no total. Quando já tinha material para fazer um disco, decidi avançar.

As participações também foram surgindo neste ritmo. Por exemplo, a Kika também tem um pequeno estúdio: mandava-lhe os ficheiros e ela fazia as gravações, enviava-mas, eu montava na música e voltava a encaminhar-lhe para ela ouvir. Foi uma coisa feita à distância. Aproveitámos também alguns momentos de desconfinamento, com todos os cuidados que a situação merece. O Edgar veio cá gravar o saxofone.

 

Já estamos bastante habituados a trabalhar mais ou menos desta forma desde a transição para o digital. Antes, existiam fitas de 24 pistas em caixas. era preciso uma máquina enorme. Não podia passar o meu trabalho para outra pessoa dar a sua colaboração. Não era possível. A partir do momento em que ficámos a trabalhar no meio digital, as coisas mudaram. Portanto, trabalhar em confinamento não foi um grande problema e nem uma grande novidade. Toda a gente tem o sistema digital onde põe o ficheiro e depois toca por cima e manda outra vez. É mais ou menos normal.

Falaste na questão do vídeo, com a colaboração da Andreia Reisinho Costa e da Cristina Viana. Queres continuar a explorar essa via, de aliar a música à imagem?

Sim. Não é por acaso que lançámos sete vídeos. Normalmente, lanças um, dois, três vídeos, no máximo. A ideia era ter uma comunicação audiovisual, onde as imagens reforçam e facilitam a passagem da mensagem. Os vídeos são todos de animação, quase como se fossem vídeos para crianças. A imagem é importante para que não hajam dúvidas sobre aquilo que está a ser dito, para que as coisas apareçam de forma clara.

Estamos numa altura em que temos de ser muito claros. Não podemos utilizar uma linguagem muito dúbia, cheia de artefactos, subterfúgios. Temos de ser bastante claros. É muito difícil comunicar na internet. As pessoas veem tudo na diagonal. Não têm tempo para nada. Estão completamente manipuladas pelas redes, pelo Facebook, pelo Instagram, e pelo modo como eles querem que elas estejam nessa rede. E o modo é quanto mais coisas vires, mais eles ganham. Não sei se te apercebes disso...

Apercebo, claro. Muitas vezes, as pessoas não têm disponibilidade para ler um texto mais longo.

Elas não estão a fazer isso por iniciativa própria, estão a ser manipuladas. É inconsciente. Alguns documentários abordam essa questão. Pessoas que já saíram do Facebook e do Instagram, técnicos que trabalharam nessas redes, explicam-nos como essas empresas atuam. Por vezes também me vejo nessa situação, e apercebo-me de que tenho de ter um pouco mais de calma.

Mas está difícil comunicar. As coisas têm de ser o mais diretas possível. E a imagem ajuda bastante.

Vou transpor essa ideia para os espetáculos. Vão ser completamente audiovisuais. Todo o concerto vai ser um espetáculo de vídeo também. Com base nos vídeos que já publicámos e noutros, porque há canções que não têm vídeo. E fiz canções entretanto, que não estão no disco, e que vou juntar ao espetáculo. Em todas há essa componente. Obviamente, os vídeos ao vivo são manipulados com a música. Às vezes, surgem improvisos, o que também vai acontecer com a imagem.

A tua música é dirigida essencialmente aos jovens? As frases curtas, as imagens apelativas, a parte eletrónica, têm como alvo um público mais jovem?

As frases curtas, os riffs, são características da música pop, que é a minha formação. Fiz música assim desde o início. Faço canções, não faço uma música experimental. Não faço jazz, não faço sinfonias, são canções. E as canções são feitas disso: frases fortes, riffs, melodias simples…

A linguagem visual também tem muito a ver com a minha formação. Estudei design gráfico nas Belas Artes, e tenho muito esse lado. Esta linguagem mais pop tem muito a ver com aquilo de que gosto nas artes plásticas: as cores fortes, os símbolos, a etnografia…

Termos eletrónica tem a ver com o facto de eu continuar a ouvir música que sai hoje em dia. Não ouço só jazz dos anos 60 ou punk dos anos 70. Como sou músico, sou um ouvinte de música. Vou ouvindo aquilo que sai e escolhendo aquilo de que gosto. Ao mesmo tempo, estou atento às ferramentas que vão saindo. Já trabalho com eletrónica desde a Linha da Frente. Estamos a falar de 2002. Consegui munir-me logo de alguns instrumentos: os “samplers”, sintetizadores, que têm evoluído bastante. Uso com facilidade essa ferramenta, como uso uma guitarra na música que faço.

Utilizo o que a música pede. Por exemplo, a música “Mentalidades sem Cortes” é uma música toda eletrónica. Tem um baixo e um saxofone, mas não tem uma única guitarra. É só sintetizadores e programações. Há outras que têm guitarras e bateria, como o Pedigree. É um clássico rock. Sobretudo, não tenho qualquer prurido, não tenho qualquer problema em ir buscar os instrumentos que a música pede.

Foto de Sara Varatojo.

Sais da tua zona de conforto. É um processo evolutivo, de permanente criação. Deixas-te ir pelo que a música pede.

Mas essa é a minha zona de conforto. Não ter de pensar que tenho de utilizar um “sampler” de jazz numa canção porque as outras têm-no.

A música que fiz não é vocacionada para pessoas mais novas ou pessoas mais velhas. É para quem a apanhar. Mas tenho noção da música que vai aí no mainstream e do que é que cativa mais as pessoas mais novas. As mais velhas, normalmente, só ouvem coisas dos anos 80 ou 90. A maioria fica um pouco cristalizada naquela altura. É a música que ouviam quando eram novos, percebe-se isso.

No entanto, tenho as músicas no Spotify e acesso às estatísticas das pessoas que ouvem. É interessante perceber que o público que tem ouvido a Luta Livre é muito equilibrado. Cerca de 30% das pessoas estão na faixa etária entre os 30 e os 40. Depois tens 20% entre os 23 e os 28. Pessoal da minha idade ouve menos aquilo que estou a fazer. Fico contente com isso.

Depois da estreia ao vivo na Festa do Avante em 2020, e do confinamento forçado, voltas ao palco, em Setúbal, no Fórum Municipal Luísa Todi, a 21 de abril, e em Lisboa, no Teatro Maria Matos, a 27 de abril. Qual é a expectativa em relação a estes espetáculos?

Vai estar em palco uma banda grande, somos cinco, como aconteceu no Avante, e vou ter todos os convidados comigo. Somos para aí uns dez em palco. Queremos replicar o modelo do espetáculo no Avante, que resultou muito bem. Acabou por ser um misto de slogans, de palavras de ordem… As pessoas alinharam e cantaram, mesmo as músicas que não conheciam. Foi quase uma manifestação.

Tens manifestações na tua música…

Sim, exatamente. Há gravações de manifestações.

 

No espetáculo também tivemos espaços de puro improviso. As músicas ficaram mais elásticas do que no disco. E aí entrou o pessoal mais ligado ao jazz, os saxofonistas, o teclista, etc. Foi um misto entre as palavras de ordem e os devaneios do improviso. Resultou muito bem. Fiquei muito contente. Eles também.

O objetivo agora, da nossa parte, é pôr isso em prática ainda com mais certeza. Em termos de público, estes espetáculos andam aqui à volta do 25 de Abril. Aliás, o espetáculo de Setúbal tem exatamente a ver com as comemorações. Estava agendado para dia 23 e foi reagendado para dia 21 devido às restrições. No dia 24 também não se podem fazer espetáculos à noite, só até à uma da tarde. A programação do 25 de Abril teve de ser toda alterada.

É um concerto que anda ali à volta de uma data especial que deve ser recordada e apresentada aos mais novos, àqueles que não a conheceram. Acho que o concerto da Luta Livre vai ser bom nesse sentido. O assunto é esse. Ao falarmos dos direitos, da democracia, vamos ao encontro do espírito do 25 de Abril. Estou à espera que o pessoal apareça com essa motivação para colaborar.

Uma última questão. É necessário dar mais palco à música portuguesa, nas rádios, nos festivais?

Acho que há sempre espaço de manobra se houver vontade por parte dos programadores, de rádio, dos festivais, etc.

Mas achas que ainda é subestimada a música portuguesa, como se não tivesse pedigree suficiente para estar presente em determinados espaços?

Sim. Uma parte do público está educado dessa forma, cresceram com isso. Falo com pessoas mais novas que não têm qualquer referência de música portuguesa porque cresceram num tempo em que ela passa muito pouco na rádio. É normal não terem esse contacto.

Quando era mais novo, só passava música portuguesa na rádio. Primeiro as canções ligeiras, o nacional-cançonetismo, ainda antes do 25 de Abril, o fado, etc. Depois a música de intervenção, e também a música ligeira. Ouvia o José Cid, o Paulo de Carvalho, o Zeca Afonso, o Sérgio Godinho… Era só música portuguesa. Obviamente que, na minha fase de teenager, comecei a ter acesso aos discos da malta mais velha, de Led Zeppelin… Por sorte, também apanhei o boom do rock português. Fui comprar o primeiro disco dos Taxi no dia em que ele saiu. Rodou numa festa de garagem várias vezes dos dois lados quase a tarde inteira. Os “Cavalos de Corrida”, dos UHF, etc. Apanhei uma fase em que houve um boom da música portuguesa, do chamado rock português. Inundou a rádio. Fui bombardeado. E ouvia os Ramone, os Sex Pistols, as coisas que saíram ali no fim dos anos 70. Cresci com isso, é natural que tenha contacto com a música portuguesa.

Com malta mais nova já não é assim. Não é toda, porque existiram sempre bandas portuguesas, música portuguesa. Mas já não é assim tão geral. Há gente que cresceu só a ouvir coisas de fora. E faz-lhes confusão ouvir canções cantadas em português. Não gostam. As sonoridades têm de ser aquelas.

Acho que os programadores das rádios, dos espetáculos, dos festivais, têm um papel muito importante na promoção da música portuguesa. A música portuguesa não acaba, pode é ter momentos em que quase não existe. Se não a programarem, se não a puserem na rádio, se ela não sair de casa de quem a faz, se não existirem ouvintes, ela praticamente não existe. Já passámos vários períodos em que a situação esteve aí perto. Agora olho para as tabelas das rádios e vejo alguns nomes portugueses a aparecerem. Mas ainda estamos um bocado formatados, as rádios estão um pouco formatadas para determinado tipo de música. Só coisas que soem daquela maneira é que entram. Ainda assim, veem-se algumas coisas portuguesas. Soam daquela maneira, mas são portuguesas. São feitas cá, por portugueses.

Acho que este é um trabalho constante. E, pelo que tenho observado ao longo deste tempo, e comecei a tocar em 86, com Peste & Sida, e a fazer discos, promoção e espetáculos, parece-me que se trata sempre de algo cíclico. Há momentos de maior adesão à música portuguesa, ao falares das coisas que são nossas, das questões que te afetam, com a tua linguagem. E há outras alturas em que isso não interessa para nada. Parece que se quer sair da realidade e entrar num mundo mais brilhante, que é o das bandas que vêm de fora e trazem espetáculos “xpto”. Andamos assim, acima e abaixo, há bastante tempo. É cíclico e creio que vai ser sempre assim.

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
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