You are here
Judith Butler: a violência da negligência

Judith Butler alcançou um estatuto que poucos outros académicos vivos adquiriram: para cada trabalho seu que é publicado, são produzidas em resposta pilhas de discussão e críticas, tantas que geraram micro-disciplinas nas diversas áreas em que ela é especialista: género, política, estudos literários e muito mais. O seu argumento a favor do género como performativo, que primeiro chamou a atenção, em seu livro “Problemas de Género”, de 1990, consolidou-a como uma importante autora de teorias sobre género, antes que trabalhos subsequentes direcionassem maior foco para o exercício do poder estatal via, entre outros, retórica e violência.
Após os ataques de 11 de setembro, Butler começou a trabalhar numa série de ensaios, coletados posteriormente em “Vida Precária: Os poderes do luto e da violência” (2004), no qual ela elaborou a sua tese sobre "vidas passíveis de luto". Ela argumentou que a perda de vidas de certas comunidades – geralmente primeiro-mundista, branca, classe média, heterossexual – produz um luto nacional que é reconhecido e ampliado – em páginas de obituários, canais de notícias e memoriais de serviços públicos.
Outros, vistos como fracos ou diferentes (como pessoas com SIDA nos EUA e as baixas muçulmanas dos ataques da coligação ocidental no Iraque e Afeganistão), pelo contrário, carecem da qualidade de serem vidas enlutáveis, que é central para gerar um sentido de solidariedade com aqueles que não conhecemos. O processo, ela escreveu, trabalha para excluir certas pessoas de serem consideradas como humanas: “elas não são passíveis de luto porque, sempre, já estão perdidas ou, melhor, nunca 'foram'”.
Em fevereiro deste ano, Butler publicou “A Força da Não-Violência”, em que desenvolve o seu argumento por uma ética não-violenta para se instituírem formas de solidariedade que atravessem as linhas de diferença. Com base em Michel Foucault, Frantz Fanon e outros, ele examina a violência nas suas muitas e complexas formas, incentivando que se reconheça a insidiosidade de atos violentos além do “golpe” – aqueles que são desferidos por, por exemplo, instituições políticas, económicas ou jurídicas. Para responder-lhe, argumenta, a não-violência deve ser entendida não como passiva, mas como uma posição político-ética ativa, que se materializa através do reconhecimento da interdependência dos seres humanos em formas de protesto e atos de solidariedade, que os Estados geralmente buscam minar ao classificá-los como violentos.
Butler – que é a professora da cadeira Maxine Elliot de Literatura Comparada e Teoria Crítica da Universidade da Califórnia, Berkeley – falou ao The Nation enquanto a pandemia de Covid-19 continuava a revelar profundas desigualdades estruturais em muitos países ocidentais, colocando um foco mais acentuado nas palavras do filósofo francês Étienne Balibar, a cujo trabalho ela se refere no livro: “o nosso mundo é marcado pela… desigualdade radical das formas e experiências da própria morte”. A resposta do governo Trump aos efeitos da pandemia entre comunidades de baixo rendimento forneceu um prisma para se examinar formas de violência não-física – em particular as de negligência e discriminação – que Butler procura esclarecer.
Francis Wade: Há, como o seu livro argumenta, um claro problema com a tendência de ver a violência como um ato físico, porquanto ignora as formas mais institucionais de violência que estão ocorrendo agora nos EUA e além. O que a adoção de uma visão mais ampla nos permite compreender?
Judith Butler: Um único ato não pode representar padrões repetidos ou formas estruturais ou institucionais de violência. O golpe físico é mais gráfico e imaginável e, quando a violência assume essa forma, é mais fácil encontrar e responsabilizar a pessoa por tê-lo desferido. A responsabilização torna-se mais complexa, mas não menos urgente, quando a pessoa que dá o golpe afirma estar seguindo uma política prisional ou de polícia injusta ou agindo em nome da segurança nacional.
E é complexo de outra maneira, mas ainda não menos urgente, se populações inteiras são "deixadas para morrer", como Foucault colocou. Trabalhadores rurais amontoados em pequenos espaços habitacionais e privados de assistência médica são expostos a doenças graves e morte sob as atuais condições de pandemia. Algo bastante semelhante poderia ser dito sobre a população de Gaza, onde o confinamento é imposto pela força e onde um lento genocídio pode muito bem ter lugar.
Nesses casos, também responsabilizamos o Estado, as condições da ocupação, as instituições carcerárias, os decisores políticos e até o sistema económico que trata alguns trabalhadores como dispensáveis e substituíveis. A meu ver, é menos uma questão de quem é amigo e quem é inimigo, mas quem conta como uma vida que importa e quais são as vidas consideradas dispensáveis.
As prisões tendem a manter essas populações dentro do país, mas com um estatuto desprovido de privilégios, e nos EUA são instrumentos para conter e suprimir vidas negras e mestiças num grau desproporcional. Com os migrantes, eles devem ser mantidos fora. Mas a fronteira e os seus modos de detenção indefinida não estão completamente nem dentro nem fora. Esse tipo de limite pode ser um tipo especial de inferno.
FW: Pelo menos na superfície, a frase "deixados para morrer" parece um pouco passiva – uma forma de negligência. Membros de comunidades negras e/ou pobres nos EUA que estão morrendo a uma taxa desproporcionalmente mais alta da Covid-19 estão a enfrentar o resultado final de, entre muitas outras coisas, negligência. A negligência deve, portanto, ser lida como violência, o trabalho ativo, e não passivo, de um estado que prioriza certas vidas em detrimento de outras?
JB: À medida que a pandemia se tornou amplamente reconhecida, alguns decisores políticos, que tentam reabrir os mercados e recuperar a produtividade, procuraram recorrer à ideia de imunidade de rebanho, que presume que aqueles que são fortes o suficiente para suportar o vírus desenvolverão imunidade e constituirão, ao longo do tempo, uma população forte capaz de trabalhar. Pode-se ver como a tese de imunidade de rebanho funciona muito bem com o darwinismo social, a ideia de que as sociedades que tendem a evoluir são aquelas nas quais os mais aptos sobrevivem e os menos aptos não. Em condições de pandemia, é claro que são as minorias negras e mestiças que compõem o grupo de vulneráveis ou não destinados a sobreviver.
Alexandra Ocasio-Cortez observou que ser negro é uma “condição preexistente”. Com isso ela claramente quis dizer que os negros nos EUA estão entre aqueles que foram desproporcionalmente privados de cuidados básicos de saúde. Os idosos também pertencem a esse grupo mais vulnerável (e principalmente à comunidade negra de idosos) – assim como os pobres, os portadores de deficiência, os encarcerados, os sem-teto, os migrantes detidos, tanto quanto todos aqueles com doenças médicas preexistentes, que, na sua maioria, caem em alguma das categorias listadas anteriormente.
Poder-se-ia dizer que a imunidade do rebanho não contém em si um veredicto de morte e, no entanto, a sua implementação certamente levaria ao aumento do isolamento, desemprego e ostracismo daqueles considerados mais vulneráveis – ela também faz suposições explícitas sobre as taxas de mortalidade relacionadas às taxas de produtividade. Essas populações são consideradas como a caminho da morte de qualquer maneira, não vale a pena criar salvaguardas, e uma métrica é adotada implícita ou explicitamente que determina qual vida é valiosa e quem não é.
Qualquer política ou instituição que crie taxas de mortalidade aumentadas para um grupo está envolvida numa forma de negociação de mortes. Quando esse grupo é negro, é uma forma racista de lidar com a morte com vínculos claros com outras formas, inclusive as prisionais. Ao ser aceite a lógica da imunidade do rebanho por aqueles que desejam abrir a indústria e até as universidades, o pressuposto a seguir é que os jovens e saudáveis adoecerão e se recuperarão, aumentando o número de pessoas com anticorpos [que estarão] prontos para trabalhar. O que esse raciocínio não considera é que o trabalhador ou estudante no auge da vida, sem problemas médicos, espalhará o vírus, afetando pessoas que pertencem à classe vulnerável. O resultado é que a classe vulnerável é deixada para morrer, por uma política que decide com antecedência quais vidas são valiosas – produtivas, úteis – e quais são dispensáveis. E os mercados permanecem abertos ao adotar uma estratégia epidemiológica recusando-se a admitir o darwinismo social presente.
Esta não é uma sentença de morte explícita do tipo que os juízes decretam. Mas a morte é uma consequência conhecida e aceitável de uma política que tem como objetivo explícito a recuperação do crescimento económico e do lucro. Eu não chamaria isso de passivo. E é algo mais do que cumplicidade com a violência de outra pessoa. É, antes, um cálculo eugénico que se baseia na ideia da existência de trabalhadores dispensáveis e substituíveis para atingir seu objetivo de revitalizar uma indústria produtiva no decurso de uma pandemia. Há uma boa possibilidade de que este se normalize durante o reinício da economia.
FW: O ato de desinvestir de serviços vitais em comunidades já vulneráveis é especialmente insidioso porque começa em esferas legítimas – política, jurídica, de saúde e assim por diante. Isso torna mais difícil detetar esse atos e as forças que os reproduzem e, consequentemente, contra-atacar.
JB: Recentemente, um número crescente de artigos chamou a atenção para o racismo estrutural que tem produzido um sofrimento desproporcional nas comunidades negras dos EUA. Muitas razões são apresentadas – moradias em áreas classificadas como de risco, pobreza, acesso a cuidados de saúde, seguros e os tipos de empregos que oferecem seguro e práticas racistas em testes e comunicação. O fracasso em coletar dados raciais sobre quem foi testado dificulta a denúncia das práticas racistas nos cuidados de saúde. A formulação de racismo dada por Ruthie Gilmore ganha nova relevância: “o racismo, especificamente, é a produção e a exploração, sancionadas pelo Estado ou extra-legais, da vulnerabilidade diferenciada de certos grupos à morte prematura”.
Ela estava a pensar nas prisões, mas isto também é verdade sobre pandemias e especialmente sobre a devastadora perda de vidas negras e mestiças nas prisões. É tentador responsabilizar uma única pessoa pelo racismo, mas quando o racismo é estrutural, são sempre muitas as pessoas que estão a reproduzir as estruturas. O fracasso em passar informações sobre a doença, em testar adequadamente, especialmente em áreas onde muitos negros vivem, é uma maneira de deixar as pessoas adoecerem e de deixá-las morrer.
A falência na prestação de cuidados de saúde universais também é uma maneira de, potencialmente, sacrificar todos aqueles que não têm recursos para conseguir acesso aos cuidados de saúde. A oposição à assistência universal à saúde é um acordo tácito para deixar as pessoas morrerem e fazer distinções entre quem pode ser deixado mais facilmente para morrer do que outros. Esse cálculo é insidioso e brutal em seu racismo.
FW: O Estado está ostensivamente lá para nos proteger da violência nas suas várias formas. No entanto, em “A Força da Não-Violência”, o seu argumento é que, usando truques semânticos, ele reclassifica sua própria violência – em todas as suas formas – contra cidadãos ou não cidadãos como atos de salvaguarda e, assim, muda a narrativa violenta e, talvez, uma parte do apoio público a seu favor. Como ajuda isso o seu estatuto como o único garantidor legítimo de nossa segurança?
JB: Claro, tudo depende de que tipo de Estado estamos falando. A noção, de que uma das principais tarefas do Estado moderno é criar leis que resolvam conflitos que ocorrem em contextos pré-legais, é regularmente aceite nos entendimentos teóricos políticos liberais, que remontam pelo menos a Hobbes. Nesse modo de pensar, o Estado põe fim à violência “natural”, transformando conflitos violentos dentro do estado da natureza em processos jurídicos. Essa transição requer uma linha narrativa que vai da violência à lei, contudo, não consegue dar conta da violência da lei.
A violência estatal é muito concreta, e os regimes legais governados por objetivos racistas – incluindo leis, policiamento e encarceramento – podem e constituem formas de violência legal contra minorias. Portanto, se aqueles que são alvo de violência legal recorrem à lei para buscar alívio, eles descobrem que o acusado e o árbitro são a mesma pessoa. E essa história segue uma circularidade de pesadelo digna de Kafka.
Os truques semânticos, aos quais você se refere, aparecem na sua forma mais obscena nos julgamentos ou procedimentos em que polícias brancos nos EUA explicam por que mataram, sufocaram ou torturaram uma pessoa negra desarmada, dominada ou fugindo de costas para a polícia. Em que condições esse polícia pode alegar ter exercido legítima autodefesa? Se a polícia diz que o uso da força era legítimo (e, portanto, não violento), ela tem que narrar uma cena em que um ato flagrante de assassinato é entendido como uma precaução de segurança necessária ou um ato de legítima defesa. Essa narrativa deve ser plausível num tribunal ou perante um conselho de recurso. Isso é feito sob condições imaginárias de que a negritude é sempre interpretada como violência potencial ou iminente. Esses pressupostos racistas são profundos e facilitam a aceitação da destruição arbitrária de uma vida como justificável.
A violência que o Estado inflige contra os migrantes na fronteira ou que os estados europeus têm infligido contra os migrantes no mar – muitas vezes deixando-os morrer ao invés de permitir sua entrada no território sob o direito internacional – justifica-se alegando que os migrantes são ameaças à nação, às vezes figurados como ameaças violentas, e que negar-lhes os seus direitos e, de facto, as suas vidas, é uma questão de autodefesa nacional. Todos esses exemplos apontam para o facto de que tanto a violência quanto a autodefesa devem ser entendidas como termos legais usados em campos específicos de poder para alcançar determinados objetivos claros. Para criticar esses usos estratégicos, precisamos ser capazes não apenas de definir a violência, mas também de situar as definições que aceitamos em um campo de usos conflituantes e contraditórios.
FW: Antes que qualquer progresso possa ser feito em direção a um mundo menos violento, você argumenta, a ênfase que o pensamento liberal coloca no individualismo deve ser contestada. Como é que o seu argumento se aplica a sociedades, históricas ou contemporâneas, nas quais o individualismo liberal talvez não seja uma força tão potente quanto o comunitarismo, mas onde a violência não é menor?
JB: O livro apresenta dois argumentos relacionados, um sobre indivíduos e outro sobre grupos. Ambos os argumentos têm como objetivo destacar o problema de estabelecer limites de exclusão de individualidade. A não-violência requer o entendimento de uma versão relacional da individualidade, que busca sustentar os laços sociais além dos limites comunitários e nacionais. A crítica do individualismo re-liga-se com as críticas feministas ao individualismo liberal, sustentando que formas não reconhecidas como verdadeiras de dependência provam ser componentes essenciais das normas masculinas de autossuficiência. A não-violência exige entendermos as relações com os outros como constituintes de quem somos.
O individualismo é baseado na negação dessa “relacionalidade”. Se impusermos limites regionais, nacionais, religiosos, raciais e de género às relações pelas quais somos definidos, aderiremos a identificações de grupo que reproduzem a lógica de exclusão à qual a não-violência se opõe. Tem que ser para com o estrangeiro – aquele que eu nunca conheci, aquele que mora a uma grande distância de onde eu moro, que fala outra língua que eu não conheço – que eu tenho uma obrigação ética. Uma compreensão da interdependência global, manifestada agora de formas agudas no mundo pandémico, traz à tona esse tipo de obrigação global. Na minha opinião, uma ética e uma política de não-violência devem ter caráter global, reformulando a fronteira como um local de relacionalidade controversa, mas crucial.
FW: Mas, mesmo em muitas democracias avançadas, essa ideia de um eu como fundamental para o bem de um todo tem pouco peso. Portanto, se a maioria das sociedades, se não todas, já está de alguma forma condicionada contra essa noção de interdependência, o que seria necessário para esse tipo de ética se estabelecer?
JB: É claro que as versões altamente limitadas e exclusoras do individualismo pertencem principalmente às partes do Ocidente em que os mercados são apoiados por preceitos liberais. Mas algo semelhante certamente acontece com grupos que podem depender tanto do individualismo quanto de formas de identidade de grupo que são internamente relacionais. Por outras palavras, um grupo pode muito bem conceber-se como interdependente, mas [limita] o escopo dessa interdependência. Certamente, em muitas religiões, podemos encontrar versões espirituais de interdependência. Essa respiração é minha, mas também não é só minha, sempre puxando o ar, cheio de exalações de outros ausentes e desconhecidos. O vírus torna evidente essa verdade de uma maneira potencialmente assustadora, mas é importante lembrar que é um inter-relacionamento que conecta nossos “eus” delimitados e prova que eles são menos delimitados do que nós, formados no individualismo, podemos acreditar. A vida excede a pessoa em formas de interdependência que todos devemos aprender a sustentar, embora essa condição possa parecer ameaçadora no momento.
Também estou atenta, nesse momento, a muitas das comunidades indígenas que correm risco de destruição na Amazónia brasileira. A relação com a terra, com os ancestrais, com os outros, com o mundo faz referência a um eu demarcado e isso certamente parece uma imposição ocidental paradigmática. De fato, a prática do desmatamento é um ataque à comunidade, não apenas porque ela precisa que as florestas vivam, mas também porque a floresta pertence a um sentido alargado de identidade e pertença. Seria importante entender a distribuição de alimentos, o desmatamento e os cuidados com a saúde, não apenas à luz da ideia de interdependência global, mas também em relação aos direitos dos migrantes de atravessar fronteiras e pedir asilo ou residência. Na maioria das vezes, temos boas razões para entender a dependência como uma condição de exploração, mas, quando reformulada como interdependência, pode se tornar uma ética e uma política globais comprometidas com a igualdade social.
Entrevista de Francis Wade, publicada originalmente no The Nation, traduzido para a Carta Maior por César Locatelli. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.
Add new comment