Depois de As Benevolentes (2006), Jonathan Littell lançou Uma História Antiga (2019). Ao trazer este romance ao público, o autor já trazia na mão o Goncourt e o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa. Entre um e outro livro, escreveu ensaios, fez um documentário e reportagens.
Depois do estrilho que deu o romance de quase 900 páginas, e do louvor da crítica, os olhos do público caíram como balas no autor. Este Uma História Antiga foi, por isso, aguardado com muita expectativa.
Em defesa do autor, seria sempre uma tarefa árdua, depois do monumental As Benevolentes, impressionar o público, ou até manter o nível. Por isso, que este romance não corresponda às expectativas acaba por ser, afinal, a correspondência às expectativas. Ninguém podia esperar que Littell escrevesse uma obra de envergadura semelhante à anterior, mas qualquer leitor assíduo sente a traição de o ter visto descer de forma tão vertiginosa.
Estes sete capítulos ficam em tudo aquém de um autor desta envergadura. Não apenas por uma narrativa que não impõe grande desafio ao nível técnico, mas também por um tema que, tentando ir ao osso do choque, não sendo acompanhado por mais, se torna monótono, desajustado, mastigado.
À primeira vista, é possível que a ideia do romance pareça ambiciosa, mas os intentos falham. A estranheza e o incómodo como estratégia narrativa são uma fórmula não apenas ultrapassada mas também pouco ambiciosa. Para mais, as hipóteses humanas do sexo, que a pornografia e a Internet já cobriram, ali cruamente expostas, deixam à vista a maior falha do romance: a ausência do propósito – até interno, até da narrativa – da violência. Ou seja, neste romance, os seres humanos são reduzidos a impulsos e a tiradas de crueldade – e de asco – que não cumprem grande função na narrativa para além de desgostar o leitor. Estas tiradas já desempenhavam um papel de relevo, tanto ao nível do papel na narrativa como ao nível do tempo de leitura que ocupavam, em As Benevolentes, mas aí havia um propósito, um papel, um contexto que servia para mostrar a Humanidade no seu bruto horror possível.
A tríade sexo, dominação e poder perpassa os sete capítulos, que correspondem a variações do mesmo assunto. Um homem vive o mesmo dia repetidamente ao longo da obra, encontrando as mesmas pessoas, embora tanto ele como elas estejam diferentes e, de vez a vez, se suba um degrau na violência. Contudo, a repetição só atola a narrativa: haverá um intuito de aumentar o grau de transgressão que podia funcionar como motivação para que a leitura prosseguisse, mas que aborrece. O regresso ao mesmo dia e a abordagem da mesma cena repetidas vezes ao longo da escrita transformam a leitura num acto quase onírico, já que o leitor se mete numa acção viciada, seguindo os passos de um homem de quotidiano perturbado. E que homem será? Não se entende. O exercício de escrita passa pela desconstrução das personagens, pelo esvaziamento da dimensão psicológica e emocional individual.
Serão as trivialidades vistas a partir da ideia de transgressão: o sexo é duro, a dominação é evidente, ninguém lê nada daquilo sem um baque, ou mesmo sem um esgar de horror ou asco. Já é uma estratégia conhecida de Littel, mas este romance peca por ter pouco mais do que isso, por isto não agir como uma animalidade que viabiliza as acções humanas, antes por reduzir a humanidade a impulsos e a uma vontade recalcada, agora cumprida, de chegada aos limites per se.
Littell atira ao leitor frases longas, parágrafos intermináveis e uma dose de violência que não permite a algum incauto leitor o marasmo da indiferença. O grau de submissão dos parceiros sexuais só se justifica por se aceitar que a violência é o palco primordial da acção. A linguagem, directa ao osso da acção, precisa, pornográfica, contrasta com a frieza do cenário. As cenas de sexo violento, de dominação, também cruas, deixam também crua a relação entre o livro e o leitor.
Há uma carga obsessiva que impulsiona a leitura, mas a pressa de ler esbarra na ideia de repetição e na alternância que nem chega a alternar, e isto apesar de o homem que parte do início da narrativa se ver metido em situações em que, afinal, pouco se repete. Neste contexto, o corpo humano aparece como propulsor, alvo e metamorfose do horror. A sujeição ao outro, apresentada como transversal, chega a permitir a leitura em total relação de alteridade, ao mesmo tempo que uma ideia ténue de sujeição ao outro.
Um leitor pegará em Uma História Antiga lendo o que está fora de si, e levando o banho da perversão escancarada, tentando entender de que forma Littell tentou encontrar a ligação entre obra e receptor, mas provavelmente conseguirá apenas entender-se enquanto voyeur. A relação de alteridade não transforma, não cria o lugar do outro, não teletransporta, não funda.
A escrita obsessiva impulsiona uma leitura obsessiva. A alucinação gera alucinações, mergulha-se à voyeur enquanto se quer chegar ao fim, tal é a tontura da voragem. Por isso, mais do que o sexo, a submissão e o poder, talvez o poder principal deste romance seja a sua capacidade de transformar um leitor num curioso inglório que cavalga pelo asco em acções concomitante: matar a curiosidade e esventrar os limites. Pelo meio, haverá, pois claro, parágrafos ou páginas de altíssima qualidade literária.