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Irlanda: a recuperação é uma construção na areia

O PIB da Irlanda cresce supostamente 7,8%. Cillian Doyle explica que isso acontece “devido em grande parte ao nosso estatuto de paraíso fiscal / centro financeiro offshore” e afirma “a recuperação económica da Irlanda é uma construção na areia”
Não à austeridade, manifestação em Dublin - Foto de William Murphy / flickr
Não à austeridade, manifestação em Dublin - Foto de William Murphy / flickr

As últimas estatísticas nacionais de crescimento da Irlanda apontam que, apesar de todas as aparências, o “rapaz exemplar” da austeridade europeia é a economia que cresce mais rapidamente na zona euro. Com um PIB que cresce supostamente 7,8%, estamos mesmo a superar gigantes globais como a Índia e a China.

A CNN afirmou uma vez mais que “A Irlanda está no auge". Sim, aí está: a palavra temida. Não é que uma viragem positiva na atividade económica seja algo desagradável; é que num contexto como o irlandês, devido em grande parte à débil natureza do capitalismo autóctone irlandês, a palavra "auge" é geralmente sinónimo de bolha, e pode acontecer que se esteja a criar outra bolha, mas veremos a seguir.

Por agora, vamos concentrar-nos na questão de onde vem este aparentemente sólido crescimento. É verdade que tem havido uma ligeira recuperação na atividade económica com o crescimento em coisas como o consumo pessoal e a construção, mas isso não consegue justificar o atual crescimento do PIB, que sugere que a Irlanda transborda de atividade económica.

Como pode ser isso? Bem, a razão é que a recuperação económica da Irlanda é uma construção na areia - e algumas estatísticas são altamente suspeitas.

A "grande recuperação"; esperança versus propaganda

As notas finais da reportagem da CNN aludem à verdadeira razão dos nossos atraentes números de crescimento, literalmente, “a Irlanda é amplamente conhecida como um paraíso fiscal”. Sim, devido em grande parte ao nosso estatuto de paraíso fiscal / centro financeiro offshore, os nossos números principais são tão altos como o penteado de Donald Trump.

O PIB não é, normalmente, uma grande medida de bem-estar, sendo incapaz de refletir coisas como a desigualdade económica, mas na Irlanda é realmente inútil. A transferência de lucros do setor multinacional converteu-nos num caso perdido quando se trata de estatísticas.

Se tivéssemos a sorte de ter meios de comunicação que fizessem análise e investigação assiná-lo-iam repetidamente. Em vez disso, temos o Irish Independent e outros semelhantes que mais não fazem que louvar esta falsa recuperação e reproduzir citações do IBEC, o nosso grande grupo de pressão empresarial, no sentido de que este novo boom “está a chegar a todos os cantos do país”.

Neste momento temos duas narrativas económicas rivais que competem pela supremacia. A primeira delas, que se pode considerar a versão do regime, conta a história de uma grande recuperação e é expressa regularmente pelas cabeças falantes dos nossos meios de comunicação. A segunda, que é a das dificuldades reais, tem que fazer grandes esforços para passar a mensagem.

No entanto, existem uma série de indivíduos / instituições que são os cavalos de Troia na luta contra a análise frequentemente superficial e repetitiva que emana de cima. Entre eles, incluem-se Michael Taft da central sindical Unite, o Instituto de Investigação Económica Nevin , o professor do Trinity College Jim Stewart e o do University College de Dublin, Dr. Conor McCabe. O trabalho deles é leitura obrigatória para aqueles que procuram ter uma imagem precisa da nossa situação económica atual.

Três gráficos que acabam com a "grande recuperação”

O gráfico seguinte de Conor McCabe mostra o valor bruto do crédito concedido às famílias e às empresas não financeiras na Irlanda, de 2003 até hoje. Por outras palavras, isto é uma forma de medir o aumento / diminuição do montante total dos empréstimos bancários concedidos a estes aglomerados no período do tigre celta e as suas consequências. Naturalmente, podemos ver os elevados níveis de crédito no período anterior a 2008, em que o endividamento andou a par com o auge da construção.

Mas se olharmos para os níveis de crédito atuais podemos ver que estão no fundo e, no entanto, desafiando toda a racionalidade económica, estamos a registar níveis massivos de crescimento. Conor explica isto muito bem quando afirma, "o crédito é o combustível do motor. O que temos aqui é um país que diz poder percorrer 50.000 milhas com um só depósito de gasolina. Isto não é um milagre económico; é uma tolice”.

Crédito concedido às famílias e empresas não financeiras irlandesas 2003-16

Gráfico 1. Banco Central da Irlanda

Pelo que podemos ver do gráfico anterior, o nosso crescimento não está a ser impulsionado pelo crédito, então o que o está a impulsionar? Isso leva-nos ao gráfico seguinte. O total de investimento em ativos fixos, ou FAI, é uma medida do investimento de capital em coisas como maquinaria, infraestrutura, terrenos, tecnologia, etc. Afinal, há que produzir 'coisas' se se quer construir a economia.

Gráfico 2. Eurostat

A produção inclui-se na rubrica “Total de construção” para dar uma ideia do impacto que uma diminuição de um setor importante pôde ter numa economia como a nossa, no período pós 2008. Os Produtos de Propriedade Intelectual (PPI, IPP em inglês), resultantes do investimento em coisas como patentes, marcas, desenho industrial e direitos de autor, são incluídos para destacar o que é sem dúvida o verdadeiro motor do nosso crescimento económico atual.

Reparem com atenção nos valores destes 'produtos de propriedade intelectual'. Não há nada estranho? Vemos picos (T2 2012; T2 e T3 2015) que parecem multiplicar-se por dois no espaço de poucas semanas e depois desaparecem. Há claramente algo raro aqui, e esse algo são as patentes. Como as multinacionais começam a transferir parte da sua propriedade intelectual dos "maus paraísos fiscais” (Bermudas, Ilhas Caimão, etc) para os "bons paraísos fiscais” (Irlanda, Luxemburgo, etc.) os nossos números de crescimento recebem uma injeção maciça de anabolizantes.

O nosso último gráfico mostra o crescimento nominal do PIB irlandês, juntamente com o crescimento do PIB menos o componente PPI. Ao fazê-lo, o nosso suposto crescimento de 7,8% desaparece por encanto como se se tratasse de uma atuação do falecido ilusionista Paul Daniels. Onde está a recuperação?

Gráfico 3. Eurostat

Como vimos acima, a parte de leão deste crescimento é ilusória. Quantas pessoas são precisas para gerir a deslocalização de uma patente para a Irlanda? Só um punhado de pessoas, normalmente membros de empresas habituais como Goldman Sachs, Arthur Cox, KPMG, etc, aquilo a que a Rede de Justiça Fiscal chama máfia engravatada. E ainda que tudo isto possa ser estupendo para os altos cargos do Centro de Serviços Financeiros Irlandês (IFSC), para os restantes mortais o efeito é muito insignificante.

Voltar à economia da bolha?

Patrick Honohan, ex-governador do Banco Central da Irlanda, antes de cessar funções advertiu que os nossos números de crescimento eram “muito complicados” pela “distorção” dos gráficos, que é o que, em grande parte, vimos acima.

O grande boom que a CNN noticiou é na realidade apenas uma bolha fiscal do imposto sobre as empresas impulsionado pelas multinacionais para deslocalizar as patentes e outros tipos de propriedade intelectual para a Irlanda e, assim, fugir aos impostos. Com isto dificilmente se podem lançar as bases para uma recuperação nacional a longo prazo.

Está a Irlanda condenada a ir de crise em crise, aos tropeções de um boom impulsionado pelas isenções fiscais? De um boom para uma crise comercial, de um boom imobiliário para outra crise? Devido ao projeto BEPS da OCDE, a introdução dos relatórios país a país, e a crescente pressão para padronizar os impostos sobre as empresas, qualquer coisa poderá impulsionar esta nova bolha.

Tendo em conta que é tempo de Páscoa, os partidos do sistema, que tanto se vangloriam das suas credenciais cristãs, fariam bem em procurar nos seus livros sagrados alguma orientação. Em Mateus 7: 24-27 lemos a história de um homem prudente que construiu a sua casa sobre pedra ao contrário do homem insensato que edificou a sua casa sobre areia; "E caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos com força contra aquela casa... e ela desabou”.

Artigo de Cillian Doyle, economista e ativista da aliança People Before Profit da Irlanda, publicado em Counter Punch a 7 de abril de 2016. Tradução para espanhol de G. Buster para Sin Permiso e para português por Carlos Santos para esquerda.net

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