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A impreparação da Justiça para lidar com a violência doméstica

O Observatório Permanente da Justiça (OPJ) realizou um estudo onde revela que a insensibilidade, o preconceito e o sexismo estão na base de muitas decisões judiciais relacionadas com crimes de violência doméstica.
O “sexismo jurídico constitucional” atenua as necessidades de prevenção, dado que terá sido perante uma situação desrespeitosa da ofendida para como o arguido que o mesmo praticou os factos, refere o OPJ
"O 'sexismo jurídico constitucional' atenua as necessidades de prevenção, dado que terá sido perante uma situação desrespeitosa da ofendida para como o arguido que o mesmo praticou os factos", refere o OPJ

Este trabalho intitulado “Estudo Avaliativo das decisões judiciais em matéria de violência doméstica” analisou um conjunto de várias sentenças no âmbito da violência doméstica tendo-se também alicerçado em várias entrevistas feitas a magistrados judiciais e do Ministério Público que assumiram não só as "fragilidades" do sistema como também a "sua impreparação para tratar muitos destes casos".

Segundo o relato de um juiz citado pelo “Diário de Notícias” este é o "tipo de crime mais complicado de julgar porquanto na maioria das vezes ele ocorre apenas com duas pessoas com protagonistas havendo algumas situações em que os filhos são testemunhas do mesmo".

Esta circunstância leva a que todo o processo judicial esteja centrado nas declarações prestadas pela vítima, na fase de inquérito e também no julgamento, refere o OPJ.

Por essa razão, o estudo considera que “a vítima não pode ser processualmente responsabilizada por ter de acautelar a prova da própria vitimização” adiantando ainda que “o sistema deve conjugar o máximo de esforços para recolher provas noutras direções”.

A análise agora tornada pública revela porém que a “quase totalidade das decisões é fundamentada nas declarações das vítimas” o que levanta outro tipo de problemas como “fala ou não fala, como e quando deve falar?”

A investigação levada a cabo pelo OPJ demonstra igualmente que existe alguma “insensibilidade” do sistema judicial no que se refere ao acolhimento da vítima, uma vez que "esta é primeiramente ouvida pela polícia mas que, para efeitos de validade processual, é obrigada a repetir aquilo que disse perante um juiz”.

O jornal relata o testemunho de uma vítima que se sentiu constrangida quando para expor a sua situação se viu obrigada a fazê-lo “sentada num gabinete” onde estavam várias pessoas que “iam ouvir a sua história”.

A insensibilidade judicial é ainda referida através de outros exemplos como o caso de outra vítima que apresentou queixa devido aos maus tratos do marido. Este foi foi chamado a prestar declarações e sentindo-se indignado pelo facto de estar ali como suspeito disse perante a procuradora: “então essa filha da puta veio participar de mim? Agora, quando chegar a casa, vou fodê-la, agora é que vai participar de mim, mas com razão. Esta noite ela vai dormir debaixo da ponte”.

"Apostar na formação multidisciplinar"

Estas declarações foram vertidas para um auto mas o Observatório questiona “por que razão a possibilidade de detenção do indivíduo não foi colocada?” e “se a sua reação à queixa não indiciava fortemente continuação de atividade criminosa?”

O estudo alude ainda a outro caso relacionado com uma vítima a quem um funcionário judicial perguntou de forma insistente se não queria desistir do processo argumentado que “agora até já tem namorado”.

Entre as conclusões, há um conjunto de recomendação destacando-se, entre estas, a aposta cada vez maior na formação multidisciplinar dos magistrados judiciais e do Ministério Público, uma vez que para a análise da prova há vários fatores a ter em conta, nomeadamente “os valores culturais dos magistrados, a forma como veem as relações sociais e a formação que lhe é ministrada durante a sua aprendizagem profissional”.

É referido outro caso relacionado com uma vítima a quem um funcionário judicial perguntou de forma insistente se não queria desistir do processo argumentado que “agora até já tem namorado"

Por outro lado é ainda realçada a necessidade de realizar campanhas de sensibilização para a violência doméstica e uma mudança na forma como os tribunais comunicam com os cidadãos para que se deixe de tratar tudo da mesma forma, sem a perceção de que as matérias são diferentes.

O Observatório Permanente da Justiça fala ainda da “psiquiatrização do arguido”, a partir da análise de um conjunto de sentenças que por norma referem razões de "saúde mental" como justificação para os casos relacionados com este tipo de crimes.

Este aspecto conjuga-se ainda, segundo o OPJ, com o que qualifica como “sexismo jurídico constitucional” que “atenua as necessidades de prevenção, dado que terá sido perante uma situação desrespeitosa da ofendida para como o arguido que o mesmo praticou os factos".

A condição social dos arguidos também influi em todo o processo uma vez que se este pertencer a uma classe social elevada, a probabilidade de vir a ter uma “condenação severa ou, durante o inquérito, uma medida de coação”, são muito reduzidas.

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