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Ilan Pappé: "precisamos de descolonização, como aconteceu no apartheid em África"

Entrevista a Ilan Pappé, historiador, sobre a situação em Israel e a Palestina, o papel colonizador do primeiro, a história dos dois países e o papel da comunidade internacional. Por Ana Bárbara Pedrosa
Entrevista feita no ISCTE, Lisboa, no dia 9 de Maio de 2018.
Entrevista feita no ISCTE, Lisboa, no dia 9 de Maio de 2018.

Ilan Pappé, historiador israelita e professor de História na Universidade de Exeter, no Reino Unido, fala ao Esquerda.net sobre a colonização israelita e o papel da comunidade internacional.

A entrevista foi realizada no dia 9 de Maio, no ISCTE-UNL.
 

Obrigada pela entrevista. Gostaríamos de começar com o assunto dos acordos de Oslo. Desde 1995, começámos a ouvir falar sobre a solução dos dois Estados. 23 anos depois, parece mais difícil termos um estado palestiniano sustentável. Que pensa disto?

Acho que nunca houve uma boa chance para a solução dos dois Estados, porque o que realmente importa na Palestina é o equilíbrio de poderes. Israel é a parte forte e os palestinianos a parte fraca. Só podíamos ter a solução dos dois Estados se o lado forte, Israel, acreditasse mesmo nisso.

Acho que os governos israelitas, sejam de esquerda ou de direita, sempre pensaram na solução dos dois Estados como uma forma alternativa de como controlar a Palestina sem necessariamente ocuparem o país todo. Não foi um desejo genuíno de permitir aos palestinianos terem total soberania, real independência, mas fazer mais ou menos o que o apartheid da África do Sul fez com alguns africanos, quando lhes permitiu criar bantustões, pequenas monarquias, que eram controladas pela África do Sul, que pareciam independentes mas não o eram mesmo.

O melhor que Israel pode oferecer aos palestinianos é autonomia, e isto é um mínimo que nem os palestinianos mais moderados, flexíveis, poderiam aceitar. É por isso que não acho que alguma vez tenha havido hipótese de uma solução de dois Estados.

Também acho que o problema na Palestina não é um assunto de fronteiras, nessa forma política de divisão de poderes. O problema da Palestina, e em Israel, nos últimos cem anos, é o mesmo de agora: o movimento de colonizadores israelitas que vieram no final do século XIX para a Palestina, tratando a Palestina como a sua casa e tratando os palestinianos como aliens, como pessoas que são uma ameaça.

A própria existência é uma ameaça ao seu projecto de criar um Estado. Com esta ideologia, a solução dos dois Estados não pode resolver os problemas que a ideologia cria, que desumaniza os nativos palestinianos e não lhes permite uma existência normal. E acho que desperdiçámos… dizes 23 anos, eu acho que começou mais cedo, acho que desperdiçámos 50 anos a falar de uma solução que não é relevante em vez de falarmos de descolonização, que é aquilo de que precisamos, como aconteceu no apartheid em África.

Precisamos de que os judeus em Israel tenham uma atitude moral e psicológica diferente em relação aos palestinianos, que os vejam como humanos, depois como nativos, depois como vítimas. Talvez aí possamos começar um processo de paz. Antes disso, a solução dos dois Estados está morta.

 

Quem defende a solução de um Estado, tanto em Israel como na Palestina?

Acho que é uma questão geracional. Acho que a maior parte dos jovens palestinianos apoia esta solução. Acho que as gerações mais velhas, especialmente os que vivem agora na Cisjordânia, talvez até em Gaza, talvez esperem ainda que a solução dos dois estados possa terminar a ocupação israelita. E há uma espécie de debate na sociedade palestiniana.

A sociedade judaica não aceita a solução dos dois Estados, não aceita a solução de um Estado. A sociedade israelita judaica quer manter o status quo. Por isso, não temos aliados na comunidade israelita judaica para esta ideia, mas não tínhamos muitos aliados para a lutra contra o apartheid entre a comunidade branca na África do Sul.

Acho que, para entendermos quantos israelitas estariam dispostos a apoiar a solução dos dois Estados, precisamos primeiro de que seja uma posição palestiniana oficial. Até aí, não há razão para que Israel ou a comunidade internacional levem a sério a ideia de um Estado democrático.

 

Pode falar-nos um pouco sobre a One Democratic State Campaign, o projecto e a estratégia para o pôr em prática?

A iniciativa por um Estado democrático, que começou este Abril, é uma tentativa de juntar todos os grupos, movimentos e indivíduos que acreditam nesta ideia. Têm ideias diferentes sobre como chegar lá e até há discussões ideológicas sobre como o Estado seria.

Por exemplo, há pessoas próximas dos movimentos islâmicos que não gostam da ideia de um Estado secular. Há pessoas que vêm do Estado israelita que ainda querem falar do Estado binacional, esperando que restasse algo da solução de um Estado. Agora estamos a tentar juntar estes movimentos e a ver como podemos fazer uma campanha comum.

E depois a campanha é direccionada para o povo palestiniano e os seus representantes. Queremos convencer os palestinianos a adoptarem isto como posição oficial. Até isso continuar, permanecerá um discurso, uma boa ideia, mas não criará uma nova realidade.

 

Com a solução de um Estado, os judeus serão a minoria, o que contradiz o projecto sionista. Qual é a principal reacção sobre isso em Israel?

Tens razão. Os judeus já perderam a maioria entre o rio Jordão e o mediterrâneo, ou na Palestina. Os judeus não são a maioria. Por isso, agora já temos um Estado israelita sem maioria. O que temos é um Estado israelita com todo controlo.

Por isso, é um assunto de controlo, não de maioria ou minoria. É sobre se se partilha o poder, se o poder está ligado à identidade ou à qualificação. Como qualquer grupo no mundo que tem privilégios e direitos especiais, os israelitas judeus não gostam da ideia de desistir destes direitos. Também há manipulação em Israel para se fazer temer árabes, palestinianos, muçulmanos.

O projecto de criar realidades diferentes também é educacional, não apenas político. Vai ser preciso muito tempo para convencer os judeus israelitas de que teriam uma melhor vida dentro de um Estado democrático em vez do Estado de apartheid que temos agora. Mas temos de aprender com a História.

Foi muito difícil convencer os brancos na África do Sul a desistirem do apartheid. Foi preciso sancioná-los, vencê-los com o movimento de libertação do CNA, e mesmo aí a vasta maioria de brancos ainda acreditava no apartheid, mesmo quando caiu.

Não estou surpreendido por ver que os israelitas não apoiam esta ideia. A questão é: irão entender, podemos explicar-lhes o preço que pagarão se isto continuar assim?

E há o movimento BDS (boicote, desinvestimento e sanções), que lhes manda uma mensagem muito clara de que a ideologia e as políticas não são aceitáveis, há a resistência palestiniana, que continua, e, apesar do facto de que os muitos regimes árabes parecem não querer saber dos palestinianos, isso não reflecte o que muita gente no mundo árabe acha.

Por isso, com democratização no mundo árabe, que não acontecerá em breve… Mas se a democratização se tornar um processo, como em 2011, acho que Israel vai encarar um mundo árabe muito mais hostil às suas políticas e ideologia.

 

Falou do mundo árabe, mas parece-me que a comunidade internacional não dá grande atenção ao que se passa, já que Israel viola frequentemente a lei internacional e não há uma abordagem severa sobre isto. Que papel acha que deve ter e porque é que o processo de colonização não a faz agir?

Há razões diferentes pelas quais diferentes partes do mundo continuam a legitimar Israel. Se analisares a posição americana, tem muito que ver com o lóbi israelita, com o lóbi cristão sionista, e os interesses estratégicos de certos grupos da sociedade americana.

No que toca à Europa, é um pouco mais complexo, tem que ver com Holocausto, com anti-semitismo, com islamofobia, por isso há outras razões, mas tens razão, o ponto principal é que as elites políticas não querem desafiar Israel. Mas acho que não é assim sobre as sociedades. Há algo não democrático aqui.

As visões das elites políticas e as políticas e atitudes sobre a Palestina não reflectem o que a maior parte das pessoas nas suas sociedades quer que seja feito sobre a Palestina. As nossas elites políticas no Ocidente não representam muito do que queremos na vida, economicamente, socialmente, mas também moralmente, nas relações internacionais.

Muitas das pessoas do Reino Unido não quereriam ver o governo a vender armas à Arábia Saudita para matar crianças no Iémen. Não importa. O Reino Unido continuará a dar armas ao governo saudita para matar pessoas no Iémen. Temos um problema de democracia no Ocidente, e a Palestina é apenas um de muitos assuntos que não são representados pela elite política. Espero que, com mais democratização do Ocidente, tal como no mundo árabe, o assunto da Palestina se torne mais importante para as elites políticas e que comecem a desafiar Israel.

 

É bom que o mencione, porque estive na Palestina em Janeiro e, principalmente em Jerusalém, vi muros, graffiti e camionetas com a mensagem “Thank you, Trump”. Acha que é uma posição principalmente governamental – ou da elite israelita – ou é uma posição popular entre os israelitas?

Acho que os judeus israelitas apoiam muito o Trump. Acham que é um apoiante genuíno, acham que irá protegê-los da deslegitimação, que a América vai ajudá-los contra o Irão ou contra outra ameaça, por isso o Trump é muito popular em Israel.

O problema com os israelitas é que quando vão para os EUA e quando vão para os campi, começam a ver os ativistas BDS entre os muitos judeus. Ou seja, de um lado, há a posição do Trump, muito claro, um claro apoiante de Israel; do outro, temos a sociedade civil nos EUA, que, comparada com o que era há 20 anos, é muito pro-palestiniana. É aí que voltámos ao que já disse.

Quando dizemos “a posição americana”, estamos a falar da posição da sociedade ou da posição do presidente? O lóbi israelita conseguiu, em menos de 70 anos nos EUA, que os políticos, independentemente da opinião pública, continuassem a apoiar Israel incondicionalmente. Não tenho a certeza se ainda estão a ter sucesso.

Apesar de termos o Trump, temos de nos lembrar de uma das pessoas que podia ter-se candidatado contra ele, Bernie Sanders, se Hillary Clinton não tivesse ganho as eleições contra ele. Bernie Sanders tinha um plano bem diferente para a Palestina. A mesma coisa no Reino Unido. Jeremy Corbyn tinha um plano bem diferente. Por isso, começamos a ver politicos poderosos com um compromisso muito forte com a Palestina que ainda nao estão no poder, mas que nao estão longe disso. Talvez este seja um bom sinal para o futuro.

 

Quais são as principais mudanças que Trump trouxe?

Há que dizer que as suas políticas não são muito diferentes das dos antecessores. Os EUA nunca tiveram outra posição sobre a Palestina. Ele só é mais honesto. Não joga jogos duplos.

A coisa mais importante que poderia fazer seria acabar com o envolvimento americano no processo de paz, o que é bom, acho que é uma coisa boa. Acho que ele acordaria os palestinianos que acreditam que os EUA vão providenciar uma solução baseada nos dois Estados.

Acho que os palestinianos estão a acordar e a perceber que não podem confiar nos EUA. Que os EUA nunca conseguiriam providenciar qualquer tipo de assistência no sentido de terminar a opressão israelita. O que farão com esta conclusão não sei, mas acho que o Trump, em muitas formas, terminou o Pax Americana.

O perigo é tê-lo em Jerusalém, que é muito simbólico no mundo muçulmano, não apenas no mundo árabe. Não podemos prever, e não vou fazê-lo, porque não sei, mas isto poderá que, após o 15 de maio, as decisões não serão sempre racionais. E as coisas podem mesmo piorar até um cenário muito desagradável.

 

 

Também sabemos que é muito crítico da academia israelita como uma forma oficial de fazer propaganda ao governo israelita. Pode falar-nos um pouco sobre isso?

Acho que Israel finge ser a única democracia no Médio Oriente e isso devia ser testado por dois grupos muito importantes que nos dizem se a sociedade é realmente aberta ou não. Os seus dois cães de guarda são os media e a academia.

E os dois grupos - os media israelitas e a academia - são vistos no Ocidente como democráticos, como parte do mundo civilizado, mas se analisarmos o seu comportamento vemos que são totalmente leais à ideologia sionista e nunca questionam os fundamentos dessa ideologia, sendo cúmplices dos crimes do Estado de Israel contra os palestinianos.

É um assunto importante porque, se estiver certo, e se não pudermos confiar na academia e nos media para desafiar a ideologia que criou a nakba e o sofrimento palestiniano desde 1948, se estiver certo, também estou certo de que o modelo de que precisamos para Israel não é o processo de paz mas o modelo da África do Sul. precisamos do modelo de sanções e do modelo de descolonização.

Acho que é importante olhar para o que a academia israelita faz e de expor a sua tentativa de ser democrático e sionista ao mesmo tempo, o que não é possível.

 

Para terminar, talvez pudesse falar-nos do papel da comunidade internacional neste preciso momento, com os últimos acontecimentos – por exemplo, em relação a Gaza, que pôs novamente Israel e a Palestina nas notícias, algumas críticas à ONU…

As pessoas importantes na comunidade intencional deviam entender que não temos um problema em Israel e na Palestina, temos um problema no mundo árabe em termos de direitos humanos e civis. Temos regimes que violam estes direitos, temos oposição que viola estes direitos. Isto trouxe consequências horríveis desde a invasão americana ao Iraque.

Para sair desta situação, precisamos de comprometimento internacional. O mundo árabe sozinho não conseguirá pará-lo. Para que a intervenção internacional seja eficiente, não pode tratar Israel como um caso excepcional. Se estamos preocupados com os abusos aos direitos humanos de Bashar al-Assad, temos de nos preocupar, ao mesmo nível, com os abusos de Israel aos direitos humanos em Gaza.

Era isso que queria que a comunidade internacional fizesse, que incluísse Israel na discussão geral sobre direitos humanos e civis. Se não o fizerem, a) os palestinianos continuarão a sofrer b) a comunidade internacional verá que será muito difícil terminar esta situação horrível que também causa o problema dos refugiados e os movimentos para a Europa. Há muitos efeitos que poderiam ser evitados se discutíssemos decentemente o assunto.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
Termos relacionados Massacre na Palestina, Internacional
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