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Há milhões para tudo, menos para trabalhadores nos museus ou cineteatros

As estruturas culturais - dos cineteatros aos museus nacionais - são intensivos em capital humano. Exigem equipas com diferentes valências, especializações e tempo, muito tempo, estabilidade e previsibilidade para trabalharem em conjunto e desenvolverem os projetos e as instituições em que estão envolvidos.
As injeções cíclicas de fundos europeus nas infraestruturas culturais foram essenciais para modernizar o setor mas, pela sua natureza, não financiam a contratação de trabalhadores a médio ou longo prazo. Isso é uma função dos orçamentos nacionais porque são responsabilidades a longo prazo. E são responsabilidades que o Estado português, através de sucessivos governos, recusa assumir desde o virar do século.
O resultado foi transformar as políticas públicas de cultura em eventos de betão. Da recuperação dos cineteatros nos anos noventa, seguiu-se o abandono que perdura até hoje. No setor dos museus e património, historicamente com quadros integrados na orgânica do Estado, a resiliência ao abandono foi comparativamente maior mas, hoje, ultrapassámos já o prazo onde os conhecimentos dos especialistas que se reformam podem ser transmitidos a novas gerações, porque não há ninguém que esteja lá para ouvir quem se vai embora.
O Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) sintetiza todas as contradições das políticas públicas dos últimos quarenta anos. Se o “anexo” ao palácio principal que hoje define a entrada do público no museu foi construído nos anos quarenta, o que hoje um visitante vê no primeiro piso é ainda o resultado das intervenções de 1983 e 1992-94 - para a XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura, e para a Lisboa Capital da Cultura 94 - eventos impulsionados pela adesão à União Europeia. A coleção de ourivesaria está, ainda hoje, instalada em vitrines de 1983, que já ultrapassaram em vinte anos o seu prazo de validade, não são estanques - obrigando à limpeza semestral das peças -, e estão instáveis. “De vez em quando, caem”, explica ao Esquerda.net o diretor do MNAA, Joaquim Oliveira Caetano.
A falta de recursos humanos no museu - que além de ser nacional desempenha um papel internacional no trabalho científico sobre arte portuguesa, o que nenhum outro museu português pode fazer - é absurda. “Com os horários de rotação, a partir de maio ficam em média com cinco vigilantes de sala para 65 salas. Por isso uma parte do museu está permanentemente fechada. Considerando que 3 dos 15 vigilantes têm de estar na loja, e com rotação devido a fins-de-semana e folgas, teremos apenas 5 vigilantes”, explica o diretor. A área do mobiliário português, acessível no piso térreo logo à entrada do museu, “está mais de metade do tempo fechada”, conta ainda.
Em 2010, o MNAA registava 96 trabalhadores no quadro, mais trabalhadores precários. Em 2019, após o PREVPAP e a vinculação dos precários, registava 67 trabalhadores no quadro. Crucialmente, são considerados trabalhadores da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), e não do museu. O que significa não só que não têm autonomia para contratação como estão sujeitos às necessidades prioritárias da própria DGPC, que absorve e transfere qualquer quadro especializado para as suas próprias funções.
Joaquim Oliveira Caetano iniciou a sua carreira no MNAA como conservador de pintura, uma função que acumula ainda hoje com a função de diretor “porque não podemos contratar ninguém”. Este problema repete-se nas diferentes especialidades do museu, da museografia do colonialismo português aos ateliers de restauro e conservação, o MNAA perde todos os anos pessoas para a reforma que não consegue sequer substituir. Isto tem impacto também na modernização da investigação sobre o espólio artístico português. “Sem equipas não podemos acompanhar sequer os avanços tecnológicos dos últimos quinze anos, que foram brutais na investigação científica”, e a ausência de novos trabalhadores especializados impede a afirmação de arte antiga portuguesa a nível internacional.
Nos ateliers de restauro, conhecemos André Afonso, um quadro do MNAA que desempenha as funções de conservador, área onde se especializou em mestrado. Apesar da sua função - é hoje um dos dois únicos conservadores no museu, quando as reservas foram pensadas para uma equipa de 12 pessoas - tem a posição de vigilante, função com que entrou para o museu há 11 anos como precário. Vinculado através do PREVPAP em 2019, o Estado não reconheceu a sua função e manteve-o como vigilante, e sem reconhecimento dos anos de serviço que entretanto prestou, o que o deveria equiparar a técnico superior, tal como a colega com quem partilha funções.
André trabalha na reserva do MNAA, um vasto complexo de salas que deviam estar permanentemente climatizadas. Há meses que nenhuma das quatro máquinas de ar condicionado funciona. No inverno, as 3500 pinturas no espólio do MNAA foram sujeitas a temperaturas de 7 graus e, agora, a mais de 20 graus.
O sistema elétrico, pela sua antiguidade, é incapaz de lidar com os múltiplos sistemas que foram sendo adicionados. E a política “que foi introduzida pelos governos de Cavaco Silva” para reduzir equipas técnicas e externalizar para pedidos de serviços, aliada à falta de autonomia orçamental e jurídica, impede o museu sequer de contratar um eletricista habilitado para gerir a luz das diferentes salas. “Quando há picos de corrente, ficamos sem luz em algumas salas que temos de encerrar até voltar a luz. Quando faço um requerimento à DGPC, respondem que terão um plano de milhares de euros para substituir o sistema elétrico. O que é ótimo. Mas precisávamos para já de um eletricista habilitado”, explica.

As infiltrações abundam em todo o edifício. Como o jornal Público já noticiou, e o grupo parlamentar do Bloco de Esquerda agora confirmou, a água escorre em várias salas sempre que chove. Mesmo no segundo piso, remodelado recentemente com financiamento mecenático, a chuva irrompe profusamente devido a falhas estruturais no telhado, que acumula água para dentro da estrutura.
Apesar de o MNAA estar na lista das 46 estruturas a serem intervencionadas pelos fundos do PRR, questionado pelo Esquerda.net durante a visita desta quinta-feira, o diretor admite que “não sabe de nada”. Os planos de intervenção e mesmo de expansão do museu para a Avenida 24 de julho existem há pelo menos dez anos, tendo a CML inclusivamente reservado a área para o efeito. Mas se o governo pretende avançar com estes planos, não o comunicou ainda ao MNAA.
Este facto é preocupante pelos prazos curtos dos fundos do PRR, que obrigará a definição de projetos, cadernos de encargos, contratação de arquitetos, novos cadernos de encargos e contratação de empreiteiros, lançamento de obras, supervisão e finalização, tudo num prazo de três anos e meio. A DGPC terá mãos para isto? E depois destes milhões, voltaremos a ter equipas nos museus?
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