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Há 29 anos, o massacre de Tiananmen

Abafado pelo governo chinês com mão de ferro, o massacre que terá vitimado milhares de pessoas não pode ser apagado da história. Neste artigo, Waldo Mermelstein, que visitou várias vezes o país, presta homenagem às vítimas e diz-se convicto de que as lições desse grande combate serão lembradas.
Momento mais simbólico da resistência ao massacre.
Momento mais simbólico da resistência ao massacre.

Há 29 anos, um facto tremendo prendeu a atenção do mundo: as centenas de milhares de pessoas que ocupavam a imensa praça Tiananmen em Beijing eram violentamente escorraçadas de lá por milhares de soldados e tanques de guerra. Na sequência, um implacável massacre ocorreu nas ruas e avenidas próximas da Praça e em muitas cidades do país, um número que pode chegar a várias milhares de pessoas morreu em todo o país.

A comoção foi abafada pelo governo chinês com mão de ferro e até hoje as vítimas são caluniadas, censuradas, ignoradas. Os familiares lutam bravamente para saber o destino de seus entes queridos. Mas a memória de um evento dessa magnitude não pode ser apagada da história. Na diáspora chinesa, o facto é recordado e em Hong Kong é uma tradição anual evocá-lo.

República popular da amnésia

Um interessante livro da jornalista Louisa Lim, recentemente publicado, chamado “A república popular da amnésia: Tiananmen revisitada” (The People's Republic of Amnesia: Tiananmen Revisited) traz depoimentos de personagens do massacre. Dirigentes estudantis que permaneceram no país perseguidos pelo sistema. O soldado que estava num dos batalhões deslocados para a repressão e que conta como incontáveis multidões de habitantes de Beijing impediram as tropas de se deslocar para a praça, por repetidas vezes. Até que uma estratégia inédita foi utilizada pelos comandantes: todos os soldados deviam ir em roupas civis, disfarçados em meios de transporte público até o prédio da Assembleia Nacional, em Tiananmen, onde receberam uniformes e armas. O depoimento de duas mães de estudantes assassinados que fundaram o grupo das Mães da Praça Tiananmen e que lutam para saber o que ocorreu com os seus filhos. Podemos ver um mundo nas sombras, fora dos grandes monumentos e obras da capital chinesa e que não foi apagado.

Uma estratégia inédita: todos os soldados foram em roupas civis, usando transporte público até o prédio da Assembleia Nacional, em Tiananmen, onde receberam uniformes e armas. 

Quando estive em Beijing pela primeira vez, tive o privilégio de ouvir uma palestra e conversar com uma antiga operária e ativista do movimento da época, Lijia Zhang, hoje infelizmente convertida ao credo neoliberal, que trabalhava numa fábrica em Nanjing (antiga capital no tempo dos nacionalistas) e participou e ajudou a organizar manifestações multitudinárias na cidade em solidariedade aos estudantes. Ela é autora do livro de memórias, "Socialism Is Great!": A Worker's Memoir of the New China, que adquiri quando estava em Beijing. Em tempo: a palestra e o livro foram em inglês, o que escapava das garras afiadas da censura chinesa.

Ponto de inflexão

Vinte e sete anos depois, quem serão os vingadores da Tiananmen trágica?

O massacre foi um ponto de inflexão decisivo para a restauração capitalista na China, cujo processo vinha de antes, mas que só a brutal repressão e a unificação da liderança do Partido Comunista chinês permitiram implementar com grande sucesso. De lá para cá, cerca de 200 milhões de camponeses emigraram para as cidades e se tornaram os operários do “atelier do mundo” em que se transformou a China.

Trabalhadores migrantes à espera de transporte para o interior, em 2009. Foto de Waldo Mermelstein.

Em 2009, tive uma pequena imagem das contradições de um país que fora atingido pela crise e obrigou 20 milhões de trabalhadores migrantes a voltar para o interior do país. Na estação ferroviária de Beijing pude ver a dimensão do drama: milhares esperavam nos imensos salões de espera da estação, sentados ou deitados no chão, comendo, fumando, jogando cartas. Não pude tirar boas fotos porque não me senti com o direito de fazê-lo com o cuidado necessário: a desgraça humana era demasiada. Foi uma das três vezes em que isso aconteceu. As outras duas foram no Museu das vítimas dos bombardeios americanos no Vietname e no Memorial das vítimas de Hiroshima.

Homenagem

Rendo a minha homenagem aos que lutaram, aos que foram assassinados, aos que procuram silenciosamente manter a memória viva do que aconteceu. Mas mais do que nada, olhamos com esperança as ações quotidianas da classe trabalhadora chinesa, que contabiliza muitas milhares de greves e mobilizações por ano contra as condições de extrema exploração pelo capital internacional e chinês, que alegremente se unem neste novo Eldorado. As greves ainda são atomizadas, sem coordenação e com pouco ou nenhum saldo organizativo, coisa que o regime procura ciosamente evitar. Não é por acaso que o orçamento de segurança interna é ainda maior que o dedicado às Forças Armadas. Quando irrompem mobilizações, uma rotina é que os serviços de segurança ofereçam o pagamento de uma parte das exigências dos trabalhadores, tolerando as mobilizações, desde que não haja unificação, organismos novos e manifestações públicas muito ostensivas.

É claro que este esquema só pode funcionar por um tempo. A queda no ritmo de crescimento do país, a mudança de modelo de crescimento em direção à produção de bens mais sofisticados encerrou a acumulação capitalista alucinante que consumia milhões de toneladas de matérias-primas e grãos e dificilmente haverá um crescimento económico das proporções das últimas duas décadas e que pode absorver tantos milhões nas cidades. Quanto tempo demorará para que vejamos fenómenos como o da Revolução dos Guarda-chuvas de Hong Kong se transmitirem ao continente?

Mártires serão reivindicados

Quanto tempo levará para que haja o salto na organização desta classe trabalhadora gigantesca? Esta será a hora em que os mártires do Movimento 4 de Junho serão reivindicados e as lições desse grande combate serão lembradas, pois por mais que o regime tente eliminar a memória, uma comoção daquela magnitude não foi nem poderá ser esquecida. A foto da abertura deste artigo é um clássico simbólico da resistência, ainda que tenha sido no dia posterior ao 4 de Junho.

Ao centro, Chen Du Xiu, linguista, dirigente fundador do PC chinês em 1919 e que posteriormente aderiria ao movimento pela IV Internacional dirigido por Leon Trotsky.

Esta outra foto tirei em 2009, quando visitei a China e é de Chen Du Xiu, linguista, dirigente fundador do PC chinês em 1919 e que posteriormente aderiria ao movimento pela IV Internacional dirigido por Leon Trotsky, cuja memória não pôde ser totalmente apagada pelo regime maoísta e os que o sucederam.

Artigo publicado pela primeira vez por ocasião dos 27 aniversário do massacre em Tianmen a 04/06/2016 e atualizado a 05/06/2018. 

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