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Há 120 anos, Coimbra em estado de sítio

Um protesto de vendedeiras contra impostos abusivos desencadeou a revolta. Em março de 1903, durante uma semana, Coimbra esteve em estado de sítio. Os detratores chamaram-lhe “a Revolta do Grelo”. Mas também houve quem a compreendesse como uma greve geral, ensaio para maiores feitos futuros. Por Jorge Costa.
Caricatura de Rafael Bordallo Pinheiro representando a carga fiscal excessiva sobre o povo
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O ano começa em março, em Coimbra, cidade parada, vaticano universitário num distrito feudal. A 8 de março, os fiscais da Fazenda irrompem na praça pela primeira vez, cobrando o selo às vendedeiras que chegam dos campos em volta carregadas de fruta, hortaliça, leite, alguma rês. As mulheres não têm posto fixo e há muito ouvem falar de mudança das regras da venda em mercados. Agora ficam a saber que a licença passou a custar 1300 réis e quem não a pagar enfrentará multas de dois mil.

Quando os fiscais regressam, no dia seguinte, instalam-se choros e súplicas. As licenças são incomportáveis, as multas são diárias. Seguem-se três dias de ajuntamento de povo e insultos aos homens da Fazenda. Nesse tempo, as mulheres percebem que a ordem é firme e que os fiscais não vão folgar. De acordo com O Conimbricense, às vendedeiras de broa do lugar das Carvalhosas, mais de cem, que protestavam em frente dos Paços do Concelho, juntaram-se as leiteiras e lavadeiras de roupa, tendo algumas vendedeiras de hortaliça deliberado acompanhá-las na sua resolução de entrarem em greve. No fim do reboliço, cada parte - vendedeiras e fiscais - aconselha a outra a não regressar no quarto dia.

Os fiscais voltam. O que encontram é um mercado abandonado. Sem tom nem som, uma silenciosa desordem instala-se. As sobras do dia anterior estão quase esgotadas nas bancas fixas. Não há produtos do dia. De fora da cidade, nada nem ninguém. Os fiscais partem. Levam apenas um mau pressentimento.

Mercado D. Pedro V, em Coimbra, na época dos acontecimentos.

 

Começa a revolta

No dia seguinte, pela madrugada, nos acessos à cidade, agrupam-se camponesas, vendedoras e também rapazes armados de chuços e foices. As que desconheciam o bloqueio, chegadas com seus carregos, juntam-se ao grito de “morram os ladrões!”. Desse cerco, partem em direção às representações do poder. À entrada na cidade, juntam-se as vendedeiras “fixas” e os operários das oficinas, da construção, dos lanifícios, das loiças. Grupos numerosos invadem o liceu e a Universidade e a maioria dos estudantes apressa-se a aderir ao protesto.

À tardinha, o repórter do Dia aponta no seu caderno as palavras de uma moça de lavoura: “Não sei como foi aquilo. Aquecemos com o barulho e desatou-se à pedrada”. A repartição de finanças está devastada, é apedrejado o matadouro e algumas lojas, tudo obrigado a fechar. Fiscais do selo são procurados nas suas casas, também atacadas. Operários fabris, artesãos, lojistas, estudantes: à chamada dos camponeses e por esta ordem, o povo toma Coimbra.

A guarnição militar da cidade deslocara-se a Lisboa para participar numa parada e os trinta soldados que sobram no quartel deixam-se ficar. A polícia mantém-se em expectativa. Do dócil povo daqueles campos ninguém esperava tanto e a cidade ficou à sua mercê. Na turba, não há sinal de autoridade, muito menos de interlocutor disponível.

Estado de sítio

Na manhã seguinte, já seiscentos militares haviam sido destacados. Os sinos da Sé Nova e da igreja de São Bartolomeu tocam a rebate: o motim é para continuar. A imprensa conta oito mil participantes no apedrejamento da Câmara, das Finanças e do tribunal. Na rua de Montarroio, um soldado é desarmado e espancado. A tropa que cerca a Câmara parte para o local e deixa o edifício ao cuidado de apenas três soldados; ao chegar à rua de Montarroio, abre fogo sobre o povo e mata duas pessoas. Junto à Câmara, a multidão retalia sobre os três soldados ali deixados, um dos quais vem a morrer. No regresso da tropa aos Paços do Concelho, mais dois civis são mortos e dezenas feridos.

Ao longo do dia, aqui um viva a república, ali um viva o socialismo, surgem bandeiras vermelhas, canta-se A Portuguesa. Qualquer direção política parece continuar ausente. O chefe do governo, Hintze Ribeiro, declara o estado de sítio e coloca Coimbra sob comando militar. Admite rever o regime das licenças, mas apenas se voltar o sossego. Porém, o imposto de selo já passou à condição de faísca inicial. O incêndio alastrou contra a espoliação dos pobres, a brutalidade da tropa, pela vingança dos mortos.

O povo junto ao tribunal de Coimbra durante a greve geral.

 

Um manifesto apócrifo informa as “classes trabalhadoras em greve que esta deve manter-se a todo o custo. Deve responder-se às provocações dos opressores do povo com uma resistência passiva, sim, mas constante”. Nos funerais dos caídos intervêm onze oradores, entre eles quatro estudantes que serão dirigentes da futura República. As redes do Partido Republicano levantam tumultos em Soure, Tomar, Poiares, Montemor-o-Velho, Miranda do Corvo, São Pedro do Sul e Bragança.

Não há alimentos, os inspetores de finanças e muitos funcionários públicos escaparam da cidade, os telégrafos mal funcionam… nem missa há. Mas à medida que se percebe que a revolta não durará muito tempo, a oposição parlamentar do Partido Progressista passa a defender o protesto contra o regenerador Hintze Ribeiro. Em Coimbra, alguns patrões avessos à situação apoiam a greve, pagando salários ou fornecendo mantimentos.

Nas ruas, a circulação continua perigosa, tanto para grevistas como para fura-greves. A 14 de março, são cortadas pela tropa todas as comunicações da cidade com o exterior. A pressão do exército resulta e os amotinados saem de cena pela ordem inversa à da entrada: a associação dos comerciantes comunica a sua desmobilização, os operários seguem-na em respeito. O reitor - que tem jurisdição integral sobre o espaço académico e, de facto, partilha a manutenção da ordem pública com o governador civil - mantém a universidade fechada por três semanas (quatro anos depois, a recusa do ensino ritual e da arbitrariedade dos professores levará à greve estudantil de 1907, que formará uma geração política).

Recusando serem retirados da cidade em dois comboios fretados pelo governo, 1200 estudantes procuram prolongar o movimento e apresentam-se ao reitor e ao governador civil exigindo serem presos… o que não lhes é concedido. A “revolta do grelo”, como jocosamente a imprensa alinhada conseguiu batizar o processo, chegara ao fim. No entanto, a desmobilização não significou a derrota dos objetivos iniciais - o governo de Hintze Ribeiro acabou mesmo por desistir de aplicar o aumento do imposto para a venda em mercados.

Caricatura de Rafael Bordallo Pinheiro representando a carga fiscal excessiva sobre o povo

 

“Revolta do grelo” ou greve geral?

O que começou como um típico motim de Antigo Regime, acabou por converter-se num momento alto do ciclo de greves iniciado em 1902 (com a vitoriosa greve de quatro meses dos lanifícios em Gouveia) e que se prolongou até 1907. A greve geral de Coimbra, como escreveu José Manuel Tengarrinha, pôs em causa “a separação entre as reivindicações localizadas ou restritas e as gerais, entre as greves económicas e as greves políticas. É certo que as primeiras visam uma melhoria da situação do operariado num caso específico e as segundas atacam a organização geral da sociedade, o Estado. Nem sempre, porém, tomam este caráter desde o início. Por vezes trata-se inicialmente de uma luta com objetivos muito restritos e só depois, com o engrossar do movimento, acaba por ser posta em causa toda a sociedade”.

Aliás, essa “lição” foi retirada logo após os acontecimentos. Na sua dissertação na Faculdade de Direito de Coimbra, em 1904, o militante anarquista João Campos Lima, uma das referências iniciais desta corrente em Portugal, definia a revolta como greve geral. “Acima de tudo, ela foi um decisivo argumento contra os que dizem que a greve revolucionária que os libertários pregam é impossível, porque supõe uma consciência e uma solidariedade que os operários nunca poderão atingir. (...) Como pode manter-se numa declarada resistência, durante uma semana, toda uma cidade inteira, sem chefes, sem vozes de comando, por impulso apenas dos seus sentimentos de justiça? (...) Como educação revolucionária, teve ainda este valor: ficou-se a saber em Portugal que só há um meio de resistir a impostos iníquos, imitar Coimbra”.

Apenas dois meses depois da revolta, o governo de Hintze Ribeiro enfrentaria um novo e ainda mais pujante desafio, o da greve prolongada dos tecelões do Porto, verdadeira prova de fogo do sindicalismo revolucionário emergente. Até ao derrube da monarquia, esse nova direção operária estreitará laços com a causa republicana, como parte de uma aliança que ainda estava ausente em Coimbra. Como escreve Vasco Pulido Valente no mais importante estudo sobre a “revolta do grelo”, “o ‘povo’ - ou parte deste - não é ainda [em 1903] um agente político ou um conjunto de agentes políticos. O seu protesto serve de arma nas querelas interiores do sistema - incluindo nele o Partido Republicano e o Partido Socialista. Contudo, porque não tem organização nem objetivos, não chega a constituir uma ameaça grave. Tudo o que pode produzir são revoltas primitivas contra a autoridade, não uma ação política, ou seja, uma tentativa de alterar as relações de poder. (...) A partir de 1906 - e sobretudo a partir de 1908 -, a palavra povo designa uma nova realidade. Não já a massa indistinta e não estruturada de 1903, mas muito exatamente a pequena burguesia urbana e os seus aliados das classes trabalhadoras, organizados num partido legal e numa associação clandestina (a Carbonária Portuguesa), com capacidade, poder de decisão e objetivos definidos: isto é, constituídos num agente político”. Essa aliança durou até à implantação da República e fez a vitória do 5 de outubro. Terminou aí, quando as organizações operárias compreenderam nada ter a esperar dos governos burgueses republicanos. Daí em diante, as classes trabalhadoras só reataram essa aliança pontualmente, quando a República esteve em perigo.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Jornalista.
Termos relacionados Esquerda com Memória, Sociedade
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