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Guilherme Boulos: “A unidade da esquerda é importante mas sozinha não garante a vitória”

Em entrevista à Pública, o ex-candidato à autarquia de São Paulo diz que as forças progressistas devem restabelecer a ligação com o povo e não podem unir-se só na hora da eleição. É preciso que construam juntas caminhos para enfrentar o bolsonarismo e a crise decorrente da pandemia. Por Andrea DiP.
Foto da página de facebook de Guilherme Boulos.

Com vasta trajetória no movimento social e uma jovem carreira na política institucional, o filósofo, psicanalista, e líder do MTST Guilherme Boulos (Psol) chegou à segunda volta das eleições autárquicas em São Paulo com uma votação expressiva, especialmente nas periferias de São Paulo. Apesar da derrota nas urnas, reuniu 2.168.109 votos na disputa contra o autarca eleito Bruno Covas (PSDB), quase o mesmo número que a soma de todos os votos obtidos na primeira volta por candidatos do Psol a autarquias em todo o Brasil.

Devido a essa ascensão, Boulos tem sido apontado como um novo rosto de liderança para a esquerda e uma figura capaz de unir o campo progressista. Ele afirma, no entanto, que o seu protagonismo não deve estar acima desta união, que diz ser o objetivo mais importante e a única hipótese de derrotar o bolsonarismo: “Se a unidade não prosperar, se não houver uma compreensão e uma maturidade política de lideranças do nosso campo sobre a importância da unidade para derrotar o bolsonarismo, bom, só nos resta lamentar. Se o resultado for este, cada campo, cada partido de esquerda vai ter a sua candidatura, vai apresentar o seu projeto, e a possibilidade de repetir fracassos a agir dessa forma é muito maior. Toda a sociedade percebe isso, o eleitorado de esquerda percebe isso. Não é possível que as direções políticas do campo da esquerda não sejam sensíveis a pelo menos fazer um esforço e uma tentativa nesse sentido”.

Mas pondera: “A unidade sozinha não vai dar vitória à esquerda, a unidade é uma mensagem importante, mas não é suficiente para uma vitória, para derrotar o bolsonarismo. Existe outro desafio, que é garantir a ligação da esquerda com o povo. Esse desafio é a minha obsessão há 20 anos a atuar no movimento de base, no MTST, nas ocupações de terra, nas lutas sociais”.

Sobre uma possível candidatura à presidência em 2022, não afirma mas não descarta: “É evidente que não tenho como descartar e dizer ‘não serei candidato em nenhuma hipótese’, isso é demagogia, não tenho nem cara, nem condição, e nenhuma razão para fazer isso. Mas também não acho que ajuda o projeto de esquerda eu chegar agora e me afirmar como candidato. Isso não está em questão para mim, não sou daqueles que sai de uma eleição já com a cabeça na seguinte”.

A primeira vez que eu o entrevistei, para o perfil que fizemos para a Pública em 2017, era super reservado quanto à sua família e a sua vida pessoal, era algo que não queria expor de maneira nenhuma. E, como candidato desde 2018, a sua vida passou a ser super exposta – a sua família, a sua casa. Como tem sido isso? Foi um processo fácil, tranquilo?

Você foi a pessoa que fez o primeiro perfil meu que foi publicado. Eu tinha uma reserva muito grande em relação à exposição por duas razões: primeiro porque sempre encarei a política como um projeto coletivo. Obviamente existem lideranças que se formam, se legitimam nos processos, mas as lideranças têm que responder a esse processo coletivo, e não o contrário. E segundo, sempre trabalhei para preservar quem amo e está comigo, a minha família. As minhas filhas não tomaram a decisão que eu tomei, então não é justo que elas paguem o preço dessa decisão. Esse sempre foi o meu esforço. Eu consegui manter de algum modo essa reserva, enquanto líder de movimento social.

 

Agora, quando me tornei candidato à presidência da República e depois candidato a autarca de São Paulo, passei a ter o escrutínio por parte dos media e uma curiosidade por parte das pessoas. E aí não é mais se eles vão admirar um líder ou não. As pessoas querem conhecer em quem vão ou não votar como seu representante para governar o país ou a cidade. Como assumi uma nova tarefa, também me abri mais às consequências e às responsabilidades que essa nova tarefa de candidato representa para mim.

A exposição inicial para a família, sobretudo em 2018, foi muito difícil. Principalmente, para as minhas filhas, que ouviram coisas na escola, [sofreram] ataques… e elas sentiram isso, são crianças… Em 2020 achei que precisava encarar a situação de uma outra forma e talvez a melhor forma de protegê-las, e também a mim, era antecipar-me aos ataques que viriam e expor como é a nossa vida de forma transparente, como é a nossa relação, como é a minha personalidade, qual é a minha trajetória, a minha história. E acho que foi uma estratégia bem mais acertada porque ajudou a desmistificar e quebrar preconceitos.

Qual a sua avaliação dessas eleições autárquicas, não só em São Paulo mas no Brasil?

O Bolsonaro perdeu as duas batalhas políticas de 2020, que foram as eleições nos EUA e as eleições autárquicas no Brasil, que foram decisivas para o projeto que ele construiu.

Se Trump continuasse presidente dos EUA, Bolsonaro teria um respaldo internacional. Bolsonaro, aliás, reduziu a política externa brasileira a uma lambe botas dos Estados Unidos, a um apêndice do departamento de estado norte-americano. E a derrota de Trump deixa o seu governo numa situação muito delicada, porque ele já se tinha transformado na comunidade internacional o famoso “espalha rodinha” – ele chegava e as pessoas saíam, ninguém queria estar perto dele. E, lamentavelmente, arrastou o país e a imagem externa do país para esse lamaçal. A derrota de Trump, além de importante do ponto de vista da correlação de forças a nível internacional, é uma derrota política do Bolsonaro e do bolsonarismo.

Nas eleições autárquicas, sem sombra de dúvidas, Bolsonaro é o maior derrotado, mesmo com a máquina federal, mesmo tendo atuado de maneira até pessoal e direta ao ir para programas de televisão. As apostas que ele fez nas maiores cidades do Brasil fracassaram. Nós derrotamos o Russomano, o candidato de Bolsonaro, e tirámo-lo da segunda volta em São Paulo. Acho que esse foi um dos grandes méritos da nossa campanha, fomos responsáveis diretos pela derrota do bolsonarismo em São Paulo. No Rio, Crivella foi derrotado. Os seus candidatos foram derrotados nas principais capitais.

Outra característica importante desta eleição é a visão geral dos media e de analistas políticos que dizem “ah, o grande vitorioso é o centro”. Primeiro, acho que temos de ser um pouco mais rigorosos com os conceitos. Chamar Dória de centro parece-me uma excrescência. O “bolsodoria” não vai ser esquecido. A velha direita brasileira, que agora tenta adotar uma roupagem centrista para se diferenciar do extremismo do Bolsonaro, sempre foi direita. Na segunda volta de 2018, essa direita estava entusiasmada com o Bolsonaro, ajudou a elegê-lo, e uma parte dela inclusive dá sustentação no Congresso Nacional para o governo Bolsonaro.

Essa velha direita, que não pode ser chamada de centro, teve vitórias eleitorais importantes [em 2020]. São Paulo e Rio de Janeiro são expressão disso. No entanto, ela não mobilizou paixões na sociedade como o bolsonarismo fez em 2018 – foram paixões negativas, foi o ódio, foi o medo, mas ele mobilizou paixões e organizou um campo na sociedade. O PSDB, Dória, Bruno Covas, Eduardo Paes, que paixões mobilizam? Eles ganharam lugares importantes nesta eleição, é verdade. Mas é aquela vitória envergonhada, silenciosa, que não aponta para um projeto de cidade, de país e de sociedade. Eles não representam nada para o futuro. Nesse sentido, a novidade política desta eleição foram candidaturas de esquerda que apresentaram uma novidade.

Não tivemos uma vitória eleitoral expressiva no campo da esquerda, tivemos Edmilson em Belém que é uma vitória extraordinária para o PSOL e para a esquerda, outras vitórias pontuais. Mas, a vitória política e moral, quem conseguiu apontar para um movimento que, embora não tenha tido força ainda para ganhar eleitoralmente, tem a possibilidade de vitórias futuras e de construção de um novo ciclo, de construção de um novo campo, fomos nós.

Aliás, a nossa capacidade de movimentar a juventude é uma expressão clara disso. A sondagem às vésperas da eleição mostrava-nos com 65% entre jovens aqui em São Paulo. Envolver, mobilizar e engajar a juventude para acreditar novamente na política como ferramenta de transformação, isso é um sinal de futuro muito forte, é o sinal de uma nova geração de esquerda a surgir com capacidade de quebrar barreiras, de voltar a dialogar com os jovens, de voltar a dialogar com a periferia, de disputar as redes sociais de igual para igual com a máquina bolsonarista. Fizemos isso nesta eleição. Acho que plantámos uma semente muito forte que vai florescer, é uma questão de tempo. Por isso acho que, apesar de não termos tido tantas vitórias nas urnas, tivemos uma inquestionável vitória política nesse campo.

Angustia-me muito essa história de “polarização”, palavra da moda, porque quando se fala em extrema direita, imagina-se automaticamente o que seria uma extrema-esquerda, uma esquerda radical. Sabemos que existiu essa guinada para a extrema-direita, mas essa história de guinada para a extrema esquerda é fantasiosa. Eduardo Paes Bruno Covas disseram na posse “somos alternativa ao extremismo”.

Bolsonaro virou a régua política do Brasil tanto à direita, que basta ficar parado num lugar que nos transformamos em bolivarianos, comunistas. Dória foi chamado de comunista pelo bolsonarismo, olha o ponto de insanidade coletiva a que a análise política chega. Esse jogo dos extremismos, das duas faces da mesma moeda, é falacioso, é mentiroso. Querer equiparar um projeto de esquerda ao Bolsonarismo…

Aliás, quem está a fazer essa equiparação ajudou a eleger o Bolsonaro, alguns deles governam com o Bolsonaro. Qual é a autoridade moral que essa gente tem para falar de extremismo? Qual é a autoridade moral que o Dória tem – esse sim extremista – com esse discurso ideológico rasteiro anti-esquerda?

Eu acho que um dos desafios para o campo progressista no próximo período é rasgar o véu dessa fantasia, desmistificar cada vez mais. Primeiro mostrando que as nossas propostas – e eu fiz isso ao longo de toda a campanha – não têm nada do extremismo que eles procuram qualificar. O radicalismo é uma palavra que no imaginário social está ligado ao extremismo, mas radicalismo é tomar as coisas pela raiz, é ir até às últimas consequências dos problemas. Nesse sentido, a vertente do termo radical é uma vertente positiva, é aprofundar, é pegar os problemas da sua estrutura. Agora, a forma como eles tratam evidentemente não é essa, eles tentam estabelecer a ideia de extremismo.

Dizer que o nosso projeto é extremista? Estamos a falar do combate à desigualdade social, estamos a falar de fazer com que as pessoas tenham teto, de cumprir o estatuto da cidade, estamos a falar de cumprir a Constituição em última instância, estamos a falar de defender o SUS contra um teto de despesas absurdo, estamos a falar de defender a CLT contra uma reforma trabalhista que arranca as possibilidades de sobrevivência com dignidade das pessoas. Estamos a falar de defender a segurança social, de defender a educação pública. Estamos contra cortar jantar de restaurante popular, estamos contra transformar uma das áreas de desporto e lazer mais importantes da cidade num centro comercial. Isso é ser extremista? É um escândalo o jogo de palavras que eles fazem. E é o papel da esquerda cada vez mais desmistificá-lo e também a ideia de que eles são o centro, são o caminho do meio. Dória e DEM são o caminho do meio para onde?

E apresentam-se como algo novo, alternativo.

Vamos dizê-lo claramente: essas pessoas são aquelas que se sustentam historicamente no Brasil, são herdeiras das oligarquias cafeeiras, são herdeiras de um pensamento esclavagista, elitista, racista, herdeiras da ditadura militar. Esse grupo dito “caminho do meio” é o grupo que promoveu as transições inacabadas e os grandes acordos nacionais da história brasileira. Esse centrão é o que promoveu a transição democrática sem redemocratização. É o centrão que promoveu o golpe de 2016 e o grande acordo nacional de Jucá. Esse centrão é o que levou também a política ao nível de descredibilidade que ela assumiu no imaginário popular, como uma atividade que não trata os problemas das pessoas, que não resolve os problemas, de que é tudo igual, de que é tudo a mesma coisa. Esse grupo é parte do problema, não é parte da solução. Esse grupo não tem a menor condição de apresentar um projeto popular, democrático e viável para o Brasil pós-bolsonaro, não tem a menor credibilidade histórica e nem a menor possibilidade política e social para isso.

Juntei aqui algumas perguntas feitas pelos nossos Aliados: O que é que a esquerda brasileira precisa de fazer para resgatar a confiança do eleitor em 2022? Como deve ser a articulação dos partidos? Acredita numa frente ampla de esquerda ou isso está longe de se consolidar? E, por fim, quem imagina a derrotar Bolsonaro em 2022?

Eu acho que a esquerda tem dois grandes desafios nesse próximo período e não é só 2022, é, sobretudo, 2021. O primeiro grande desafio é esse de que as pessoas mais falam e que está mais visível, que é a unidade do campo progressista. Unidades não se constroem apenas por conveniências eleitorais às vésperas de uma eleição. A unidade tem que ser cimentada em torno de um projeto, de um debate de projeto para o país e em torno de lutas. Não só lutas institucionais, mas lutas sociais.

Eu pretendo contribuir nesse processo de construção de uma frente, uma articulação, uma unidade entre as lideranças, os partidos e as forças de esquerda no próximo período. Eu acredito que o que a eleição de 2018 e a eleição de 2020 nos ensinam é que essa unidade é imprescindível para derrotar o atraso, tanto do bolsonarismo quanto da velha direita.

Antecipar essa discussão sobre os nomes dessa unidade é colocar o carro à frente dos bois, porque não vai existir unidade. Cada partido tem os seus nomes fortes, quadros importantes, se esse for o ponto de partida da discussão, não há ponto de chegada. O ponto de partida da discussão deve ser um projeto comum, uma experiência de luta, de mobilização, de construção de oposição unitária.

E acha que isso é possível?

Acho que é possível construir o diálogo. Se esse diálogo vai conseguir desaguar numa frente, numa expressão única da oposição em 2022, isso é difícil de saber. Isso depende também da disposição de cada ator, eu tenho essa disposição de construir esse diálogo de peito aberto e de chamar e ter outros líderes na mesa, ter outras forças políticas na mesa. Procurar construir. O meu partido tem essa disposição também e já demonstrou isso. Mas não posso falar pelos outros.

Agora, há muita mistificação em torno disso também. A unidade sozinha não vai dar vitória à esquerda, a unidade é uma mensagem importante, mas não é suficiente para uma vitória, para derrotar o bolsonarismo. Existe um outro desafio que é restabelecer a ligação da esquerda com o povo, esse desafio é a minha obsessão há 20 anos a atuar no movimento de base, no MTST, nas ocupações de terra, nas lutas sociais. O desafio que se traduz na ideia de um trabalho de base, que se traduz na ideia de uma presença da esquerda nas periferias dialogando, escutando, construindo redes de solidariedade para além de discurso político, construindo vínculo concreto, construindo relações de reconhecimento e acolhimento nos espaços sociais. Esse continua a ser um grande desafio. Sobretudo, no cenário que vamos viver em 2021. O próximo ano é um barril de pólvora anunciado.

Se de facto Bolsonaro cortar o apoio de emergência, como já disse que vai fazer, estamos a falar de mais de 50 milhões de famílias brasileiras que dependem desse valor para colocar comida na mesa. No mês que vem esse valor pode já não existir, tudo indica que este mês pode ser o último. Vamos continuar a lutar para que se mantenha, porque estamos a falar da vida, da sobrevivência das pessoas. Mas se não houver essa continuidade, num cenário em que a pandemia ainda persiste com uma sinalização forte de segunda onda, ao mesmo tempo com uma situação social e económica crítica, estamos a falar de talvez no ano que vem termos quase metade da população economicamente ativa brasileira ou desempregada ou subempregada, a viver de biscates. Estamos a falar de um cenário sem precedentes e isso pode ser explosivo para o país.

A esquerda tem de não só estar atenta a isso, como também deve ajudar a canalizar essa indignação, essa revolta, para uma luta organizada, que leve a mudanças reais no país e que não possa ser aproveitada pelo bolsonarismo como pretexto para novas ondas autoritárias. Estou muito preocupado com isso e estou muito focado em aprofundar e ampliar o trabalho de base.

Acho interessante falar sobre isso porque me lembro de uma crítica que sempre fez, da esquerda que vai para a política institucional e esquece o trabalho de base, e que muito desse momento que estamos a viver hoje também passa por aí. Vou juntar então mais algumas perguntas dos Aliados sobre isso: Como derrubar o muro ideológico que foi construído contra os partidos progressistas? E, pensando nesse trabalho de base, como dialogar com uma parcela crescente da população que é evangélica e que rejeita reivindicações chamadas identitárias? Como comunicar com essas pessoas e como vencer uma eleição sem deixar de lado temáticas como a violência de género, a descriminalização do aborto, direitos da população LGBT, política de drogas, que geralmente são temáticas que os candidatos evitam por serem polémicas?

Qual foi a mensagem da minha campanha com a Erundina a todo momento? A de que a gente precisa de uma autarquia, de um poder público, voltado para as pessoas, com capacidade de sentir o sofrimento das pessoas, com capacidade de ter empatia. Ter a solidariedade como um princípio ético e organizador da política. Se eu pudesse resumir a nossa campanha numa palavra seria solidariedade, essa foi a mensagem que a gente deixou.

Lembro-me de uma autocrítica e de uma análise do Pepe Mujica sobre o ciclo de governos progressistas da América Latina, incluindo o dele. Ele dizia: “Nós formamos consumidores, mas não formamos cidadãos”. Ao dizer isso, o que o Mujica expressou? Olha, é claro, é fundamental melhorar o padrão de consumo das pessoas, tirar milhões de pessoas da pobreza, ter programas como o Bolsa Família, ter programas para ampliar o acesso à educação superior, isso é o ponto de partida num país e num continente tão desiguais como os nossos. Mas não podemos descuidar a disputa de valores, porque senão essas vitórias são facilmente revertidas depois, senão a pessoa que foi beneficiária do Prouni, do Bolsa Família, depois vai votar no Bolsonaro, como aconteceu aqui no Brasil. Então a disputa política não pode ser simplesmente uma disputa de políticas públicas, a disputa política tem de ser uma disputa de projeto de sociedade, uma disputa cultural, em última instância.

A própria esquerda deixou de debater valores, e às vezes deixou a direita ganhar por KO nesse campo. Foi assim no tema da segurança pública: Bolsonaro surfou essa onda nas eleições de 2018, foi assim em vários temas de costumes, é assim no tema da sexualidade. Foram essas brechas que a direita e a extrema-direita utilizaram. Não acho que a melhor alternativa para a esquerda seja não fazer a disputa, seja tentar escamotear os valores em que acredita. Pelo contrário, não temos nenhuma razão para nos envergonharmos diante da sociedade e dos valores que defendemos. Se esses valores ficarem claros na mesa, quem tem razão para se envergonhar são eles. São eles que querem perpetuar uma sociedade pautada pela desigualdade, pelo preconceito, pela intolerância, só que fazem um marketing em torno disso. Sempre pautei a minha atuação política por tentar trazer o debate de valores, e acho que nessa eleição de 2020 tivemos muito sucesso nisso, e isso explica até onde a nossa candidatura chegou.

Acho que o diálogo com os evangélicos também tem que se dar em torno desses valores, dos valores da solidariedade, dos valores da defesa da igualdade. Fiz um encontro com evangélicos na segunda volta da campanha, vários pastores. As suas reivindicações são medidas que defendemos, porque a maior parte do povo evangélico é o povo que está nos extremos das periferias a sofrer porque não tem creche, porque não tem posto de saúde, porque faltam médicos, porque está desempregado. Na fila do centro de saúde ou quando vamos matricular o filho na creche, ninguém pergunta se somos evangélicos, católicos, o que é que somos.

Agora, existem temas que são tratados de um ponto de vista moral e que são polémicos. Ao mesmo tempo que a esquerda não pode deixar de tratar esses temas ela tem que saber tratar esses temas. Existe uma diferença tremenda entre perguntar para uma senhora evangélica do limite de uma periferia de São Paulo “a senhora é a favor do aborto?”, ela vai responder que não, regra geral. Agora podemos perguntar: “a senhora é favor que se a sua filha, ou a sua vizinha, ou a sua sobrinha, fizerem um aborto ela seja presa ou seja morta?”, geralmente ela também vai responder que não. “A senhora é a favor da liberalização de drogas?”, provavelmente ela vai responder que não. Mas se perguntarmos “Lá na cracolândia, qual a solução que a senhora acha melhor? Lançar bombas nas pessoas que são dependentes de químicos, ou procurar um tratamento de redução de danos, de acolhimento e de resgate dessas pessoas?” Muito provavelmente ela vai responder a nossa proposta política. É uma questão de forma de abordagem, uma parte da esquerda também precisa aprender, justamente porque se distanciou do povo, desaprendeu a falar a linguagem do povo e a ter a sensibilidade necessária para dialogar com os sentimentos das pessoas. Acho que é isso que nós precisamos resgatar também.

Acha que discutir a questão do aborto, da sexualidade é de facto uma coisa que a esquerda desaprendeu? Ou eram pautas sempre encaradas como pautas menores e ninhos de vespas em que era melhor não pôr a mão e fazer acordos, como vimos acontecer muitas vezes?

Acho que um pouco dos dois. Eu acho que existiu um distanciamento de uma parte da esquerda com a periferia e com o sentimento popular, e ao mesmo tempo existiu uma opção política de não tratar essas questões. Nos últimos anos registou-se um fortalecimento maior dos movimentos feministas, das reivindicações LGBT na sociedade. Isso não é só no Brasil, isso é um fenómeno internacional. A luta do movimento negro é a luta contra a desigualdade social, o Brasil é um país estruturalmente racista. Acho que o termo “lutas identitárias” expressa pouco do que são essas lutas e essas batalhas hoje no país. Esses movimentos foram ganhando cada vez mais força para trazer a sua luta como uma luta central. E a esquerda tem que ter a capacidade de se abrir para isso e incorporar isso na sua estratégia e nas suas propostas. Agora tem de ser capaz de fazer isso sem espantar o povo, construindo um diálogo que seja popular e que não fortaleça o tipo de estigmatização que a extrema direita faz da esquerda, que fez em 2018 e que continua a fazer no submundo de fake news.

Até porque são de facto lutas interseccionais, nenhuma se encerra em si, não é? Tem aqui uma pergunta também sobre crise da representação, essa descrença generalizada no sistema político, que é uma realidade e que faz as pessoas deixarem de participar justamente das decisões que afetam as suas vidas. Qual seria a melhor maneira de confrontar essa crise e essa descrença generalizada? Como mobilizar as pessoas em torno da política?

Precisamos de fortalecer formas de participação política direta e ampla dentro do campo da esquerda. Temos um desafio organizativo também. O sentimento de anti-política não surgiu do nada, a crise de representação não foi só resultado de uma campanha difamatória contra a política, foi resultado de uma incapacidade do sistema político de dar resposta às reivindicações básicas das pessoas. A crise de representação é um fenómeno real, não é só um fenómeno produzido ideologicamente, ele tem bases muito históricas. O nosso sistema democrático é muito limitado, aliás, nunca tivemos democracia plena no Brasil. Não existe democracia política sem democracia económica, social, e mesmo com o nível de captura da política pelos grandes interesses corporativos e económicos, como historicamente se fez e continua a fazer-se aqui. Basta ver as folhas excel de financiamento de campanha dos candidatos do establishment.

Agora, acho que a forma de responder a isso é também ter a ousadia e capacidade de se reinventar no aprofundamento democrático, é isso que defendo, não só pensar na gestão do Estado. Nós fizemos isso, o nosso plano de governo aqui em São Paulo, que foi uma formulação que fiz com a Erundina, governar a partir dos bairros, num contacto direto com as comunidades, tirar as subautarquias do aparelhamento político que tiveram, e vincular de uma forma transparente com as referências de cada região, com as comunidades. Essas são formas do governo, mas para além do governo existem formas de participação que têm de ser constantes na luta política, que acho que os nossos partidos ainda não deram resposta. O próprio PSOL ainda precisa de desenvolver mais essas formas de núcleo, e acho que está muito aberto para isso, acho que vamos conseguir apontar novidades e apresentar espaços de participação política incluindo formas digitais no próximo período, que ajudem a criar o sentimento de pertença, que ajudem a criar envolvimento e disposição das pessoas em fazerem o debate político.

Tem também uma pergunta que diz assim: em entrevista à Folha de S. Paulo, Fernando Haddad afirma que o eleitorado moveu-se para a direita nestas eleições e que a derrota de Bolsonaro é ilusória. Na mesma entrevista, ele afirma que o PT insistirá na candidatura própria em 2022, prioritariamente com Lula, deixando para analisar na segunda volta uma possível união com outras forças de esquerda. Como vê isso? Essa insistência do PT não levará a esquerda novamente a uma derrota?

Tenho muito respeito pelo Fernando Haddad, é um amigo, sou grato pelo seu apoio dedicado na 2ª volta aqui em São Paulo, mas permito-me discordar dele em relação ao balanço das eleições. O bolsonarismo e o Bolsonaro foram os grandes derrotados dessas eleições. É claro que o centrão, que dá sustentação hoje ao governo Bolsonaro no Congresso, teve vitórias. O direitão melhor dizendo. Tiveram vitórias, mas essa não é uma vitória do bolsonarismo e de Bolsonaro. Bolsonaro onde tocou deu errado, então, não tenho essa leitura. E acho que essa leitura deixa de ver um elemento de novidade que campanhas trouxeram pelo país, de rejuvenescimento, de surgimento de uma nova geração de líderes de esquerda, e de foco no futuro.

Vou continuar a procurar construir unidade no nosso campo. Se a unidade não prosperar, se não houver uma compreensão e uma maturidade política de lideranças do nosso campo sobre a importância da unidade para derrotar o bolsonarismo, bom, só nos resta lamentar. Se o resultado for este, cada campo, cada partido de esquerda vai ter a sua candidatura, vai apresentar o seu projeto, e a hipótese de repetirmos fracassos ao agir assim é muito maior. A sociedade toda percebe isso, o eleitorado de esquerda percebe isso. Não é possível que as direções políticas do campo da esquerda não sejam sensíveis a pelo menos fazer um esforço e uma tentativa nesse sentido. Vou insistir nesse caminho.

Por fim, existe uma análise de que você saiu de facto muito fortalecido e como a cara de uma nova esquerda brasileira. E que seria um forte candidato a disputar a próxima eleição à presidência. O que diz sobre isso?

Precisamos de ser coerentes com o que defendemos. É evidente que eu não tenho como descartar e dizer “não serei candidato em nenhuma hipótese”, isso aí é demagogia, não tenho nem cara, nem condição, e nenhuma razão para fazer isso. Mas também não acho que ajuda o projeto de esquerda eu chegar agora e me afirmar como candidato. Isso não está em questão para mim, não sou daqueles que sai de uma eleição já com a cabeça na seguinte, para mim a política não é carreira, para mim a política não é um projeto pessoal. Saio desta eleição e tenho consciência do quanto o nosso projeto saiu fortalecido, e de quanto naturalmente a minha figura enquanto representante desse projeto também sai mais forte. Agora vou procurar usar essa força para o que considero que é a chave, o que o meu grupo político também considera, o meu partido considera que é a chave nesse momento, que é fortalecer a unidade, procurar a unidade da oposição, e ao mesmo tempo fortalecer os vínculos desse nosso projeto de esquerda com o povo brasileiro. Vou-me dedicar a andar pelo país, percorrer o país no próximo ano, levando esse projeto, vou-me dedicar a conversar e articular de maneira exaustiva com outros líderes do nosso campo, procurando enlaçar os nossos pontos de unidade, vou evidentemente fortalecer o meu partido, o PSOL, como todas as outras lideranças vão fortalecer, mas tendo a consciência clara de que, num momento histórico como o que vivemos, o principal objetivo de quem é de esquerda no Brasil tem de ser derrotar esse projeto do atraso, e é a isso que me vou dedicar no próximo período.

Entrevista publicada pela Pública.

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