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“Governo quer manter herança da troika nas leis laborais”

O deputado José Soeiro conversou com o Esquerda.net sobre as propostas do Governo relativamente aos despedimentos, combate à precariedade, período experimental, trabalho em plataformas digitais e teletrabalho e explicou que debates ainda estão por fazer. Por Mariana Carneiro.
Foto de Ana Mendes.

No pacote de 64 medidas que o Governo apresentou no final de julho na Concertação Social, que questões essenciais ficaram por abordar no que concerne aos despedimentos?

Em relação aos despedimentos, o Governo propõe manter tudo na mesma. Continuamos a ter a herança da troika. As compensações, ou seja, o dinheiro que as empresas têm de pagar quando fazem despedimentos lícitos, foram reduzidas para menos de metade e o executivo propõe manter nesta alteração legislativa esse mesmo corte. E nem sequer põe a hipótese de voltar ao valor que o próprio Partido Socialista defendeu. Existiram dois cortes. O PS foi corresponsável pelo primeiro corte, na sequência do memorando da troika, mas depois o PSD foi além do que estava no próprio memorando e reforçou esse corte. A medida foi criticada na altura pelos socialistas mas, desde então, o PS nunca mais manifestou sequer abertura para reverter essa decisão.

Por outro lado, mantém-se uma norma completamente perversa e aviltante, que é aquela que impede um trabalhador de contestar a licitude de um despedimento a partir do momento em que recebe a compensação. É importante dizer que a compensação será sempre do trabalhador, porque, caso o despedimento venha a ser considerado ilícito, ele terá direito a mais um valor de indemnização. Caso o tribunal venha a dar razão à empresa, o valor da compensação pertence sempre ao trabalhador. Mantém-se, portanto, essa norma que Jorge Leite considerava “amordaçante”, já que impede um trabalhador de exercer um direito que a lei lhe confere, o de contestar a licitude do despedimento. A partir do momento em que é despedido, o trabalhador fica sem salário e, se quiser contestar esse despedimento tem de abdicar da compensação que lhe é devida. Este tem sido um enorme instrumento de chantagem para revogações por mútuo acordo. Para contornar as obrigações dos despedimentos, as grandes empresas procuram exercer pressão sobre os trabalhadores para obter o seu acordo no sentido da revogação do contrato.

Na passada sexta-feira, foi, mais uma vez, votado um projeto do Bloco no sentido de acabar com a presunção de aceitação do despedimento quando se recebe a compensação. E, mais uma vez, o PS juntou-se à direita para chumbar a revogação dessa norma. Convém lembrar que a mesma desapareceu no tempo do Governo socialista de António Guterres, voltou à lei pela mão da direita e por lá ficou até hoje, mesmo neste contexto pandémico em que seria importante até para evitar o abuso por parte destas empresas.

Essa norma está a ter efeitos práticos em vários processos de despedimento que decorrem atualmente…

Exato, na Altice e na banca é precisamente isso que está a ser feito. Estão a ser utilizadas estas regras que fragilizam os trabalhadores para os pressionar a aceitar as revogações.

Nos próprios critérios do despedimento coletivo existiram alterações que o Governo pretende manter nesta proposta que envia à concertação social.

Mas outros cortes da troika também se mantêm. Continuamos a ter na lei do Trabalho o corte nos dias de férias, o corte no trabalho suplementar, o corte no descanso compensatório… que o Governo pretende manter intocável nesta proposta.

Ainda no que respeita aos despedimentos, há a questão das empresas que têm lucros poderem continuar a despedir impunemente os trabalhadores. O Governo demonstrou alguma abertura para discutir esta matéria?

Não. Essa é uma das grandes hipocrisias e uma grande manifestação de cinismo de que o primeiro-ministro tem sido porta-voz. Por exemplo, agora fez uma declaração tonitroante contra o comportamento da Galp, mas, quando propusemos que empresas com lucro, como era o caso da Petrogal, detida pela Galp, estivessem impedidas de despedir em plena pandemia, o Partido Socialista rejeitou essa proposta. Nós vamos reapresentá-la na forma de uma moratória aos despedimentos em empresas que tenham lucros, porque não nos parece aceitável que empresas que têm resultados positivos, como é o caso da Altice, do Santander ou do BCP, aproveitem a crise para, de forma oportunista, substituir trabalhadores com direitos por trabalhadores precários, designadamente em outsourcing.

Uma das formas que as empresas têm utilizado para contornar as obrigações que lhes são imputadas quando recebem apoios para a manutenção do emprego é atirarem para fora do seu perímetro formal um conjunto de trabalhadores que correspondem a necessidades permanentes.

Durante a pandemia, vários trabalhadores foram descartados mediante várias outras figuras que não o despedimento. E as empresas que receberam apoios alegaram que não estavam a despedir quando, na realidade, era exatamente isso que estavam a fazer, recorrendo a mecanismos legais que lhes permitissem fugir às suas obrigações. Em causa estão cessações de contratos temporários, cessações de contratos a prazo, a dispensa de trabalhadores em período experimental, ou o despedimento indireto de trabalhadores em regime de outsourcing.

Isso leva-nos a outra questão que tem a ver com as medidas relativas ao combate à precariedade incluídas no pacote apresentado pelo Governo. O executivo faz uma declaração de intenções no sentido de um combate firme à precariedade mas depois, na perspetiva do Bloco, estão ausentes medidas fulcrais e subsistem dúvidas sobre qual a posição do governo relativamente a determinadas matérias prioritárias.

O Governo quer fazer algumas alterações cosméticas, sobretudo no trabalho temporário, que tem sido paulatinamente substituído pelo recurso ao outsourcing. As grandes formas de precarização em que as empresas apostam passam pelo outsourcing e ‘uberização’ do trabalho.

E por isso é que nós dizemos que não há combate à precariedade sem impedirmos o recurso ao falso outsourcing e sem termos um modelo para os trabalhadores das plataformas digitais que lhes garanta um contrato de trabalho com as respetivas plataformas.

E mesmo no que concerne às medidas previstas sobre o trabalho temporário e a regulação das empresas de trabalho temporário, as mesmas não mexem em algumas das matérias que para nós seriam essenciais. Falo em limitar os próprios fundamentos que permitem o recurso ao contrato de trabalho temporário e de diminuir a duração máxima do contrato de trabalho temporário, que continua a poder ser de dois anos, insistindo o Bloco que não deveria ultrapassar os seis meses.

E depois há uma perspetiva que nós contestamos, que é a de que, no campo do trabalho temporário, se poderia combater a precariedade através da vinculação do trabalhador à empresa de trabalho temporário e não à empresa utilizadora. O Bloco entende que a única forma de combater a precariedade seria criar regras apertadas que obrigassem à vinculação dos trabalhadores não à empresa de trabalho temporário, mas à empresa utilizadora, aquela onde os trabalhadores estão, efetivamente, a prestar a sua atividade.

O Bloco tem também um projeto respeitante à responsabilização solidária de toda a cadeia de contratação. Em que contexto surgiu esta proposta?

Sim, esse projeto foi apresentado na sequência da avaliação que fazemos sobre a exploração que existe, nomeadamente, na construção civil e no trabalho agrícola. O exemplo de Odemira foi porventura o que ganhou maior destaque, mas nós já tínhamos feito uma proposta nesse sentido, para que as explorações agrícolas não se desresponsabilizem no que concerne ao respeito pelos direitos dos trabalhadores e às condições de trabalho. Porque quem beneficia da precariedade, do abuso, da exploração da mão de obra forçada é a exploração agrícola, é a empresa que beneficia diretamente daquele trabalho.

Isso acaba por desincentivar o recurso às empresas de trabalho temporário, já que as explorações agrícolas deixam de ter essa benesse, de se poderem desresponsabilizar face ao incumprimento da lei.

Exatamente. As empresas que beneficiam diretamente da exploração do trabalho forçado passam a ser responsabilizadas, o que pode ser um passo importante para acabar com essa cascata e esses biombos de intermediários e combater o recurso a essas formas que têm garantido esse modelo de exploração laboral.

No que respeita ao período experimental, o executivo socialista opta por não reverter o alargamento do período experimental inscrito na lei em 2019. Qual é a proposta do Bloco neste campo?

O Governo insiste na manutenção do alargamento do período experimental e pretende até incluir na lei duas alterações inaceitáveis. Uma diz respeito a dizer que, para efeitos do período experimental, o trabalhador só deixa de ser considerado como um trabalhador à procura do primeiro emprego se estiverem pelo menos 90 dias na mesma atividade. Essa é uma alteração que, no nosso entendimento, nem sequer está vertida na parte decisória do acórdão do Tribunal Constitucional.

Por outro lado, o executivo pretende incluir ainda um novo conceito estapafúrdio que, basicamente, define que um trabalhador continua a a ser um trabalhador à procura do primeiro emprego mesmo que já tenha trabalhado quatro anos em contratos interpolados. Ou que continua a ser trabalhador à procura do mesmo emprego mesmo que tenha trabalhado dois anos com um contrato. A redação da proposta do Governo até vai mais longe do que atualmente se considera ser um trabalhador à procura do primeiro emprego. Mesmo que o trabalhador tenha tido um contrato efetivo, se este tiver sido extinto durante o período experimental, continua a ser considerado como um trabalhador à procura do primeiro emprego. Isso é, obviamente, uma forma de precarização inaceitável.

A proposta apresentada pelo Governo para regular o trabalho através de plataformas digitais nem sequer acompanha recomendações do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho. O que está aqui em causa?

Não, nem isso. O Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho apontava para duas coisas. Primeiro, apontava para a revisão da chamada ‘Lei Uber’, aplicada ao setor do transporte individual remunerado de passageiros através de plataformas digitais. A atual legislação tem uma originalidade que, segundo sei, só existe no nosso país. O diploma introduz um intermediário, o chamado operador TVDE, entre o motorista e a Uber, ou empresa análoga. E a legislação só prevê a existência de um contrato de trabalho entre o motorista e o operador de TVDE, isentando as plataformas de assumir qualquer responsabilidade empregatícia. Acresce que, muitas vezes, o operador de TVDE é o próprio motorista. Esta é uma forma de empresarializar os trabalhadores, mantendo fora da regulação laboral e, portanto, dos mecanismos de proteção dos contratos de trabalho.

O Livro Verde também dizia que devia ser estabelecida uma presunção de laboralidade, um conjunto de indícios adaptados ao trabalho em plataformas, que permitisse verificar a existência de uma relação de trabalho direta entre as plataformas e os motoristas, garantindo um contrato de trabalho a estes trabalhadores.

Além de ter optado pela perpetuação da ‘Lei Uber’ e desse modelo de precariedade através de um intermediário, também introduz na formulação que apresentou agora uma diferença substancial em relação à recomendação do Livro Verde, que é dizer que essa presunção de laboralidade para os estafetas se pode aplicar também aos intermediários, e não necessariamente às plataformas.

Aquilo que está subjacente nestas propostas é exportar o modelo da ‘Lei Uber’ para outras plataformas. E isso, obviamente, merece a nossa veemente oposição. Até porque, grande parte dos indícios de laboralidade que o Governo define só se aplicam às plataformas, que pagam ao trabalhador, que determinam o seu horário e que até têm formas de exercício do poder disciplinar, no sentido em que atribuiem pontuação aos serviços que podem penalizar os trabalhadores, até ao ponto de o despedirem, desconectando-o da plataforma.

Assinalo que não estamos só perante uma divergência entre o Bloco e o Governo, mas perante uma inflexão que o Governo faz relativamente ao que estava estabelecido no Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, que foi encomendado pelo executivo socialista a especialistas em relações laborais.

Noutros países, os tribunais têm vindo a emitir decisões favoráveis aos trabalhadores, e que responsabilizam as plataformas.

Se o caminho for exportar para os estafeta o modelo da ‘Lei Uber’, o que vamos ter é um enquadramento feito à medida destas multinacionais e deste modelo de negócio que assenta na precariedade e na empresarialização dos trabalhadores.

Sim, os tribunais têm vindo a estabelecer que existe uma relação laboral, existe uma relação de trabalho subordinado entre os trabalhadores e as plataformas. Foi o que aconteceu no Reino Unido, em Espanha, na Holanda. Por todo o mundo, onde esta questão tem vindo a ser colocada, a tendência é os tribunais darem razão aos trabalhadores no sentido de reconhecer que eles têm uma relação de trabalho com a plataforma. Se o caminho for exportar para os estafetas o modelo da ‘Lei Uber’, o que vamos ter é um enquadramento feito à medida destas multinacionais e deste modelo de negócio que assenta na precariedade e na empresarialização dos trabalhadores.

Com os lóbis a mostrarem, mais uma vez, a sua força…

Exatamente. E, aliás, a demonstrarem que, mesmo apesar de os coordenadores do Livro Verde terem apontado um caminho que abria, de facto, uma possibilidade interessante de resolução desta questão, o Governo recua em toda a linha nesse aspeto, criando regras que mantém o modelo de negócio.

A proposta do Governo tem outro aspeto muito curioso e negativo, bem como eloquente desse ponto de vista das opções políticas do executivo socialista, que é enunciar os mecanismos de ilidir a presunção, ou seja, de apontar o caminho aos patrões sobre o que é que têm de fazer para escapar a essa presunção de laboralidade. Por exemplo, quando diz que essa presunção não se aplica quando as empresas possam provar que o trabalhador pode contratar outra pessoa para fazer aquelas tarefas.

Ainda outra questão na área laboral, que diz respeito ao teletrabalho. Houve uma evolução naquela que era a posição e a proposta do Partido Socialista em abril, quando a matéria foi discutida no Parlamento. O que mudou e quais são os debates que ainda ficaram por fazer?

O projeto socialista que foi apresentado em abril, na sequência de um agendamento do Bloco, pretendia regular o teletrabalho fora do Código do Trabalho, ou seja, criar uma lei à parte.

E tinha algumas questões muito perigosas, prevendo que, mesmo essas regras que a lei estabelecia, podiam ser afastadas por acordo individual em sentido mais desfavorável, o que dava aos patrões o poder de decidir se aquelas regras valiam ou não.

Também criava um conceito novo que era a distinção entre o tempo de contacto e o período normal de trabalho. No fundo, a lei apontava para a existência de uma nova categoria paralela ao tempo de trabalho, que era o tempo de contacto. E uma nova categoria paralela ao tempo de descanso, que era o tempo de desligamento. O diploma previa, portanto, a possibilidade de o trabalhador ter um determinado horário de trabalho e ter outro horário em que teria de estar disponível para ser contactado pelo patrão. Esse outro horário, na prática, corresponde a um tempo de disponibilidade para o empregador que não é remunerado.

Para o Bloco, a lei que o Partido Socialista era indefensável e nunca poderia ter o voto favorável da esquerda.

O PS percebeu que essa lei estava condenada a ser chumbada no Parlamento. A esquerda votaria contra e a direita, por razões distintas, não estava também disponível para aprovar o diploma. Neste contexto, o PS sugeriu reuniões com o Bloco para saber o que seria necessário para abrir caminho à viabilização da legislação no Parlamento. Dessa negociação resultou que o PS abandonou o seu projeto inicial e incorporou algumas das questões que para nós eram essenciais.

Em causa está, nomeadamente, garantir que a regulação do teletrabalho se faz no Código do Trabalho, e não numa lei à parte; assegurar que não há a distinção entre período normal de trabalho e tempo de contacto, desaparecendo este último conceito; garantir a aplicação do princípio de tratamento mais favorável ao trabalhador às normas sobre teletrabalho. Temos defendido a aplicação integral, ou seja, a reposição, desse princípio basilar do Direito do Trabalho que estabelece que aquilo que consta da lei é o mínimo e que pode ser negociado apenas em sentido mais favorável ao trabalhador. Esta alteração do PS no que respeita ao teletrabalho abre um precedente importante, que entendemos que deve ser alargado a muitas outras matérias.

Há outra questão que é absolutamente decisiva. O Partido Socialista previa que o aumento das despesas no âmbito do teletrabalho só ficariam a cargo dos patrões com o acordo destes. Essa opção transformava aquilo que é um direito do trabalhador, de ver essas despesas pagas, numa hipótese dependente da concordância do empregador. Na nova versão da proposta do PS já não existe essa norma, deixando de fazer depender esse direito da anuência dos patrões.

Estas foram algumas alterações bastante importantes que foram feitas na sequência das exigências do Bloco no sentido de ter uma base que pudesse fazer caminho para uma lei que venha a ser aprovada.

No entanto, há outros aspetos que é preciso trabalhar e que nos parecem muito importantes. Dou só alguns exemplos, para não ser completamente extensivo. Uma das questões prende-se com o subsídio de refeição. A lei não prevê explicitamente o direito ao subsídio de refeição. O Governo, durante a pandemia, fez com que a DGERT – Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho emitisse uma norma orientadora que dizia que o subsídio de refeição era mantido quando os trabalhadores passavam para o regime de teletrabalho. Mas não aceita incluir essa norma, essa orientação, nesta lei. Nós insistimos que esteja prevista, explicitamente, a manutenção do direito ao subsídio de refeição.

No que respeita à desconexão, há um pequeno passo que foi dado pelo Partido Socialista no sentido de reconhecer que a questão da desconexão não pode ser perspetivada a partir do trabalhador, e do seu direito a desligar, dado que isso é uma evidência que resulta da lei. E que deve, isso sim, ser perspetivada do ponto de vista de uma obrigação imposta ao empregador de não importunar o trabalhador fora do seu tempo normal de trabalho. De qualquer forma, este avanço ainda não corresponde àquilo que nos parece ser necessário, que é prever o dever de desconexão e associar contactos reiterados dos patrões a um indício de assédio moral, protegendo o descanso do trabalhador com a tutela do assédio. Isso não implica que um contacto isolado seja necessariamente uma prática de assédio, se existir uma situação de excecionalidade em que esse contacto é inevitável.

De qualquer forma, o princípio que a lei deve estabelecer é o de que o trabalhador não pode ser contactado pela empresa fora do seu horário normal de trabalho e que esse é um dever dos empregadores, sujeito a uma tutela forte.

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
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