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Google Classroom, escola e pedagogia unidimensional

A pedagogia unidimensional bane do nosso horizonte de compreensão toda a racionalidade alheia ao status quo, impedindo uma aprendizagem atenta à construção de um pensamento e ação transformadoras. Texto de Sergio de Castro Sánchez.
Foto de John Eisenschenk. Flickr.

A teia de aranha da dominação tornou-se teia de aranha da própria razão e esta sociedade esta fatalmente enredada nela.” Herbert Marcuse

Metodologias e correntes pedagógicas há muitas. Mas se nos limitarmos à forma como entendem a relação que deve ter a educação e a escola com a realidade que nos rodeia, podemos circunscrevê-las a dois enfoques fundamentais.

Por um lado, temos uma pedagogia que poderíamos denominar “crítica” ou, até, “utópica”, que faz finca-pé na capacidade da educação (e a escola?) para transformar a realidade. A análise dos fundamentos do mundo em que vivemos não procura a adaptação dos alunos a uma realidade social criada para uso e desfrute de uma minoria à custa do sofrimento e da exploração – em alguns casos selvagem – da maioria. O real não deve ser objeto de análise em busca da “salvação” individual mas sim objeto de estudo crítico com vista à sua transformação. A injustiça e a desigualdade não são tratadas como uma pedra no caminho que apenas os e as melhores poderão contornar mas como expressão da irracionalidade de uma realidade que deve ser transformada em racional eliminando desta o sofrimento e a morte de que milhões de pessoas sofrem quotidianamente.

Existe, contudo, outro modelo pedagógico – muito mais assente estruturalmente apesar dos esforços de parte da classe docente – que poderíamos denominar “pragmático” ou “realista”, que entende que a realidade social e económica em que vivemos é um facto consumado, inamovível, e que apenas nos resta adaptar-nos a ela se quisermos “sobreviver”. Assim, a função principal da escola será a de transmitir, nas palavra de Raoul Vaneigem, “as regras imutáveis que regem o mundo e a existência” com a finalidade de que os e as “melhores” - aqueles e aquelas melhor adaptadas - se salvem de uma vida de servidão e exploração e consigam desfrutar, pelo contrário, de uma vida de segurança e estabilidade económica ou até de luxos e caprichos. Uma “salvação”, por um lado, baseada no trabalho duro e nas capacidades individuais dos alunos e que, desta forma, torna este tipo de pedagogia em mais um apêndice da visão meritocrática do social própria do liberalismo; e, por outro, assente na lógica do darwinismo social, também de raiz liberal. Uma “salvação”, obviamente, que apenas é possível assumindo os “valores” próprios dessa realidade intocável: individualismo, competitividade, classismo, etc. quando não até machismo, racismo, homofobia ou transfobia (campos estes nos quais há que reconhecer que se avançou algo).

Como é natural, uma pedagogia destas acha inútil o questionamento da realidade, uma vez que face a esta apenas resta uma saída: “adaptar-se ou morrer”. E uma vez que, como dizia Hegel, “todo o real é racional e todo o racional é real”, a educação que procure a transformação da realidade não apenas será acusada de irracional, mas também de “boazinha” e, até, de “doutrinadora” (o único doutrinador é aquilo que sai do real-racional e trata de o transformar, nunca aquilo que “descreve” a suposta objetividade e racionalidade do real).

Os princípios filosóficos que se ligam com esta última conceção pedagógica são múltiplos mas apenas nos iremos referir a um deles.

Marcuse e o “homem unidimensional”

Não foi por acaso que o clássico de Herbert Marcuse, O Homem Unidimensional (1964), se tenha tornado – como o foram também os escritos de Raoul Vaneigem – numa base base teórica do movimento estudantil de Maio de 68. Apesar de não tratar especificamente o tema da escola e a educação, as suas conclusões sobre as bases ideológicas das “sociedades industriais avançadas” assinalam directamente o tema que nos ocupa.

A análise de Marcuse entende a sociedade de consumo como consequência directa do desenvolvimento da ciência moderna e da tecnologia associada a ela. Tal desenvolvimento pressupôs – nas sociedades “avançadas” - um progresso nos modos de produção que permitiram criar a ilusão de um mundo melhor e mais livre. Melhor devido às de que desfrutamos e do “nível de vida” que implica. Mais livre no que diz respeito a uma liberdade que foi assimilada aos actos de consumo e às alternativas que o sistema oferece. Todo isso contribuiu para a formação de uma população submissa e complacente.

A racionalidade própria da ciência moderna centra-se em dar explicação, através de leis supostamente universais e necessárias, de uma realidade já acabada, observável e quantificável: esse é o mundo “do que é”, do que verdadeiramente existe. Um enfoque que, devido ao seu redutivismo ontológico, resultou num instrumento de enorme utilidade no que diz respeito à produtividade e rentabilidade da realidade natural (e social).

A extensão deste tipo de racionalidade a todos os âmbitos do pensamento desembocou no triunfo quase absoluto da chamada “razão instrumental”. Consequentemente, a Razão deixou de lado o âmbito do transcendente, isto é, o âmbito do racional que permanece atento às possibilidades históricas de transformação do real. A racionalidade dialéctica, amostra da tensão entre “o que é” e “o que deve ser”, foi defenestrada por uma racionalidade totalizadora na qual unicamente “o que é” – ou a sua interpretação hegemónica – é ontológica e existencialmente relevante.

Esta dimensão dialéctica, bidimensional, da razão, foi, sem dúvida, como dizíamos, completamente banida do nosso horizonte explicativo. Nesse sentido, assinala Marcuse, é “o espaço da prática histórica transcendente o que está a ser anulado por uma sociedade na qual tanto os sujeitos como os objetos constituem instrumentos numa totalidade que tem a sua raison d'être nas realizações da todo-poderosa produtividade”. Um aparato produtivo que “tende a tornar-se totalitário no sentido em que determina não apenas as ocupações, aptidões e atitudes socialmente necessárias mas também as necessidades e aspirações individuais”.

A análise de Marcuse insiste, em definitivo, num ser humano cujas bases racionais se tornaram totalitárias uma vez que apenas deixam espaço à verdade operativa e produtiva da realidade tal como existe: “assim surge o modelo de pensamento e conduta unidimensional no qual ideias, aspirações e objetivos que transcendem pelo seu conteúdo o universo do discurso e ação estabelecidos, são rejeitados ou reduzidos aos termos deste universo”. Esse “universo estabelecido” representa a totalidade de Razão: não é possível o pensamento para além dele, de tal forma que “na época contemporânea os controlos tecnológicos parecem ser a própria encarnação da razão em benefício de todos os grupos e interesses sociais, até ao ponto em que toda a contradição parece irracional e toda a oposição impossível”. A internet, por exemplo, seria um claro exemplo atual disso: beneficia, supostamente, todos os grupos sociais e posicionamentos ideológicos e as consequências, já bem conhecidas, do seu controlo por parte das grandes empresas acabam por ser assumidas como “danos colaterais” aos quais não é possível opor-se.

Como consequência, a racionalidade hegemónica verte a sua presença na nossa subjetividade de uma forma tão profunda que “o conceito de alienação parece tornar-se questionável”, uma vez que “os indivíduos identificam-se com a existência que lhes é imposta e na qual encontram o seu próprio desenvolvimento e satisfação”: a alienação “tornou-se completamente objetiva; o sujeito alienado é devorado pela sua existência alienada. Há uma só dimensão que está em todos os lados e todas as formas.”

Marcuse e a pedagogia unidimensional

A pedagogia que, seguindo Marcuse, nos permitimos qualificar de “unidimensional” seria produto desta racionalidade e transmitiria, através da escola, essa assimilação ao mundo atual como um factum perante o qual é impossível sequer pensar como racional qualquer alternativa de transformação. Tratar-se-ia, portanto, de uma pedagogia totalitária. Demos um exemplo.

Nos últimos anos está a implementar-se numa multiplicidade de centros educativos da escola pública a plataforma Google Classroom, parte do Google Suite. As razões que se esgrimem para o fazer são puramente técnicas e produtivas: é muito útil, muito funcional, muito completa, facilita o trabalho docente… Não se questiona a decisão apesar da multiplicidade de notícias publicadas sobre as práticas empresariais deste gigante tecnológico e as consequências tem nas nossas vidas e liberdades por ao seu dispor quase a totalidade da nossa vida privada através do uso dos seus produtos. Não se questiona também o que poderá acontecer se essa disponibilidade encontrar o seu espaço na escola pública. Quanto muito coloca-se a pergunta: existem alternativas? Mas no sentido seguinte: se não há uma plataforma que faça o mesmo que a Google e com o mesmo nível de qualidade (entendida como funcionalidade produtiva) não temos nenhum remédio a não ser fazer uso dela. A direção que toma a nossa racionalidade é a de assumir um facto consumado, uma lógica concreta que rege o mundo e que não há possibilidade histórica de transcender. A nossa racionalidade é incapaz de colocar a pergunta que, na minha opinião, é essencial: vale a pena fazer uso de uma plataforma que – segundo os parâmetros atuais – nos facilita o trabalho e nos permite render e produzir mais com o custo de apoiar uma lógica empresarial que nos conduziu a um totalitarismo tecnológico que coloca em perigo as nossas liberdades mais básicas? Esta questão não é tida em conta porque, ainda que de forma individual alguém possa pensar nela, rapidamente é descartada por ser pouco realista, ou seja, por ser irracional.

Mas até esta questão tem uma armadilha, uma vez que assume como valor inquestionável que o trabalho do professor ou professora (e isto é extensível ao resto das profissões” deve ser, antes de tudo, produtivo, rentável. O sistema exibe assim o seu carácter totalizador: instruí-nos acerca de quais são os valores fundamentais a ter em conta no nosso trabalho – obviamente, os que interessam ao sistema – e rapidamente nos impõe uma “solução” segundo os seus parâmetros particulares que, ao mesmo tempo, permite continuar expandindo os seus próprios valores e visão do mundo em troca de benefícios abundantes. Racionalidade “circular” para um negócio redondo.

Não são poucos os profissionais de ensino que fogem de uma educação exclusivamente pragmática e que centram os seus esforços em oferecer – apesar dos inumeráveis obstáculos que coloca o sistema educativa – uma visão do mundo que permita ao mesmo tempo a sua transformação. Sem dúvida, como parte afetada deste mundo governado por aquela racionalidade unidimensional que descrevia Marcuse nos anos 60, em muitas ocasiões não estamos conscientes – como consequência da própria estrutura desse modelo – de até que ponto estamos a participar na consolidação de uma visão imobilista e conservadora da realidade social ou até que ponto essas mudanças que procuramos continuam a ser absorvidos por um sistema totalitário que anula todo o seu verdadeiro poder transformador.

A classe docente, em definitivo, acaba jogando um papel instrumental a favor de um poder que colonizou a nossa racionalidade, impondo uma visão da realidade única e totalizadora face à qual não existem alternativas por serem impensáveis, irracionais. Assim, alheio a essas “linhas de fuga” de que falava Deleuze, a classe docente torna-se uma corrente transmissora dessa unidimensionalidade da razão, afastando do seu horizonte do pensamento – e dos alunos – a possibilidade de deixar de ser instrumentos rentáveis e produtivos de um sistema atroz e sanguinário. E como defende Marcuse: “esta é a forma mais pura de servidão: existir como instrumento, como coisa”.

 

Sergio de Castro Sánchez é professor de Filosofia.

Artigo publicado no blogue El rumor de las multitudes do jornal El Salto Diario.

Tradução de Carlos Carujo.

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