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Fui presa a 3 de Maio de 1973, faz anos hoje

Apesar de tudo, mantive sempre o meu espaço interior de liberdade, com pequenas coisas e pequenos gestos de rebeldia e de insubmissão. Cantei, cantava na cela de tortura, como se os pides não estivessem lá. Cantava a Ronda do Soldadinho de José Mário Branco. Por Aurora Rodrigues.
Aurora Rodrigues, presa a 1 de maio de 1973.
Aurora Rodrigues, presa a 1 de maio de 1973.

 

O esquerda.net tem publicado um testemunho por dia de resistentes antifascistas sobre o seu quotidiano na prisão e/ou na clandestinidade e as estratégias que encontraram para combater o isolamento.

Todos os testemunhos publicados até ao momento estão reunidos aqui:

Confinamento(s) em tempo de ditadura

Projeto organizado por Mariana Carneiro.


Fui presa a 3 de Maio de 1973, faz anos hoje

Fui presa a 3 de Maio de 1973, faz anos hoje. É um dever de memória que cumpro quando lembro e quando conto, para que nunca mais aconteça. Esse é o sentido que lhe dou.

Nesta época de isolamento social e confina­­­mento, se por um lado me vêm à lembrança pequenos episódios da prisão e de resistência, de pequenos gestos e pequenas coisas numa escala de espaços reduzidos e de imagens ao longe, por outro lado sinto necessidade de assinalar a diferença entre confinamento e isolamento social consentidos, que vivemos hoje, e prisão arbitrária e tortura, que foi o que vivi então.

Prenderam-me num protesto estudantil contra as prisões que tinham tido lugar no 1º de Maio, data em que tinha conseguido fugir à polícia, mas dois dias depois não consegui.

Levaram-me primeiro para o Comando da PSP de Lisboa, depois para o Reduto Sul do Forte de Caxias, onde fui separada das pessoas que tinham sido presas comigo, me submeteram a uma espécie de interrogatório, no qual pela única vez vi e ouvi uma máquina de escrever com a qual o pide que se intitulou escrivão do meu processo matraqueou um auto. Foi também no reduto sul que me despiram, logo à chegada, numa espécie de secretaria onde estavam vários indivíduos e, mais tarde, me fotografaram.

Quando estava sentada num banco num corredor, uma das pides sentou-se ao meu lado e chamou-me cabra, que não era vaca porque não tinha físico para isso. Apesar de aturdida por ter sido presa e me ver ali, consegui responder, mas tens tu. Era a pide Albertina, vim a saber depois, alta e encorpada.

Depois, levaram-me para uma cela no reduto norte do mesmo forte. O reduto sul era a área dos pides e era aí que ficavam as celas de tortura. O reduto norte era dos serviços prisionais e nunca aí vi os pides, a não ser a acompanhar a minha família, do lado do palratório para os visitantes, separados de mim por um vidro de alto a baixo. Os pides foram-me sempre buscar e levar à porta do reduto norte onde os guardas prisionais me entregavam ou me recebiam.

Entre os dois redutos do forte, numa distância curta, fui sempre levada numa carrinha celular fechada, onde os pides me faziam entrar e donde me retiravam. A carrinha era fechada, mas tinha frestas por onde podia olhar para fora, embora ninguém me visse. Num dos percursos vi, no exterior, a mulher do Eduardo Pires, que conhecia da minha actividade nas cooperativas livreiras e calculei que ele estivesse preso.

No reduto norte fiquei numa cela virada para um pátio onde havia carros e para um terreno em frente onde não via pessoas, a não ser que aí fossem de propósito para que eu os pudesse ver, como fazia a minha mãe, os meus tios, alguns vizinhos dos meus tios, os meus amigos, nos dias de visita, embora apenas os meus familiares directos pudessem entrar.

Na cela do reduto norte havia beliches, uma mesa, uma cadeira, uma casa de banho e fiquei sempre em isolamento. Os guardas abriam a porta da cela às oito da manhã e queriam que estivesse levantada, vestida e de pé, coisa que nunca fiz. Depois abriam para me levar o pequeno-almoço, um púcaro de café e pão. O pão era escuro e saboroso e tinha a grande vantagem de se poder moldar e esculpir para fazer flores. Abriam mais tarde a porta para levarem o almoço, recolhiam o lixo e ao fim da tarde levavam-me o jantar. Ao fim do dia ouvia o toque das grades, com um ferro, batiam nas grades, que me fazia lembrar Cesário Verde e o seu poema “O Sentimento dum Ocidental”. A meio da noite, os guardas abriam a cela e faziam-me incidir uma luz sobre os olhos, acordando-me.

Tinham-me tirado o relógio, a carteira e o pouco dinheiro que tinha e os atacadores das botas que calçava, não usava cinto.

Durante todo o tempo, ouvia abrir e fechar as portas das celas e os pés dos guardas. O abrir das celas fazia um barulho alto de metal. Quando entrei pela primeira vez no reduto norte, estava tão cansada que, mesmo sem me terem dado jantar, dormi profundamente e voltei a dormir durante o dia. É que mal dormia naquela época, o trabalho político que fazia era intensivo, desde que no dia 12 de Outubro de 1972, a Pide tinha assassinado o estudante de Direito, meu camarada e amigo, José António Ribeiro Santos e me tinha tornado militante do partido a que ele tinha pertencido.

Levaram-me ao médico, logo no início, num gabinete que ficava num piso superior do reduto norte, À medida que me levavam pelos corredores, iam abrindo os gradões que os dividiam. Abriam e fechavam esses gradões para que não nos cruzássemos nem víssemos qualquer preso. Foi sempre assim quando me conduziram dentro da cadeia, para a visita, para a tortura e, no final, quando tive direito a meia hora de “recreio” para uma divisão sem tecto, no topo da prisão, que também tinha uma fechadura que abria para eu entrar e fechavam deixando-me sozinha, vigiada por um guarda que andava lá em cima. Não havia uma pedra, nada em que pudesse mexer e brincar, era só chão e paredes.

Com o pão, que espalmava, ia fazendo folhas cada vez mais finas e juntava-as de modo a fazer flores, que depois secavam, com um pequeno tronco também de pão.

Com o dinheiro que me tinham tirado, pedi para me trazerem tabaco, um envelope e um selo, um Bloco Castelo e canetas.

Quando tive o Bloco Castelo, o envelope e as canetas, escrevi a primeira carta aos meus pais, a dizer que estava presa, passei a escrever coisas várias no bloco, a fazer contas e o que me vinha à cabeça, assim passando o tempo.

 Um dia, bastante mais tarde, atrevi-me a escrever um conto. Muito ingénuo, era a história de um menino, que ainda hoje me comove.   

Saber o dia, a hora para me situar era uma necessidade absoluta que sentia

Fiz um relógio com pratas dum maço de cigarros e ia movendo os ponteiros com as mãos, sempre que sabia as horas, mas não tinha maneira de o manter acertado. Saber o dia, a hora para me situar era uma necessidade absoluta que sentia. Com as pratas, também procurei fazer um espelho mas não reflectia o meu rosto como eu queria. Fiz uma moldura para a fotografia da minha sobrinha de dois meses que a minha irmã me tinha feito chegar.

Para minha grande alegria, duas ou três vezes, entrou na minha cela, pela mão de uma guarda, a Aninhas, que na altura teria ano e meio e já andava, pela mão de uma guarda. A Aninhas era filha da Violante, que também estava presa, e do Danilo Matos. Tentei que a guarda não percebesse que nos conhecíamos, mas a Aninhas correu para mim e, talvez por isso, a guarda deixou de a levar à minha cela.   

No mesmo piso que eu e numa cela não muito distante, ouvi várias vezes gritos de uma rapariga que gritava em inglês e de quem uma guarda me disse que era inglesa e tinha sido apanhada sem passaporte. Não conseguia perceber o que dizia, mas não me pareciam palavras de ordem. Quando regressei da primeira longa sessão de tortura, já não a ouvi.

Ouvia também gritos, vindos de um bairro próximo, das mães a chamarem as crianças, tal como na minha terra. Havia uma mãe que chamava muito por um “Manel”. Dava para perceber que era muito perto, mas não via ninguém.

Também ouvia às vezes música ao longe, vinda de outras celas no andar de baixo, porque nem todos os presos estavam em isolamento e alguns teriam a possibilidade de ter música.  

Uma vez, já depois da primeira sessão de tortura, ouvi um grande alvoroço de portas a abrir e uma grande agitação. Não tenho a certeza se foram os guardas que disseram, mas acho que foi alguém que gritou de algum lado e fiquei a saber que eram muitos trabalhadores da TAP, que tinham sido presos e entrado na cadeia.

Estava atenta a todos os sons e ficava muito tempo a olhar para fora através das grades. Antes da tortura, não me apercebi de que estivesse alguém nas celas contíguas. Apenas um dia, ao percorrer o corredor, vi ao longe um preso que rapidamente meteram para dentro da cela.

A certa altura, depois dos períodos de tortura, comecei a ouvir uns sons ritmados numa parede ao lado da cama. Prestei mais atenção e era uma espécie de morse. Assim passei a comunicar diariamente com as presas da cela ao lado. A comunicação era muito lenta porque à letra a correspondia uma pancada, à b, duas e por aí adiante para todo o alfabeto, mas ali tempo não faltava. Elas eram várias e uma identificou-se como Fernanda Figueiredo. Apenas muitos anos depois descobri que era a minha camarada de célula no aparelho técnico da organização a que ambas pertencíamos, pois não sabíamos o nome uma da outra, apenas o pseudónimo e nunca nos vimos lá dentro.

Mesmo isolada, encerrada, privada de todo o contacto físico, a cela do reduto norte era um lugar tranquilo em comparação com o que sempre me esperou na cela de tortura do reduto sul.

Também na cela do reduto sul, procurava olhar para fora através das grades e estava atenta a todos os sons.

Daí, via o rio, via o farol ao pé da curva do Mónaco e, do outro lado, na margem sul, uns depósitos metálicos, cor de alumínio, que ainda hoje lá estão. Quando Almada passou a cidade, em Junho de 1973, estava a ser torturada e vi através das grades o fogo de artifício sobre o Tejo, um espectáculo inesquecível naquelas circunstâncias.

No dia 16 de Maio, os pides foram buscar-me e levaram-me pela primeira vez à cela de tortura. Apresentou-se então o pide que disse ser o inspector do meu processo, Américo da Silva Carvalho que falou assim: “Tu aqui tens duas vias, tens a via da colaboração e a via do sacrifício. Estás a ver aquelas grades? – e apontou-me a grades que me pareceram grossíssimas – tu por ali não sais, a não ser feita em puré, pela porta não sais que nós não deixamos, seja qual for a via que escolheres, o resultado é o mesmo, tu daqui não sais sem falares”.

Mas também disse que não era naquele dia, era dali a oito dias e devolveram-me ao reduto norte, para alimentar o medo e reduzir o meu espaço interior. Na visita da família que tive no sábado dessa semana, informei a família que ia ser torturada.

E fui.

Oito dias depois do aviso, foram buscar-me de novo e a tortura começou.

A cela era uma cela praticamente nua, com uma secretária a meio, que tinha uma gaveta por baixo, uma ou mais cadeiras para os pides e um banco sem costas para mim (durante todo o tempo tive apenas um banco sem costas).

Fiquei ali, com pides à minha volta, que se revezavam, faziam perguntas, me escarraram para cima, me atiraram ao ar de um para outro como se fosse uma bola, empurraram e, em duas ocasiões, tentaram que fizesse a tortura da estátua. Até então, eu não tinha proferido uma única palavra, mas nessa altura disse. Dois pides tinham-me agarrado os braços e encostado a uma parede, com os braços agarrados, dizendo-me: tu agora vais fazer o Cristo, ficas assim. Respondi: fico assim enquanto me agarrarem, quando me largarem eu baixo os braços e enquanto me agarrarem a tortura é tanto minha como vossa porque eu estou na mesma posição e vocês também. Largaram-me e baixei os braços. Um ou dois dias depois, fizeram o mesmo, pondo-me em cima duma cadeira e agarrando-me as pernas. Disse-lhes: fico assim enquanto me agarrarem, quando me largarem, atiro-me daqui abaixo. Largaram-me e eu desci.

Não me deixavam dormir e fiquei ali de dia e de noite, ininterruptamente, 16 dias e noites, ou seja 16 períodos seguidos de 24 horas.

Mantinham-me acordada com gritos, pancadas na mesa e na gaveta por baixo da mesa, batiam com moedas no tampo da mesa, davam-me empurrões. Alternavam com a “pide boa”, que era a pide Lurdes, que tinha muita pena de mim e se esforçava por desempenhar esse papel – até me ensinou a nadar no chão da cela numa noite – e aconselhava-me todo o tempo a falar. Havia o pide católico, que me parece que ia em regime de voluntariado e me ensinava a resignação e a submissão à vontade do Senhor. Houve o intelectual, às noites, o pide Óscar Cardoso, que me falava de filosofia, do existencialismo, da ética na política e se vangloriou de ter torturado Francisco Martins Rodrigues e Rui d’Espiney. O único que se assumiu como torcionário.

A cela ia ficando mais pequena porque o chão subia, com lagartas e chegavam elevadores, tudo por causa das alucinações.

E também se confinava à minha frente porque enchiam um lavatório com água e me metiam a cabeça lá dentro com a cara para baixo, asfixiando-me.

Um dia, depois de me avisarem por quatro dias, espancaram-me até perder os sentidos. O aviso destinava-se a alimentar o medo e senti-me encolher porque tinha muito medo.

Foi quando andava à volta da cela que me apercebi que ali quem comandava era eu

Apesar de tudo, mantive sempre o meu espaço interior de liberdade, com pequenas coisas e pequenos gestos de rebeldia e de insubmissão. Cantei, cantava na cela de tortura, como se os pides não estivessem lá. Cantava a Ronda do Soldadinho de José Mário Branco. Andava à volta da cela quando me cansava de estar sentada ou me tiravam o banco. Foi quando andava à volta da cela que me apercebi que ali quem comandava era eu, pois eles andavam atrás de mim, a seguir-me os passos, e de repente eu virava e andava na direcção contrária e eles viravam também. Fazia pétalas e flores com o pão.

Tinha as pernas inchadas, as botas de camurça molhadas com um líquido que escorria das pernas e dos pés, sentia a cabeça a ficar insensibilizada, tinha alucinações, tinha dores por todo o corpo, nas pernas, nos braços, no peito e nas mãos e isso eu não podia controlar, nem podia dormir ou sair dali, mas quando cantava ou quando andava ou me sentava no chão e quando não respondia às perguntas que me faziam e mantinha a calma, era livre.

Aurora Rodrigues
01.03.2020

(...)