You are here

França: a Primavera adiada

Vaidoso e arrogante, Macron autoproclamou-se como “Júpiter”, pelo que veio a receber de imediato os mais variados apelidos e cognomes sarcásticos vindos da esquerda, como Faraó, “Roi Soleil” ou “Tutan-Macron”. Artigo de Rafael Boulair.

Há um ano atrás, Emmanuel Macron tornou-se presidente francês, depois de derrotar a fascista Marine Le Pen na segunda volta das eleições presidenciais. Apenas três anos antes, Macron era um indivíduo completamente desconhecido pela larga maioria dos franceses. No verão de 2014, foi escolhido por Hollande para a pasta da economia, que veio a ocupar durante dois curtos anos, até se demitir, com a candidatura presidencial a ser preparada com afinco nos bastidores.

Este homem enigmático e aguerrido, um jovem de 39 anos que cursou filosofia antes de entrar na famosa escola ENA que forma os altos quadros do Estado, foi um verdadeiro buraco negro que deixou a direita em ruínas e o histórico Parti Socialiste, fundado em 1969, em cacos. Tal feito teria sido impossível sem o forte apoio da imprensa burguesa, que a uma só voz se preparou para propulsar o candidato para o primeiro lugar. Macron teve direito a 300 capas de jornais em ano e meio, e, escusado será dizer, quase todas enormemente elogiosas. Não nos será difícil compreender o motivo de tamanha propaganda, tendo em conta que 90% dos meios de comunicação franceses estão na mão e ao serviço de 9 milionários.

Macron usou a seu favor os ventos do populismo, dizendo não ser “nem de esquerda nem de direita”. Declarou-se, portanto, de centro, e fez uma campanha oca com poucas propostas, muito alarido e algum discurso acerca da sua suposta modernidade face aos outros candidatos, e sobretudo, em relação a Mélenchon, que acusou de fazer coro com Putin e de pertencer à “esquerda do século XIX”.

Ora, Mélenchon foi a outra grande surpresa de uma campanha que, como a definiu um militante do Parti de Gauche, foi “uma campanha mágica”. O candidato que se apresentou em 2012 com o apoio do Front de Gauche recandidatou-se sob a bandeira do seu movimento criado em 2016, a France Insoumise. Mélenchon conseguiu afirmar-se com o programa L’Avenir en Comun, cujos eixos fundamentais eram o relançamento do investimento público, a ecologia, a subida do SMIC e de todos os salários e a defesa intransigente dos serviços públicos. A sua proposta política foi a preferida e mais votada pelos jovens e a segunda entre os operários. A população amordaçada pela crise e exausta das políticas de austeridade de Sarkozy e Hollande votou em massa num candidato que, na quinta maior economia de um mundo globalizado, ousa propor taxar a 100% os rendimentos a partir de 400 000 euros ao ano, taxar as mais-valias, nacionalizar uma parte do tecido industrial e empresarial. A inexistência do voto útil no PS, como em 2012, fez o resto. A coragem, a audácia de Mélenchon não lhe permitiram, por muito pouco, passar à segunda volta, mas permitiram-lhe obter 19,6%, isto é, 7 milhões de votos expressos. A candidatura de combate e popular conseguiu ainda um feito notável, embora poucas vezes sublinhado: os militantes insubmissos passaram a campanha nos bairros populares, em contacto com as populações em maior sofrimento social, e conseguiram fazer recuar a Frente Nacional de 30%, que obteve nas regionais em dezembro de 2015, para 21,8% e ganhar essa margem de votos para a esquerda.

No entanto, apesar de toda a luta e capacidade de mobilização, soube-se, na noite de 23 de abril, que a segunda volta seria disputada entre Macron, um banqueiro ultraliberal, e uma fascista, Marine Le Pen. Perante tão deprimente escolha, houve um povo que se soube levantar e ir para as ruas dizer “Ni Patrie, ni Patron, Ni Le Pen, ni Macron”, recusando que lhe tirassem a esperança numa vida melhor. O próprio Mélenchon decidiu organizar um referendo via internet para que os aderentes da France Insoumise decidissem se o movimento devia ou não apoiar Macron, e os resultados forma claríssimos: dois terços dos participantes optaram pela abstenção ou pelo voto em branco. Depois de um debate que correu catastroficamente para Le Pen, Macron é eleito com uns confortáveis 66%, dos quais muitos militantes de esquerda, que se achavam entre a espada e a parede e, com receio do fascismo, optaram pelo mal menor.

Mas a nossa luta é pelo Bem maior, e foi essa luta que se prosseguiu nas legislativas, em que Mélenchon conseguiu eleger pela primeira vez 17 deputados, a somar aos 15 obtidos pelo PCF. A aplastante maioria de deputados La République En Marche impede que se bloqueiem os diplomas no Parlamento, pelo que, apesar de a oposição parlamentar ter a sua importância, o combate passa a centrar-se nas ruas do país.

Vaidoso e arrogante, Macron autoproclamou-se como “Júpiter”, pelo que veio a receber de imediato os mais variados apelidos e cognomes sarcásticos vindos da esquerda, como Faraó, “Roi Soleil” ou “Tutan-Macron”.

Finalizado o período eleitoral, já em cima das férias de verão, Macron começou a revelar a sua agenda que, muito longe de ser centrista e moderada, como prometera, era na verdade um titânico e tentacular programa Thatcherista de privatizações, desregulação do mercado laboral, aumento da idade da reforma e outros recuos históricos- as famosas “reformas”- que na verdade não passam de contra reformas encapotadas para fazer guerra aos trabalhadores. Como Mélenchon afirmou, Macron é “Blair e Thatcher numa mesma pessoa”, isto é, tem um discurso de abertura e de vontade de negociar as suas medidas enquanto avança brutalmente contra a vontade dos sindicatos e vai lançando provocações várias que denotam um profundo desprezo de classe intrínseco ao personagem: ainda como ministro de Hollande, afirmou que numa região do norte de frança grande parte da população era alcoólatra, e já como presidente, referiu-se às pessoas que têm sucesso profissional e às que “não são nada”(les gens qui ne sont rien”). Macron não dá ponto sem nó e cada uma das suas intervenções é medida e estudada para provocar o mundo do trabalho da maneira mais insultuosa, para melhor o poder esmagar. Sofregamente e à velocidade de relâmpago avançaram as medidas de desregulação do mercado laboral, que foram debatidas em tempo record no Parlamento e aprovadas em seguida. É a conhecida terapia de choque que foi posta em prática, e cujo princípio é, precisamente, não dar sequer tempo aos trabalhadores para se darem conta do que vinha pela frente. Macron conseguiu levar a sua avante sem grandes protestos durante o Outono. Confiante e seguro de si, o Presidente-Rei anunciou, no início desta Primavera, a sua intenção de abrir à concorrência a SNCF, a CP francesa, como John Major fizera no início dos anos 90 em Inglaterra, privatizando os caminhos-de-ferro. Pelo caminho, propunha-se reduzir a pó os estatutos dos “cheminots”, considerados por ele como demasiado vantajosos. O objetivo do governo é claro como água: sabendo que o setor dos transportes é dos mais combativos, se o executivo conseguir quebrar a sua resistência tem caminho livre para atacar os restantes setores, numa situação de maior fragilização do movimento social. É por isso que a batalha que se trava nesta Primavera é crucial. 50 anos depois de Maio de 68 nasce em França um movimento social forte e organizado, embora ainda num marco defensivo. De um lado estão as forças de Mélenchon, que se manifestaram dia 5 de maio, e do outro estão os sindicatos. No dia 26 de maio, partidos e sindicatos decidiram organizar uma manifestação conjunta, e anunciam já uma maré humana. O movimento ainda precisa de ganhar força e, enquanto isso, está em marcha um plano de descredibilização da greve em diversos meios de comunicação, com o Le Figaro na liderança. A chave para a vitória deste combate está na convergência das lutas, pois são muitos os setores descontentes com o governo, desde os trabalhadores da SNCF aos da RATP, passando pela Air France e pelos reformados e pensionistas que veem os impostos a aumentar enquanto o ISF (Imposto sobre as grandes fortunas) foi abolido. A somar-se a todo este mar de descontentamento e revolta estão os estudantes, que se opõem determinantemente ao novo sistema que impõe a seleção dos alunos na entrada para a Universidade, e que enchem Assembleias Gerais e fecham universidades pelo país todo.

Se a esperança que Mélenchon personificou na Primavera passada nos foi roubada, por muito pouco, a força de um povo que luta contra a destruição dos seus direitos e do seu modelo social de bem-estar está de volta, esperemos que para inverter a relação de forças e ganhar esta batalha, prontos para travar um combate digno das Primaveras que se perderam e dos Maios que ainda estão por vir.

Termos relacionados Comunidade
(...)