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A Europa sem eufemismos

O mais recente livro de Rui Nunes, “A Crisálida”, é uma análise demolidora do estado em que se encontra a Europa e da indiferença que, a prazo, determinará a sua explosão. Pedro Ferreira
O escritor Rui Nunes demonstra neste livro o seu desencanto sobre a Europa.

Observar o continente a partir de baixo por onde se movem os pobres, os migrantes, os excluídos, o racismo, as desigualdades crescentes e o terrorismo é, nas palavras do escritor, lançar um olhar para os destroços de uma desarmonia que prenuncia o seu estado final.

“Hoje, a violência já não está circunscrita aos territórios de caça, rodeados de arame electrificado. Coutadas. Há, por todo o lado, palavras de um sangue indiferente”.É desta forma que começa o último livro de Rui Nunes publicado nos primeiros meses deste ano.

É difícil, para não dizer impossível, enquadrá-lo num género literário por que o autor se serviu de vários estilos para que a sua visão da Europa dos nossos dias, ou melhor, do chamado projecto de construção europeia, não ficasse espartilhado entre a retórica mainstream que, como ele afirma, à altura dos olhos tem uma “aparência harmónica” mas que vista dos rés-do-chão é “extremamente violenta”.

Assim, se no livro encontramos textos cuja estrutura está próxima da poesia, outros há que parecem aproximar-se de recolha de elementos para mais tarde servirem de base à construção de um texto de ficção. Mas não é disso que se trata.

Neste livro, escrito com uma impressionante e desencantada lucidez, tudo parece ser definitivo.

Em finais de 2014, o escritor viajou até à Alemanha para passar uns dias de férias.

Confessou depois ter ficado impressionado com aquilo que observou. Ele, que após a publicação, em 2014 do livro, Europa Desencantada” tinha dito que não voltaria a escrever, não conseguiu ficar insensível ao que o rodeou porque, como escreve “há gente, muita gente, indiferente, fechada sobre si mesma que apaga o tempo. /E no que apaga/ um homem tropeça”.(pág 42)

Estamos em Munique, e o autor que um dia disse que " não basta compreender o terror, é preciso participar dele", vai deambulando pela Marienplatz.

Não sabemos se o destino escolhido foi ou não casual. Mas este aspeto não é particularmente relevante. Podia ser noutra cidade, noutra praça, noutro país do continente europeu.

Porque em qualquer um deles, acabaríamos sempre por percorrer todos os caminhos de um fracasso, tornado banal, porque “o sangue seca e não tem cheiro” na parafernália de meios que nos informam como se vive e ainda do que há para ser vivido.

São esboços, as pessoas que encontramos”

“Na Marienplatz, neste primeiro fim de semana do Advento, a multidão passeia devagar, ouve-se a voz civilizada, cinzelada das conversas, as conversas correm e regressam por um riso, nas montras os sapatos custam 3 mil euros. A Europa, a velha e porca Europa, continua abaixo dos nossos olhos, porque a luz tem diferentes pesos, pesa mais nos sapatos de 3 mil euros do que no cão a cagar no passeio”. (pág 31)

Há um fio condutor na narrativa de “A Crisálida” quando, por exemplo, Rui Nunes nos relembra o cemitério judaico de Varsóvia, em que “a memória fractura uma eternidade rudimentar”, ou do velho que “há hora do almoço esperou que a rapariga se levantasse da mesa e deixasse no prato cinco batatas fritas porque o dia é feito de todos os pedaços que se levam à boca. O velho engole, engole continuamente a sua boca vazia”.(pág 22).

Ou ainda de um rapaz de gorro na cabeça que “bebe um copo de café com leite e come uma carcaça (…) e as migalhas caem-lhe da boca para o balcão. E ele empurra-as com a mão aberta. É um homem cheio de fome: metódica e rápida”. (pág 34)

“Deixam cair o pão na mão aberta/ Não toquem na mão aberta”, eis a filantropia do desprezo, em que “ são esboços, as pessoas que encontramos”.

E há também a mulher romena que espera o som de uma moeda a cair no copo de plástico que segura entre as mãos, ou aqueles que “nem sequer têm nudez e, nos jornais onde se enrolam, cabem todas as notícias do mundo: o Estado islâmico, Mr Cameron, o signor Draghi, Herr Schauble. Letras como nos cobertores das casernas dos hospitais”. (pág.22)

O testemunho de uma Europa cuja identidade está “destruída, incapaz de acolher, absolutamente indiferente”, escreve Rui Nunes, que deixa ainda criticas aos média que “virtualizam” de tal forma a violência que, não raro, a tornam “comestível”.

E porque não é esse também o papel da literatura mesmo que para muitos seja mais cómodo mistificar a realidade, diz ter procurado na escrita a “fresta”, a única que lhe resta em função dos graves problemas que lhe afetam a visão, para “ver e ler o mundo”.

“A Crisálida” recorre com frequência a uma linguagem crua mas sem nunca cair na vulgaridade, uma vez que esta é a única forma que o autor encontrou para dar uma expressão real à crueldade de um continente à deriva, onde ressurgem de novo os muros, o arame farpado, e a amálgama de corpos em direcção a local nenhum.

“Tudo é igual rente ao chão. Ou a caminho do matadouro. Ou numa vala, em Treblinka. Ou de joelhos, na areia. Erecto o matador. Aqui, aí, perde-se o medo”.(pág 31)

Com este livro, Rui Nunes - que inicou a sua carreira literária na década de sessenta tendo já publicado mais de vinte títulos - oferece-nos um dos mais extraordinários testemunhos sobre a destruição de todos os valores humanistas que, mesmo de forma intermitente, moldaram a Europa nas últimas décadas. Hoje, voltamos a contar os mortos com e sem aspas. Talvez em muros, lápides, seguramente como “heróis”.

Para o escritor, no degrau mais fundo da Europa, desta Europa, “pensa-se a nostalgia de um mundo limpo, de uma morte limpa, que é de um homem no seu caixão, trajado a preceito, a barba feita, pobre mas honrado, assim Deus o receba, sem moscas nem vermes (…) e nós sentados no sofá, comemos pipocas, frente ao televisor que se pode desligar quando quisermos, um mundo à sua disposição (...)”.(pág.8)

“Allons enfants de la patrie, heróis do mar, God save de Queen, Deustchland uber alles, rule Brittania. (pág 24)

A Crisálida” torna-se assim um testemunho desassombrado que nos mostra sem eufemismos um precipício de onde já é difícil, senão impossível, fugir.

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“A Crisálida”, de Rui Nunes, Editora Relógio D'Água.

Revisão de Michelle Nobre Dias.

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